quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Os bem-sucedidos

Há um conceito particularmente querido por aqueles que defendem o liberalismo económico. Esse conceito é: «os bem-sucedidos».
Com a designação «os bem-sucedidos», os defensores do liberalismo económico querem dizer várias coisas de uma só vez: 1. na vida há os que têm sucesso e os que não têm sucesso; 2. aqueles que têm sucesso têm-no por alguma razão; 3. essa razão é porque o merecem, porque têm mérito; 4. o sistema que garante a premiação do mérito é o liberalismo; 5. é o liberalismo porque é um sistema que fomenta a livre concorrência, e os vencedores da livre concorrência são naturalmente os melhores, são os que têm mérito, isto é, são os «bem-sucedidos».
Desta forma, o liberalismo económico conjugaria e asseguraria o melhor de diferentes mundos: a Liberdade (através do livre jogo da concorrência), o Progresso (gerado pela competitividade) e a Justiça (por premiar quem o merece, isto é, os «bem-sucedidos»).
Um dos problemas do liberalismo económico é o da realidade teimar em não confirmar estas ideias.
De forma breve:
i) No designado jogo da livre concorrência não existe realmente uma verdadeira nem uma justa concorrência. Uma justa concorrência exige que todos os concorrentes concorram em igualdade de circunstâncias. Não é pelo facto de todos estarem na mesma linha de partida que fica assegurada a igualdade de oportunidades e de circunstâncias a todos os concorrentes. Se na linha de partida estiverem uns que correm com as duas pernas, outros com uma perna, outros que correm coxeando, outros que correm em cadeira de rodas e outros de bengala, apesar de partirem ao mesmo tempo e do mesmo local, não parece ser razoável afirmar que estejamos perante uma justa e livre concorrência;
ii) É de muito duvidosa veracidade dizer que o Progresso resulta da competividade. Teríamos de começar por conversar com calma sobre o que se entende por «Progresso» e depois teríamos de examinar bem se, ao longo da História, aquilo que está na base do designado Progresso não é mais a necessidade do que a competitividade, se não é mais a criatividade não condicionada do que a inovação condicionada pela competitividade;
iii) É ainda de mais duvidosa veracidade afirmar que os chamados «bem-sucedidos» são-no como justo prémio do mérito evidenciado. Na verdade, quase sempre que se levanta um pouco do pesado manto que encobre os processos e as práticas dos supostamente «bem-sucedidos», aquilo que normalmente se vê é uma panóplia sem fim de truques e de «malabarices» na sustentação de tão «bons sucessos». O caso do banqueiro que há semanas foi apanhado em flagrante fuga de milhões de euros ao Fisco, e que continua juridicamente impune e socialmente impante, é um exemplo disso. Curiosamente é alguém que sempre foi apresentado como um modelo dos «bem-sucedidos» na sociedade portuguesa.

Na realidade, a defesa do liberalismo económico constitui um excelente branqueamento e uma excelente promoção dos processos que geram grande parte dos designados «bem-sucedidos».

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terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Bonecos de palavra

Bill Watterson, O Indispensável de Calvin & Hobbes, Gradiva.
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segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Poemas

O NAVIO DE ESPELHOS

O navio de espelhos
não navega   cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo

Mário Cesariny

domingo, 27 de janeiro de 2013

Manifestação

Ontem, a manifestação a descer a Avenida da Liberdade.
A manifestação concentrada no Rossio.
Há sete anos consecutivos que as condições profissionais dos professores têm vindo a degradar-se: o respeito e a dignidade que a natureza das suas funções deveria exigir começaram a ser grosseiramente atacados por Sóctares e Rodrigues; a brutal degradação das condições e do ambiente de trabalho iniciou-se com Sócrates e Rodrigues e prosseguiu com Coelho e Crato; o corte nos salários, a precariedade e o desemprego docente iniciaram-se com Sócrates e Rodrigues e aprofundaram-se tragicamente com Coelho e Crato. 
Os avisos de que a agressão à Escola Pública vai continuar chegam a todo o momento e provêm de diversas fontes. O mais recente desses avisos chegou em forma de número redondo: 50 mil professores devem ser despedidos.
A reacção das políticas sindicais a tanta selvajaria tem sido espantosamente fraca. Mesmo em situações em que se realizaram marchas nacionais suportadas por mais de cem mil professores, a opção dos sindicatos foi repetidamente a de gerir as perdas e de minimizar os danos. Sempre que há grandes embates entre o governo e os docentes, há sempre também um grande fosso entre o discurso sindical, pretensamente agressivo, e a acção sindical, objectivamente comedida.
Agora que se avizinham embates ainda maiores, será certamente altura de mudar de políticas e de direcções sindicais.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O problema de não haver pudor na política

