terça-feira, 28 de julho de 2015

Feriar

Feriar é um direito. Em Portugal, além de ser um direito é uma obrigação, para quem pretende manter alguma saúde mental. E feriar de uma forma radical, isto é, fazer férias cortando qualquer contacto com grande parte da realidade portuguesa que chega até nós através da comunicação social.
Vejamos. Desde as últimas férias, passou um ano, mas pareceu ter sido uma eternidade:
1. Passos Coelho continuou a ser politicamente insuportável, manteve a proficiência na arte do engano e da omissão e juntou ao seu curriculum de engodos aquilo que não foi capaz de esclarecer sobre o caso «Tecnoforma» e aquilo que foi descoberto acerca dos seus incumprimentos para com a Segurança Social. Numa sociedade civicamente mais exigente, estes dois casos chegariam e sobrariam para destituir um primeiro-ministro.
2. PSD e CDS continuaram a ser aquilo que são: partidos guardiães de um paradigma social e económico que preserva e desenvolve a injustiça e a desigualdade entre os cidadãos.
3. António Costa derrubou António José Seguro com o argumento de que com ele a oposição ao governo seria diferente, seria mais eficaz e mobilizaria os portugueses. Não cumpriu nenhuma destas promessas. O PS continuou a ser o que sempre foi: o partido-irmão do PSD.
4. Um ex-primeiro-ministro foi detido, por ser suspeito de ter cometido crimes graves. A esta lamentável circunstância — a de virmos a concluir que alguém que nos governou durante seis anos aproveitou esse período para enriquecer ilicitamente — juntou-se o folclore jurídico-político e o folclore da idolatria pública do preso. Pseudo-entrevistas do arguido; insultos e arrogâncias várias do advogado; cortejos, desfiles e cartazes promovidos por uma dúzia de crédulos alimentaram o populário.
5. O principal banqueiro português e toda a elite do BES e da (defunta) PT juntaram-se à infindável lista de políticos, banqueiros e empresários responsáveis pela destruição do país. As declarações que muita daquela gente proferiu na Comissão Parlamentar de Inquérito fizeram dos reality shows hinos à inocência infantil.
6. Crescimento do grupo de gente fútil e inútil que parasita em programas televisivos fúteis e inúteis e em revistas fúteis e inúteis. Várias tropas de escribas e de fotógrafos fúteis e inúteis alimentam este parasitismo. Inundam os quiosques com jornalecos e revistecas repletas de intrigas, de coscuvilhices e de poses grotescas que vão alimentando um circo ordinário.
7. Entretanto, as sondagens indicam que os portugueses continuam a pensar que os boletins de voto só contêm duas hipóteses de escolha: votar nos que destruíram o país antes deste governo ou votar nos que estão a destruir o país agora.

Que venham as férias... Até Setembro.


quarta-feira, 22 de julho de 2015

Isto existe?

É possível imaginar um país cujo sistema educativo permita que uma mesma disciplina, do mesmo ciclo de estudos, possa ser leccionada com três cargas horárias diferentes?
Perguntando de outro modo: alguém concebe que num mesmo país, com o mesmo governo e com o mesmo ministro da Educação, seja permitido que haja alunos que numa escola frequentem uma disciplina com uma carga horária de 135 minutos semanais e que, na escola ao lado, a mesma disciplina, do mesmo ciclo de estudos, seja leccionada com uma carga horária de 150 minutos, e que, numa terceira escola, uns metros mais à frente, a carga horária da mesma disciplina seja de 180 minutos?
É possível pensar que esses alunos e os professores desses alunos, com três cargas horárias diferentes, possam estar sujeitos ao mesmo programa, isto é, aos mesmos conteúdos e aos mesmos objectivos curriculares?
Alguém consegue supor que esta situação possa ocorrer no mesmo país, com o mesmo governo e com um mesmo ministro da Educação? E alguém admitirá que esses alunos possam ser sujeitos ao mesmo exame nacional?
Havendo, entre estes alunos, diferenças de tempo de aulas que podem ir até 4 aulas mensais que uns têm a menos do que outros — o que significa ter menos 32 aulas num ano lectivo e menos 64 em dois anos lectivos — é plausível serem submetidos ao mesmo exame?

