segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Nacos

«Era incrível, pensou, não, era criminoso, os cidadãos de Spitzbergen acharem razoável andar numa espécie de moto com um clima daqueles, quando qualquer veículo humanamente fechado, com um aquecedor, um pára-brisas conveniente, um assento com costas — enfim, um carro! — poderia salvar uma ou duas vidas. Por instantes, aquele momento de indignação distraiu-o e só quando já estava de novo montado no selim, com os óculos descongelados e mais uma vez a avançar com um rugido por entre o ar cortante se apercebeu de que tinha chegado a um ponto em que era obrigado a fazer uma opção imediata: parar para urinar já; deixar que a bexiga rebentasse, o que lhe provocaria a morte ou uma infecção interna; ou encharcar-se e morrer gelado. Mas continuou a avançar. Desconfiava que só faltavam cem quilómetros e ia a quarenta quilómetros a hora. Duas horas e meia. Completamente impossível.
Mas mesmo assim não parou. Distraiu-se tentando recordar a última ocasião em que urinara. De certeza que fora no aeroporto de Longyearbyen, na antevéspera, tarde da noite, enquanto esperava pela bagagem. Trinta e cinco horas sem urinar. Ter-se-ia simplesmente esquecido? Estaria assim tão ocupado?
No momento em que percebeu que era o frio que o tinha baralhado e feito acrescentar um dia, parou e, tal era a vontade que sentia, quase caiu da moto de neve. Ouviu a máquina de Juan bater na traseira da sua, mas não olhou para trás enquanto se afastava à pressa. Agora encontravam-se num tipo de terreno diferente. O caminho descrevia um S pouco profundo através de uma ravina fechada de cada lado por paredes de nove metros de rocha e gelo. Um sentido de propriedade vestigial atraiu-o para a base de um dos muros como que para um urinol, onde se pôs de pé dobrado em dois, de costas para o vento, usando os dentes para puxar a luva exterior da mão direita. Ouviu Jan chamá-lo, mas naquele momento não suportava conversas. Mordendo a ponta de um dedo de cada vez, conseguiu tirar a luva. A mão ficou imediatamente dormente e entorpecida. Levou mais de dois minutos a desapertar o fecho do fato e descobriu que precisava de duas mãos para enfiar debaixo do blusão e desapertar as fivelas dos suspensórios das calças, de modo que tirou as luvas da mão esquerda com a direita a mover-se em câmara lenta. Mais uma vez, os óculos estavam embaciados e a congelar. Mas teve de admirar a sua própria calma, enquanto remexia e puxava através das camadas de roupa, ao mesmo tempo que o calor precioso do seu corpo se escoava para o frio atroz e o vento lhe fustigava as costas, zurzia o penhasco e lhe açoitava o rosto. Só nos últimos segundos, quando a sua mão cor-de-rosa e inapta, tão fria como a de um desconhecido, se introduziu nas cuecas, pensou que iria perder o controlo. Mas por fim, com um grito de júbilo que se perdeu na ventania, dirigiu o jacto contra a parede de gelo.
O seu erro foi esperar alguns segundos no final, como os homens da sua idade têm tendência a fazer, a pensar que talvez haja mais. Devia ter voltado a cabeça para ouvir o que Jan lhe tinha gritado. Ou talvez só pudesse evitar o inevitável se tivesse aceitado um dos outros convites, para as Seicheles, Joanesburgo ou San Diego, ou se, como pensou mais tarde com uma certa amargura, a alteração climática, o aquecimento global acima do Círculo Polar Árctico, já estivesse a ter lugar, e não fosse um produto da imaginação dos activistas. Isto porque, quando acabou o que estava a fazer, descobriu que o pénis se tinha colado ao fecho do fato, estava congelado a todo o comprimento, como só acontece com a carne em contacto com metal abaixo de zero.»
Ian McEwan, Solar, Gradiva.