É impressionante a desfaçatez que o comportamento de alguns dos nossos políticos revela. 
A página electrónica do Expresso refere hoje que Silva Pereira, antigo braço direito de Sócrates, afirmou, numa entrevista dada à Rádio Renascença: «Acho que o Partido Socialista precisa de fazer mais para se apresentar como uma alternativa credível e creio que a missão de qualquer partido, sobretudo do maior partido da oposição, é estar preparado para oferecer uma alternativa». A afirmação, em si mesma, não tem nada de particular, o que tem de particular é ela ter sido dita por quem foi e é ela confirmar-nos um certo desgraçado modo de fazer política.
Silva Pereira é um dos principais responsáveis pela situação a que Portugal chegou. Esteve pessoal e directamente envolvido em todas as principais decisões políticas dos dois últimos governos do PS — da educação à saúde, das obras públicas às finanças. Foi co-responsável ou cúmplice empenhado nas políticas mentirosas, irresponsáveis, incompetentes e arrogantes com que fomos governados durante seis anos. Conduziu, com Sócrates, o país à bancarrota. Foi co-responsável pelo pedido de resgate e pela assinatura do memorando com a troika. Desde 1974, o país nunca tinha passado por uma situação tão grave como aquela a que se chegou em Abril de 2011, e ele, Silva Pereira, foi co-autor da catástrofe financeira e económica que estava em pleno desenvolvimento naquela data.
Se, para alguns, a política não fosse somente uma actividade diletante ou, no outro extremo, uma obsessão pessoal que tudo justifica, os factos acima enumerados deveriam sobrar para que um político, que tivesse sido co-responsável pelos mesmos, se sentisse na obrigação de, no mínimo, proceder a um longo período de nojo ou de decidir, em definitivo, retirar-se da política — por decoro e pelo respeito que deveria ter por aqueles a quem tão gravemente prejudicou. Se Silva Pereira fosse um político sério, era isso que deveria ter feito. Mas não fez. Pelo contrário, tem o atrevimento de opinar acerca do que deve ser uma alternativa ao actual governo. 
Independentemente da evidente incapacidade política de Seguro, a verdade é que Silva Pereira, Santos Silva, Vieira da Silva e todos os outros socratistas nunca poderão ser alternativa a coisa alguma.
Era isso que faltava, que depois do desastre de Sócrates e da catástrofe de Passos se preparasse o regresso da imensa prole do «exilado» de Paris.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Bonecos de palavra

Bill Watterson, O Indispensável de Calvin & Hobbes, Gradiva.
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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Nacos

