domingo, 18 de janeiro de 2015

Ainda acerca da barbárie no Charlie Hebdo

Fotografia de Gil Coelho
1. Muitas vezes a realidade surpreende os nossos esquemas conceptuais. O atentado ocorrido no jornal Charlie Hebdo é disso um exemplo. De um lado, grande parte dos que vêem no capitalismo a única causa de todos os males, e que, por reflexo condicionado, tendem a apoiar tudo aquilo que atinja o normal funcionamento do sistema, sentiram dificuldade em não condenar os assassinatos, tal foi a barbárie e a arbitrariedade do acto. Do outro lado, dos que vêem os muçulmanos como a encarnação do diabo, houve e há dificuldade em explicar como é que dois homens conseguiram preparar com evidente à vontade aquele atentado e conseguiram andar pelas ruas de Paris, a pé e de carro, aos tiros a quem lhes apetecia, filmados por múltiplos telemóveis, sem terem sido apanhados de imediato. Isto é, sentiram dificuldade em sustentar a narrativa de que se tratou de um acto que começou e acabou no fundamentalismo islâmico, sem conivências, responsabilidades e colaborações dos do «lado de cá», dos «civilizados».

2. Não se compreende a fundamentação dos pruridos daqueles que se distanciaram do movimento simultaneamente solidário e de protesto simbolizado na frase «Je suis Charlie». Era e é evidente que a adopção desta afirmação como lema não teve nem tem nada tem que ver com concordâncias ou discordâncias relativamente à linha editorial daquele jornal. Para o caso, a linha editorial do jornal é  irrelevante. «Je suis Charlie» era e é várias coisas: manifestação de solidariedade para com as vítimas da barbárie; protesto contra a barbárie; defesa da liberdade de expressão.

3. Seja qual for o ponto de vista (excepto, evidentemente, para quem defende a barbárie), os assassinatos cometidos na redacção do Charlie Hebdo são repugnantes. Segundo os valores do statu quo, naturalmente que todos os actos desta natureza são inaceitáveis, se outras razões não existissem, bastaria a perturbação da ordem vigente como motivo suficiente para a sua reprovação; segundo uma perspectiva de contestação dos valores dominantes (seja reformista ou revolucionária), nenhum acto de pura selvajaria, arbitrário e tendo como pano de fundo o fanatismo religioso pode ser objecto de apoio ou compreensão. Nem as reformas nem as revoluções se constroem a partir de actos de pistoleiros tresloucados.

4. O desfile do passado dia 11, pelas ruas de Paris, teve, como era de esperar, duas faces: a face da solidariedade e do protesto genuínos e a face da repugnante desonestidade política, esta última particularmente visível na primeira fila da manifestação. Desonestidade política confirmada pela dualidade de critérios com que estes «manifestantes» das primeiras filas ora defendem ora condenam a liberdade de expressão e pela indiferença que diariamente revelam perante idênticos e ainda mais graves atentados que em diversas regiões do mundo são levados a cabo.