sexta-feira, 18 de abril de 2014

Nacos

    «— Olhem lá — interrogou o César, casualmente, depois de um tossicar a que não foi alheio um certo pó alergénio, misturado com vestígios de bicho-de-prata. — Que destino tencionam os meus amigos dar às suas bibliotecas quando... digamos... quando forem para (considerou os planetas), enfim, Plutão...?
    E, assim como aquela brasa oculta que ronrona entre cinzas e folhedos cansados, e se deixa estar preguiçando até eclodir subitamente num protesto de lume e luz, que destrói a pacatez e traz ao espírito a mecânica das revoluções, do mesmo modo a questão não tinha passado, naqueles três espíritos, de um remoer mental, arrastado e tácito, até rebentar agora num levante de indignação e pânico.
    — A minha filha veio cá outro dia e queria só levar os livros encadernados a vermelho, o Tácito todo que lhe condizia com os cortinados. Recusei, claro, e ela disse que podia esperar.
    — Pois o meu caso é pior: o meu neto Salvador fingiu-se interessado na biblioteca, farejou, farejou e fez perguntas só para me contentar. Depois de ele sair dei pela falta de um D. Quixote, com encadernação em percalina, que eu fui encontrar uma semana depois na feira da ladra, por um preço incomportável.
    Pois os meus filhos vieram aí — indignou-se César — e disseram-me, sem pudor: papá, esta livralhada, temos de dar destino a isto, bem vê.
    — E a minha neta, que me mostrou uma caixinha de plástico preta, do tamanho de uma tablete de chocolate das pequenas, e me disse, a olhar para os meus livros de soslaio: avô, está a ver? Aquilo tudo cabe aqui e ainda sobra espaço...
    Mas Abel já tinha pronto mais um relato, e por ali estiveram a manhã toda a falar nos seus livros, recolhidos durante toda uma vida, com critério, sentindo-se como um bando de leoas a defender os filhotes, ou um grupo de guardas suíços dispostos a morrer nas Tulherias.»
Mário de Carvalho, A Liberdade de Pátio, Porto Editora.