«Era incrível, pensou, não, era criminoso, os cidadãos de Spitzbergen acharem razoável andar numa espécie de moto com um clima daqueles, quando qualquer veículo humanamente fechado, com um aquecedor, um pára-brisas conveniente, um assento com costas — enfim, um carro! — poderia salvar uma ou duas vidas. Por instantes, aquele momento de indignação distraiu-o e só quando já estava de novo montado no selim, com os óculos descongelados e mais uma vez a avançar com um rugido por entre o ar cortante se apercebeu de que tinha chegado a um ponto em que era obrigado a fazer uma opção imediata: parar para urinar já; deixar que a bexiga rebentasse, o que lhe provocaria a morte ou uma infecção interna; ou encharcar-se e morrer gelado. Mas continuou a avançar. Desconfiava que só faltavam cem quilómetros e ia a quarenta quilómetros a hora. Duas horas e meia. Completamente impossível.
Mas mesmo assim não parou. Distraiu-se tentando recordar a última ocasião em que urinara. De certeza que fora no aeroporto de Longyearbyen, na antevéspera, tarde da noite, enquanto esperava pela bagagem. Trinta e cinco horas sem urinar. Ter-se-ia simplesmente esquecido? Estaria assim tão ocupado?
No momento em que percebeu que era o frio que o tinha baralhado e feito acrescentar um dia, parou e, tal era a vontade que sentia, quase caiu da moto de neve. Ouviu a máquina de Juan bater na traseira da sua, mas não olhou para trás enquanto se afastava à pressa. Agora encontravam-se num tipo de terreno diferente. O caminho descrevia um S pouco profundo através de uma ravina fechada de cada lado por paredes de nove metros de rocha e gelo. Um sentido de propriedade vestigial atraiu-o para a base de um dos muros como que para um urinol, onde se pôs de pé dobrado em dois, de costas para o vento, usando os dentes para puxar a luva exterior da mão direita. Ouviu Jan chamá-lo, mas naquele momento não suportava conversas. Mordendo a ponta de um dedo de cada vez, conseguiu tirar a luva. A mão ficou imediatamente dormente e entorpecida. Levou mais de dois minutos a desapertar o fecho do fato e descobriu que precisava de duas mãos para enfiar debaixo do blusão e desapertar as fivelas dos suspensórios das calças, de modo que tirou as luvas da mão esquerda com a direita a mover-se em câmara lenta. Mais uma vez, os óculos estavam embaciados e a congelar. Mas teve de admirar a sua própria calma, enquanto remexia e puxava através das camadas de roupa, ao mesmo tempo que o calor precioso do seu corpo se escoava para o frio atroz e o vento lhe fustigava as costas, zurzia o penhasco e lhe açoitava o rosto. Só nos últimos segundos, quando a sua mão cor-de-rosa e inapta, tão fria como a de um desconhecido, se introduziu nas cuecas, pensou que iria perder o controlo. Mas por fim, com um grito de júbilo que se perdeu na ventania, dirigiu o jacto contra a parede de gelo.
O seu erro foi esperar alguns segundos no final, como os homens da sua idade têm tendência a fazer, a pensar que talvez haja mais. Devia ter voltado a cabeça para ouvir o que Jan lhe tinha gritado. Ou talvez só pudesse evitar o inevitável se tivesse aceitado um dos outros convites, para as Seicheles, Joanesburgo ou San Diego, ou se, como pensou mais tarde com uma certa amargura, a alteração climática, o aquecimento global acima do Círculo Polar Árctico, já estivesse a ter lugar, e não fosse um produto da imaginação dos activistas. Isto porque, quando acabou o que estava a fazer, descobriu que o pénis se tinha colado ao fecho do fato, estava congelado a todo o comprimento, como só acontece com a carne em contacto com metal abaixo de zero.»
Ian McEwan, Solar, Gradiva. 

sábado, 19 de janeiro de 2013

Aproximação? (4)

Quem exerce funções públicas tem acrescidas exigências de natureza ética, objectivas limitações de ordem financeira e apertadas restrições legais, isto comparado com quem trabalha no sector privado — estes factos não são susceptíveis de deturpação ou de mentira política.
Neste contexto, quem é que, exceptuando aqueles que fazem uma opção de vida de entrega às causas colectivas, poderia estar interessado em exercer funções públicas, sabendo que essas funções implicavam a aceitação de um tecto salarial imposto por lei e a aceitação de um nível superior de obrigações, e sabendo que, relativamente a tudo o resto (sistema de segurança social, progressão na carreira, vínculo laboral), as condições seriam as mesmas do sector privado? Quem teria interesse em ingressar na Função Pública? Quem é que, para além dos empurrados para a situação de desemprego, teria conveniência em desempenhar essa função? E que extravagante conceito de justiça social seria esse que a um sector específico da sociedade tudo exige e nada oferece?
Foi justamente para impedir que a Função Pública fosse vista como uma actividade menor e uma profissão sem atractivos, apenas capaz de recrutar os menos preparados, que foram encontrados mecanismos susceptíveis de proporcionar um equilíbrio minimamente aceitável entre o que era exigido e o que era oferecido. A existência de condições específicas no sector público não é um privilégio nem um luxo, é, pelo contrário, a condição necessária para que seja possível:
i) captar e manter funcionários tecnicamente competentes e empenhados;
ii) preservar esses funcionários de pressões governativas e partidárias;
iii) exigir a esses funcionários padrões de conduta exclusivamente comprometidos com o interesse público e o cumprimento da lei.
A origem das diferenças — a nível da segurança social, do vínculo laboral, do modo de progressão na carreira e das condições de reforma — entre o sector público e o sector privado reside aqui. Reside aqui e reside justa e fundamentadamente.
Falar, como agora se fala (particularmente desde Sócrates até Passos), em «aproximação» ou «convergência» entre estes dois sectores é um disparate grave e só pode significar uma de duas coisas: ou uma grosseira concepção de equidade ou a inaceitável intenção de minar a importância do Estado (diminuindo a suas funções e deteriorando a qualidade dos seus profissionais), para que se desenvolva uma maior desregulação da sociedade, que só beneficia os mais poderosos.
A suposta «aproximação» ou «convergência» entre o sector público e o sector privado é um passo essencial da estratégia de tentar fazer do Estado uma inutilidade objectiva.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Poemas