Uma situação como a acima descrita é concebível?
Não, não é concebível.
Mas essa situação, apesar de não ser concebível, existe?
Sim, existe. Essa situação existe.
É num país africano?
Não, não é num país africano. É num país europeu.
Da Europa de Leste?
Não, não é num país da Europa de Leste.
É de um país da União Europeia?
É.
Que país é?
É aquele país que tem um governo com um primeiro-ministro e um ministro da Educação que a todo o momento falam de rigor e de competência.
Portugal?
Sim.
E qual é a disciplina em que isso acontece?
É na disciplina de Filosofia, do 10.º e 11.º anos.
Mas é uma situação recente?
Não, não é uma situação recente. Desde 2012 que isto acontece.
E o ministro não fez nada?
Fez, foi ele que criou esta situação e há três anos que a mantém. Ele próprio, Nuno Crato, o ministro do rigor e da competência.

Nota: Os alunos de Filosofia, do 10.º e 11.º anos do Ensino Recorrente, têm uma carga horária de 135 minutos semanais. Os alunos de Filosofia, do 10.º e 11.º anos do ensino Regular, têm uma carga horária de 150 ou de 180 minutos semanais, dependendo da escola em que estão matriculados... No final do 11.º ano, todos estes alunos podem ter exame nacional de Filosofia e o conteúdo do exame é o mesmo.

domingo, 19 de julho de 2015

Reavivando a memória - 3


«O dia 19 de Setembro foi o décimo em que Varsóvia esteve sob fogo de artilharia. Tinham morrido tantos polacos que os parques públicos começaram a ser utilizados como cemitérios [...]. Dirigindo-se aos habitantes de Danzigue, a 19 de Setembro, Hitler falou de "Deus Todo-Poderoso, que agora deu às nossas armas a sua bênção". [...] 
De Danzique, Hitler mudou-se para um hotel na estância de veraneio de Zoppot. Aí apresentou, a um grupo que incluía o seu médico particular, Dr. Karl Brandt, o chefe da sua Chancelaria, Philipp Bouler, e o chefe dos oficias-médicos do Reich, Dr. Leonardo Conti, o seu plano de extermínio dos loucos no interior do território alemão. A pureza do sangue germânico tinha de ser salvaguardada. [...]
O centro operacional do programa seria uma casa nos subúrbios de Berlim, o n.º 4 da Tiergartenstrasse. Foi esta morada que deu o nome à organização, a partir daí conhecida por "T4". [...] Nas palavras de um especialista nazi, o Dr. Pfannmüller: "É para mim intolerável a ideia de que a nata, a fina flor da nossa juventude, vá perder a vida na frente para garantir uma existência segura, nos manicómios, a débeis mentais e a elementos associais."
Logo desde os primeiros dias da Operação "T4", prestou-se especial atenção às crianças de tenra idade, principalmente aos recém-nascidos. Em Görden, próximo de Brandenburgo, uma instituição pediátrica estatal criou um Departamento Psiquiátrico Especial para a Infância, para onde eram enviadas e onde eram mortas crianças vindas de toda a Alemanha.»
Martin Gilbert, A Segunda Guerra Mundial, D. Quixote e Expresso. 

