segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Nacos

«E durante uns instantes, acalorou-se uma discussão sobre Plínio, Plutarco e Plotino, mas o comerciante, que costumava percorrer outras latitudes, desconcentrou, depois de simpaticamente fazer circular um pratinho de salpicão.
— É mesmo verdade o que contam de Lady Shillessy?
— Só meia-verdade — comentou o juiz. — Porque a realidade é bem mais interessante.
Lady Shillessy escrevia uma reportagem quinzenal para a Stylecash Magazine, uma dessas revistas de cachimbos e tacos de bilhar, estão a ver? Era muito profissional, ia aos sítios e tratava-os de maneira suficientemente irreconhecível, embora lhe pagassem uma quantia simbólica e lhe enviassem umas camélias de vez em quando. Pois um belo dia alguém lhe mencionou a estalagem do Porto que é, como todos sabem, no Palácio do Freixo. Pareceu-lhe Oporto, Porto, um sítio particularmente exótico, depois do sucesso da sua reportagem sobre um safári no Zimbabué, com avistamento de leões, que até foi comentada na própria sede do Partido Trabalhista, à hora do chá. Não era no Porto que tinha havido aquela batalha contra Napoleão? Ah, era antes o vinho? O quê, o vinho do Porto era de lá? Não era de Chipre? Que curiosa e indiscernível coincidência. Havia turbulência sobre a Biscaia, como é habitual, a viagem, embora curta, foi mais sacudida que a do Zimbabué e Lady Shillessy aterrou nas Pedras-Rubras com disposição para cometer um erro fatal.
— Tomou um táxi? — perguntou o comerciante, com os braços cruzados sobre a barriga, numa atitude que competiria mais ao abade.
— Pior — rosnou o juiz, com pouca vontade de ser interrompido. — Alugou um carro.
— Habituada a conduzir pela esquerda. Coitada. Deve ter sido insultada nas ruas — condoeu-se o abade.
— Insultadíssima. E só não especifico por respeito ao seu múnus.
— Deixe lá! No meu múnus ouve-se muita coisa...
— Antes de se fazer uma viagem devem averiguar-se criteriosamente as idiossincrasias locais — atalhou o farmacêutico.
— Mas o ponto não é esse — insistiu o juiz. — O ponto é que ela viu no mapa Freixial. Freixial do Douro. E baralhou Freixial com Freixo. E toca de meter pela estrada a caminho de Freixial. Bonita paisagem, mas eram curvas e mais curvas, quase sempre fora de mão.
— Desculpe, senhor juiz, mas não ia falar do caldo-verde? — perguntou o professor distraidamente. — É que, há bocado, na estrada, quando vinha para cá, ultrapassei dois camiões-cistena do Caldo-Verde, Green Broth, London, Ltd., e pendei que...
— Mas se não me deixam contar! Mas se me estão sempre a interromper!
— Pronto, pronto.
— Andava então perdida, a pobre mulher. Do alcatrão à terra batida foi uma guinada e depois eram penhascos e penhascos e não havia voltar. Até que se desencadeou um valente temporal, uma daquelas tempestades do Douro. Conhecem as tempestades do Douro?
Todos conheciam as tempestades do Douro. Se conheciam... Os céus despejam tudo o que há a despejar, no meio de roncos cavernosos, estampidos e lampejos em ziguezague que batem toda a paisagem como os canhões da Flandres. Desabam as enxurradas pelas falésias, borbulham e refervem as lamas, o que está em cima e o que está em baixo amalgama-se, confundido. Os circunstantes, na sua juventude, tinham lido imensa literatura romântica que transmitia tempestades. E durante uma agradável meia hora assistiu-se ali a uma polifonia deslumbrada com as fúrias desabaladas da Natureza.
Would you care to help me?
Lady Shillessy do meio do dilúvio interpelou um vulto formado de água e névoas concentradas que se aproximava, torvo e cambaleante, numa errância espectral.
I beg your pardon? — respondeu Fernando Faria, numa voz que parecia oriunda de essências liquefeitas.
Help!
E Lady Shillessy achou-se num tugúrio de terra batida cheio de cestos, lenha e alfaias, em que a tepidez de um lume, ardendo domesticamente sob uma panela de ferro trípoda, criava um ambiente de palácio de fadas, se comparado com o inferno do turbilhão lá fora. Acordou numa espécie de catre, debaixo de um cobertor de papa. O rugido da tempestade era agora um murmúrio de vagas plangências, que desistiam ao embate das rijas paredes de granito. Um ténue odor a fumo, curiosamente, apenas vinha reforçar a impressão de conchego. E foi com um sobressalto que reparou que o seu vestido e roupa interior, pendurados de um cajado contra os granitos rudes, davam algum dissonante colorido à austeridade empardecida do ambiente.
My goodness! — disse a aristocrata, aconchegando a manta.
You're welcome — observou Fernando Faria, que secava os sapatos da senhora ao fogo, na ponta de um ferro de lar.»
Mário de Carvalho, A Liberdade de Pátio, Porto Editora.