OS MAUS

Temeis-me?
Temeis o arco tenso?
Ah, quem pudesse assim dispor a flecha!

Ah, meus amigos!
Onde quem bom era dito?

Onde estão todos os "bons"?
Onde, onde, a inocência das mentiras?

Quem uma vez olha o Homem
A Deus vê como Bode.

O poeta capaz de mentir
Conscientemente, voluntariamente,
Só ele é capaz de dizer a Verdade.

"O Homem é mau"
O que os Mais Sábios disseram —
Para consolar-me.

Friedrich Nietzsche
(Trad.: Jorge de Sena)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Aproximação? (3)

3. Sabemos que a maior ou menor consideração que se tem pelo Estado e pela Função Pública depende do modelo de sociedade que se pretende. A defesa ou não defesa da «aproximação» do sector público ao sector privado também é disso que depende.
De uma forma simplificada: se se pretende uma sociedade em que a salvaguarda do interesse geral é mais importante que a salvaguarda dos interesses particulares, se se pretende que haja a garantia de que bens fundamentais como a saúde, a educação, os transportes e a protecção social estão disponíveis para todos, se se pretende que se pugne por uma distribuição socialmente mais justa da riqueza, é necessário que o Estado assuma essas responsabilidades; pelo contrário, se se pretende uma sociedade que prescinde de promover a justiça social e que prescinde do acesso universal a bens e serviços fundamentais, transferindo a sua disponibilização para actividade privada, neste caso, o Estado reduz drasticamente as suas funções, e, para quase tudo, o que prevalece é a «lei do mercado», na eufemística linguagem económica. 
De facto, é uma terminologia eufemística, pois do que na realidade se trata é de um modelo de sociedade inspirado no modo de vida da savana, ao qual se acrescenta um suposto árbitro, teoricamente o Estado. A realidade mostra, contudo, que, nos países seguidores deste modelo, não só o papel do árbitro é mal desempenhado, como acima de tudo mostra que o jogo está evidentemente viciado e que a lei do mais forte é a que quase sempre prevalece. São países socialmente extremados, de riqueza e de pobreza desmedidas e onde existem todo o tipo de assimetrias.
Quem, no nosso país, quer atribuir ao Estado um papel residual (não tendo, todavia, a coragem e a seriedade políticas de falar das respectivas consequências sociais), procura desprestigiar a Função Pública, tentando fazer propagar a ideia da sua inoperância, da sua incapacidade e da sua inutilidade. Sem critério intelectual nem moral, acusa-se a Função Pública de tudo: desde ter o usufruto de múltiplos privilégios até ser a causa da crise que vivemos. 
A cínica defesa da «aproximação» do sector público ao sector privado é uma das vias para se atingir o objectivo da destruição do Estado que temos e, em particular, da destruição do Estado Social que ainda temos.

(Continua)

