Imagem de António Matias |
De um modo que impressiona, vivemos numa cultura de absoluta não responsabilização. Em Portugal, ninguém é responsável por nada de negativo que ocorra. Na verdade, raramente se vê uma personagem pública assumir erros, sejam eles pequenas falhas ou sejam comportamentos gravosos. Nos últimos anos, esta desgraçada realidade tornou-se banal e invadiu-nos o quotidiano. Temos sido quase diariamente confrontados com situações inacreditáveis, em que os mais altos responsáveis, sejam políticos, sejam financeiros ou empresariais, fogem sistematicamente à assunção dos actos que cometem, à avocação das opções que fazem ou das decisões que tomam. E fazem-no com um à vontade que revela não só um absoluto desrespeito por quem os elegeu e/ou por quem foi vítima da sua negligência ou da sua incompetência, como denota bem os valores que orientam as condutas das nossas elites.
Alguns exemplos recentes.
A nível político. Há quatro anos, o país estava prestes a entrar em bancarrota, todavia, o primeiro-ministro do governo da altura, José Sócrates, considerou-se, como ainda hoje se considera, desresponsabilizado por essa situação. Como é explicável que um chefe de governo se tenha como isento de responsabilidades na falência do país que governa? E como é possível aceitar que, posteriormente, o protagonista desta situação tenha passado a ocupar espaço e tempo mediáticos (o que deixou de fazer, porque, entretanto, foi preso) propagandeando uma indecorosa narrativa de vitimização e de auto-absolvição? Como é possível que o próprio se permita desempenhar esse papel e como é possível que a sociedade o tolere?
Teixeira dos Santos, à época, ministro das Finanças, não pediu desculpas por ter gerido mal os dinheiros públicos e por ter permitido que a dignidade da nação tivesse sido atingida. Pelo contrário, não se coibiu nem se coíbe de fazer conferências pelo país, onde emite pareceres e conselhos sobre a nossa política económica e financeira. Que valores ético-políticos sustentam este tipo de comportamento?
Lurdes Rodrigues, ex-ministra da Educação, foi condenada a três anos e seis meses de prisão, com pena suspensa, por prevaricação de titular de cargo político. Nunca assumiu a culpa do acto que esteve na base desta sentença. Inversamente, declarou-se vítima da instrumentalização das instituições da Justiça nos conflitos político-partidários. A tentativa de inversão da realidade é uma constante, por parte destes protagonistas.
Nuno Crato e João Casanova, respectivamente ministro da Educação e secretário de Estado da Administração Escolar, foram os responsáveis políticos pelo vergonhoso concurso de professores que conduziu à situação de centenas de colocações erradas e de milhares de alunos sem aulas durante quase um mês, no início do presente ano lectivo. Nenhum dos dois se considerou responsável. A única demissão que ocorreu foi a de um director-geral...
A paralisia do sistema Citius, na Justiça, teve o mesmo final. Ministra autodesresponsablizada e directores demitidos.
Situação semelhante ocorreu recentemente com as designadas listas VIP, na Administração dos Impostos. A ministra e o seu secretário de Estado auto-avaliaram-se isentos de responsabilidades. As demissões ficaram novamente a cargo de um director-geral e de um subdirector-geral.
Passos Coelho é, por sua vez, um paradigma da cultura de não responsablização. Nunca se sentiu responsável pelas inúmeras mentiras com que, há quatro anos, enganou milhares de eleitores, não se sente responsável por prestar contas transparentes sobre os rendimentos que obteve ao serviço da empresa Tecnoforma, considera que é irrelevante não ter cumprido, durante vários anos, as suas obrigações junto da Segurança Social, assim como ter-se esquecido de declarar e de pagar os seus impostos a tempo e a horas. Em Passos Coelho, a enorme facilidade com que pede responsabilidades aos outros é inversamente proporcional ao modo como (não) pede responsabilidades a si próprio.
A nível financeiro. As nossas elites banqueiras pedem meças às nossas elites políticas no exercício da não responsabilização. Na realidade, não consta que algum dos presidentes dos conselhos de administração ou algum dos principais administradores do BCP, do BPN, do BPP ou do BES tenha assumido as suas responsabilidades relativamente aos actos de gestão danosa que cometeram. Ricardo Salgado é a mais recente e notória referência do que é o culto da irresponsabilidade, em acumulação com uma desmedida impudência.
A nível empresarial. Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, ex-administradores da PT, apresentados como a elite da elite dos gestores (em particular este último), corporizam o cânone da isenção de responsabilidades. Ambos conduziram uma empresa portuguesa de reputação mundial para negócios catastróficos com perdas de muitas centenas de milhões de euros e com a entrega do seu controlo a estrangeiros (de reputação duvidosa). Mas nenhuma responsabilidade foi assumida. Apenas uma enorme amnésia. Omissões atrás de omissões e explicações vergonhosamente disparatadas foi tudo o que ouvimos destes protagonistas.
Esta pequena lista ilustra o quanto a cultura da não responsabilização está impregnada nas nossas elites. Sem um expurgo radical de protagonistas e um saneamento de valores não sairemos da mediocridade em que nos encontramos há já muitos anos.