domingo, 12 de julho de 2015

Uma semana depois e um discurso que vale a pena ler

Fotografia de José Luís Mendes
1. Faz hoje uma semana que os gregos se manifestaram, através de um referendo, relativamente à proposta de Memorando apresentada pelo BCE, FMI, CE e pelo Eurogrupo ao governo grego. Um decidido e estrondoso NÃO foi a resposta. Apesar da chantagem e das múltiplas ameaças, apesar do terrorismo verbal, apesar dos bancos fechados, apesar da incerteza sobre o futuro, o povo grego resistiu a tudo e a todos, com uma coragem que impressionou.
Pelo conhecimento que vamos tendo da Grécia, não parece haver dúvidas de que estamos perante um país arruinado pela corrupção e por desigualdades obscenas. A responsabilidade desta situação é dividida pelos políticos do arco da governação grego, formado pelos mesmos partidos que formam o arco da governação português, e pelos políticos europeus que são da mesma família política de ambos os arcos da governação e que foram objectivamente cúmplices da situação a que aquele país chegou.
Com a assunção de funções governativas por parte do Syriza, observámos, pela primeira vez na história da UE, um comportamento político de resistência aos interesses e aos ditames que têm dominado a política europeia. Ainda que por vezes de forma errática e com ziguezagues de difícil entendimento, pelo menos para quem está de fora, a verdade é que resistiu, contestou e desconstruiu publicamente a estratégia avassaladora que tem vindo a destruir económca e socialmente vários países europeus. Até hoje, foi o único governo que o fez. E porque defende uma política diferente que colide com os interesses instalados, o governo grego é um alvo a abater pelos governantes dos outros dezoito países do euro. É por isso que, apesar das enormes cedências que os seus responsáveis aceitaram fazer (algumas delas ultrapassando claramente as linhas vermelhas inicialmente definidas), o massacre dos dezoito prosseguiu ontem e promete continuar hoje na reunião do Eurogrupo. Agora já não é suficiente a imposição de mais um programa de austeridade, é necessária a humilhação e a descredibilização do governo que ousou e ousa pensar diferente. 
Como é aceitável que homens como Dijsselbloem (presidente do Eurogrupo) ou Schäuble (ministro das Finanças da Alemanha) tenham ontem acusado os responsáveis gregos de não serem credíveis nem confiáveis, se o primeiro foi capaz de declarar no seu currículo possuir um mestrado em Economia Empresarial, pela University College Cork, quando esse programa nunca existiu nessa instituição irlandesa; e o segundo foi acusado de ter recebido dinheiro de um comerciante de armas num envelope, para financiar ilegalmente o seu partido, no tempo de Helmut Kohl?
Sem critério ético e com políticas fanáticas, o projecto europeu de paz e de bem-estar está em desmoronamento. Para este objectivo, a Grécia é apenas um pretexto.

2. Tentando contribuir para que não fiquemos sempre reféns da falta de seriedade jornalística de uma parte da nossa comunicação social, que deturpa ou omite parcial ou totalmente informação relevante, aqui fica a tradução integral, realizada pela página electrónica InfoGrécia, do discurso proferido pelo primeiro-ministro grego no Parlamento Europeu, na passa terça-feira:
Senhores Deputados, 
É uma honra para mim falar neste verdadeiro templo da democracia europeia. Muito obrigado pelo convite. Tenho a honra de me dirigir aos representantes eleitos dos povos da Europa, num momento crítico tanto para o meu país, a Grécia, como para a zona euro e também para a União Europeia como um todo. 
Encontro-me entre vós, apenas alguns dias após o forte veredito do povo grego, seguindo a nossa decisão de lhes permitir expressar a sua vontade, para decidir diretamente, para tomar uma posição e para participar ativamente nas negociações sobre o seu futuro. Apenas alguns dias após o seu forte veredito instruindo-nos a intensificar os nossos esforços para alcançar uma solução socialmente justa e financeiramente sustentável para o problema grego – sem os erros do passado que condenaram a economia grega, e sem a austeridade perpétua e sem esperança que tem aprisionado a economia num círculo vicioso de recessão, e a sociedade numa depressão duradoura e profunda. O povo grego fez uma escolha corajosa, sob uma pressão sem precedentes, com os bancos fechados, com a tentativa por parte da maioria dos meios de comunicação social de aterrorizar as pessoas no sentido que um voto NÃO levaria a uma rutura com a Europa. 
É um prazer estar neste templo da democracia, porque acredito que estamos aqui para ouvir primeiro os argumentos para, em seguida, poder julgá-los. “Ataquem-me, mas primeiro ouçam o que tenho para dizer”. 
(Para continuar a ler, clicar aqui).

domingo, 5 de julho de 2015

Ó Gregos

            
«Ó Gregos, não é porque me faltem soldados bárbaros que vos chamo, mas porque vos considero melhores e mais fortes que muitos bárbaros: por esta razão vos acrescento às minhas forças. Assegurai-vos pois de que estareis à altura da liberdade que possuís e pela qual vos digo abençoados. E ficai a saber que prefiro a liberdade a tudo quanto possuo e até a muito mais. Deixai-me explicar-vos para que guerra vos encaminhais. A massa do inimigo é vasta e avança com grandes brados; queirais vós enfrentá-los, inamovíveis; quanto ao outros, até a mim me envergonha a espécie de homens em que se tornaram os habitantes desta terra. »  
Palavras de Ciro, o Jovem, rei dos Persas, aos comandantes dos Dez Mil, seus aliados, e preservadas por Xenofonte, Anabasis, I. 7. 3-4 (séc. V a.C.)
(Agradecimento ao António Ferreira)