domingo, 13 de janeiro de 2013

Nacos

«O vento era forte e tinham de seguir contra ele. Bem cobertas pelo capacete, as pontas das orelhas de Beard já estavam dormentes, assim como a ponta do nariz e os dedos dos pés. Para ver, era obrigado a inclinar a cabeça e a ajustar o seu ângulo de visão através de uma área cada vez menor de semi-nitidez, evitando ao mesmo tempo a fenda iluminada sobre o olho esquerdo. Mas tudo aquilo eram pequenos contratempos, uma cegueira e uma dor com que podia viver. Um problema mais premente oprimia-o quando inflectiu em direcção à sua moto de neve. À pressa e embotado como estava nessa manhã, esquecera todas as rotinas habituais. Não se barbeara nem se lavara e, excepto para beber uma gota de água gelada, não pusera os pés na casa de banho. Depois saíra à pressa do quarto com o saco. Agora faziam vinte e seis graus negativos, a força do vento era de cinco nós, estavam com pressa e uma tempestade aproximava-se. Jan já estava em cima da máquina, a pôr o motor a trabalhar, e Beard, encurralado dentro de várias camadas de roupa rebelde, precisava de urinar.
O melhor que podia, olhou em redor. As casas mais próximas ficavam a quatrocentos metros e mostravam grandes paredes vazias, com uma ou duas janelas em miniatura — janelas de casa de banho, de certeza. Oh, estar ali, numa divisão aquecida, revestida de azulejos, descalço e de pijama, a urinar com todo o vagar, antes de se enfiar de novo debaixo do edredão durante uma hora extra. Mas podia fazê-lo ali, na vala, voltar as costas ao vento, tirar as luvas, com os dedos nus lutar com o fecho volumoso e gelado do seu fato de moto de neve de uma só peça, enfiar a mão por baixo do blusão e alcançar as fivelas dos ombros das calças de suspensórios, puxá-las para baixo e abrir um túnel passando pela camisola, camisa, camisola interior comprida, ceroulas e cuecas, para alcançar por fim o momento de alívio em que não ousava pensar. Não, era demasiado difícil, isso teria de esperar [...].»
Ian McEwan, Solar, Gradiva. 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Aproximação? (2)

2.  A defesa de uma aproximação do regime da função pública ao regime do sector privado deriva de uma notória desonestidade política e intelectual. Na verdade, não é possível sustentar com argumentos sérios essa aproximação. 
Como referi no texto anterior, quem defende esta (pseudo) aproximação defende que ela ocorra apenas num só sentido e apenas parcialmente. Quem o faz sabe que, na realidade, não é possível equiparar o sector público e o privado, porque são sectores que prosseguem objectivos diferentes e têm uma natureza diferente: um visa o bem público, o outro visa o bem privado; um não procura o lucro, o outro vive do lucro; um deriva de uma vontade colectiva e privilegia o interesse colectivo, o outro deriva de uma vontade individual ou restrita e privilegia o interesse privado. Deste modo, quem exerce funções públicas tem obrigações e responsabilidades diferentes de quem exerce actividades privadas. 
Estas evidências não impedem, contudo, aqueles que defendem a referida aproximação de procurarem omiti-las de modo deliberado, para poderem promover uma política de descredibilização e de destruição do sector público.
Sabemos todos que quem exerce funções públicas tem responsabilidades alargadas e responde perante todos, e quem exerce actividades privadas tem responsabilidades restritas e responde somente perante quem lhe paga. A quem exerce funções públicas são legalmente exigidos padrões de conduta que não são exigidos a quem exerce actividades privadas. Estar ao serviço do interesse público não é a mesma coisa que estar ao serviço de um interesse privado.
Estamos pois a falar de dois mundos díspares que têm de ser vistos de modo díspar e funcionar de modo díspar. 
Se quisermos enunciar de forma elementar uma das consequências práticas que ilustra a diferença entre sector público e sector privado, podemos dizer o seguinte: quem exerce funções públicas não pode enriquecer nem pode querer enriquecer; quem exerce actividades privadas pode querer enriquecer e pode enriquecer.
Ora a objectiva diferenciação quanto à natureza, aos objectivos e às condições do exercício da função pública e da actividade privada exigem inevitavelmente estatutos diferenciados.

(Continua)

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A outra inevitabilidade

Procurando apaziguar a indignação que as propostas do FMI hoje divulgadas estão a suscitar, Passos Coelho vai dizer que é apenas um estudo técnico, Portas dirá o mesmo, o PSD e o CDS também. Será dito que são os políticos que decidem, não os técnicos. De passagem, será acrescentado que, todavia, o estudo permite-nos perceber o quanto ainda falta fazer para tornar o país sustentável. 
Será mais ou menos isto que os políticos no poder dirão. Não é uma adivinhação, é trazer ao presente o que o passado repetidamente registou. É assim que a elite política que nos governa age — quer a actual quer a anterior.
É assim que age por falta de honradez política e por incompetência técnica. É inaceitável que o governo de um país encomende a uma instituição exterior, neste caso o FMI, um relatório «técnico» sobre medidas a tomar para supostamente tornar «razoável» a dimensão do Estado. É inaceitável porque não é apenas a confissão pública de uma enorme incompetência técnica, como é a confissão pública de total ausência de honradez política. É a confissão de que este governo não sabe governar sem o «socorro», sem a «ajuda», sem a «orientação» de entidades «supervisoras», e, adicionalmente, não tem vergonha disso. Estamos a ser governados pelo que há de mais medíocre na nossa classe política.

As propostas do FMI não merecem comentários, merecem ser deitadas ao lixo. Em lugar de propostas que deveriam visar o desenvolvimento do país, de modo a suportar e a melhorar o Estado Social que temos, isto é, de modo a melhorar o país que somos, são elaboradas propostas que visam a miserabilização da maioria da população. 
Aceitar discutir esta possibilidade é, em si, um sinal de falta de respeito por nós mesmos. O actual governo, que exerce as funções de delegado do FMI em Portugal, que é o representante destas ideias no nosso país, não pode continuar a degradar a vida dos portugueses. A sua demissão e novas eleições são inevitáveis.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Bonecos de palavra

Bill Watterson, O Indispensável de Calvin & Hobbes, Gradiva.
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sábado, 5 de janeiro de 2013

Aproximação? (1)

Julgo não me enganar se disser que foi Sócrates quem começou a desenvolver, de modo efectivo e significativo, a política de realizar aquilo que foi e é chamado de «aproximação do regime da função pública ao regime do sector privado». Pelo menos, foi com Sócrates que a concretização desse objectivo deu passos decisivos. Na altura, a direita aplaudiu, agora, no governo, dá continuidade e aprofunda essa política.
Os argumentos de Sócrates e de Passos são os mesmos e são grosseiros. Segundo eles, não há razões que justifiquem condições de trabalho e de segurança social diferentes entre os trabalhadores do Estado e os trabalhadores do sector privado. Deste modo, dizem, a natureza do vínculo laboral deve ser idêntico, a avaliação deve ser sujeita a regras da mesma natureza, as regras da aposentação também devem ser iguais e o sistema de segurança social deve ser o mesmo. No pensamento do ex-líder do PS e do actual líder do PSD, os funcionários públicos eram, e ainda são, uns privilegiados, que usufruíam/usufruem de luxos inaceitáveis.
Algumas notas sobre esta argumentação:

1. A (alegada) aproximação do regime da função pública ao regime do sector privado é, misteriosamente, feita apenas num sentido. Isto é, pretende-se que os funcionários públicos se igualem aos trabalhadores do privado somente naquilo que de pior o regime destes possui. Em sentido contrário, não se permite, por exemplo, que os funcionários públicos deixem de estar submetidos a uma tabela salarial rígida e com tectos máximos de vencimento. Todavia, no sector privado, a imposição destas limitações nos vencimentos não existe. Como não existe a imposição legal de processos rígidos de progressão na carreira. Ora, quem defende a igualização entre o sector público e o privado tinha de estar obrigado a defender essa igualização na totalidade e não apenas naquilo que configura perda de direitos dos trabalhadores do Estado. A desonestidade política é evidente: em nome de um (falso) combate a (falsos) privilégios dos funcionários públicos, pretende-se a sua proletarização e a sua descredibilização social.
Esta política — ora inspirada na crença provinciana de que o Estado deve funcionar segundo o modelo empresarial dominante, ora assente no objectivo ideológico de reduzir o sector público a uma insignificância que possibilite a invasão do capital privado na economia — tem uma consequência objectiva: a degradação acelerada da qualidade de todos os serviços públicos com a consequente degradação da qualidade de vida da maioria dos cidadãos.

(Continua)

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Poemas

Amigo, perdi o caminho.    Eco: o caminho prossegue.
Há outro caminho?    Eco: O caminho é só um.
Tenho de reconstruir o trilho.    Eco: Está perdido e desapareceu.
Para trás, tenho de caminhar para trás!    Eco: Nenhum vai lá ter, nenhum.
Então farei daqui o meu lugar,    Eco: (A estrada continua),
Permanecerei imóvel e fixarei o meu rosto,    Eco: (A estrada avança),
Ficarei aqui, ficarei para sempre.    Eco: Nenhum se fica por aqui, nenhum.
Não consigo encontrar o caminho.    Eco: O caminho prossegue.
Oh, os lugares por que passei!    Eco: Essa viagem acabou.
E o que virá por fim?    Eco: A estrada prossegue.

Edwin Muir
(Trad. Cecília Rego Pinheiro)