terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Gregos, os impertinentes

Imagem sem autor identificado.
1. Historicamente somos devedores dos gregos. Foram eles que tiveram o engenho e a arte de criar os alicerces da nossa civilização. Foram eles que criaram novas formas de ver e de pensar o mundo, o ser humano e a sociedade. Foram eles que desenharam novas ideias e novos valores. Há cerca de vinte e seis séculos.
Hoje voltamos a ser devedores dos gregos. Hoje verificamos que os gregos revelam uma coragem que ainda nenhum outro povo europeu deu mostras de possuir.
Nas eleições de domingo, tiveram a coragem de romper com as «verdades» estabelecidas, com o poder estabelecido, com os interesses estabelecidos. Não tiveram medo de enfrentar as obscenas ameaças externas e de afrontar as chantagens internas. Não tiveram medo de desalojar as elites políticas que, lá como cá, se consideravam e se consideram as únicas predestinadas e capacitadas para governar.
Com lucidez e coragem, os gregos mostram que não se rendem a fatalismos e que estão determinados a percorrer outros caminhos. Se o vão conseguir não é possível saber, mas sabemos que ousam tentá-lo.

2. Em Portugal, vivemos há quase quarenta anos debaixo do domínio absoluto de dois partidos políticos: PS, e PSD — a que se junta o CDS, mediante conveniências conjunturais. Invariavelmente PS ou PSD vencem as eleições. Invariavelmente fazem as mesmas políticas. Invariavelmente conduzem o país para a bancarrota (por três vezes chamaram o FMI: em 1977, governo do PS; em 1983, governo PS-PSD; em 2011, governo PS). Invariavelmente favorecem as classes mais ricas e o sector privado e prejudicam o sector público e o mundo do trabalho. Invariavelmente estão prisioneiros de clientelas financeiras, empresariais e de consultadoria jurídica.
Mesmo os três últimos anos, que foram de brutal empobrecimento, parecem ter tido pouco efeito no julgamento dos portugueses. A acreditar nas sondagens, e a nove meses das próximas eleições legislativas, os eleitores continuam a vacilar entre os mesmos de sempre: PS e PSD.
Crédulos, medrosos (excepto à mesa do café, onde realizam destemidas revoluções) e desmemoriados, os portugueses são massacrados, mas continuam a confiar em quem os massacra, são enganados e continuam a confiar em quem os engana. Sem capacidade crítica nem de escrutínio, preparam-se para delegar o seu poder naqueles que, eleição atrás de eleição, os ludibriam.
Espanha, aqui ao lado, parece querer seguir o exemplo grego, mas Portugal continua a dar mostras de que não é capaz de tomar a iniciativa de romper com os poderes instalados. Continua a viver na lamúria. Continua a acreditar no destino. Continua à espera do milagre.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Ainda acerca da barbárie no Charlie Hebdo

Fotografia de Gil Coelho
1. Muitas vezes a realidade surpreende os nossos esquemas conceptuais. O atentado ocorrido no jornal Charlie Hebdo é disso um exemplo. De um lado, grande parte dos que vêem no capitalismo a única causa de todos os males, e que, por reflexo condicionado, tendem a apoiar tudo aquilo que atinja o normal funcionamento do sistema, sentiram dificuldade em não condenar os assassinatos, tal foi a barbárie e a arbitrariedade do acto. Do outro lado, dos que vêem os muçulmanos como a encarnação do diabo, houve e há dificuldade em explicar como é que dois homens conseguiram preparar com evidente à vontade aquele atentado e conseguiram andar pelas ruas de Paris, a pé e de carro, aos tiros a quem lhes apetecia, filmados por múltiplos telemóveis, sem terem sido apanhados de imediato. Isto é, sentiram dificuldade em sustentar a narrativa de que se tratou de um acto que começou e acabou no fundamentalismo islâmico, sem conivências, responsabilidades e colaborações dos do «lado de cá», dos «civilizados».

2. Não se compreende a fundamentação dos pruridos daqueles que se distanciaram do movimento simultaneamente solidário e de protesto simbolizado na frase «Je suis Charlie». Era e é evidente que a adopção desta afirmação como lema não teve nem tem nada tem que ver com concordâncias ou discordâncias relativamente à linha editorial daquele jornal. Para o caso, a linha editorial do jornal é  irrelevante. «Je suis Charlie» era e é várias coisas: manifestação de solidariedade para com as vítimas da barbárie; protesto contra a barbárie; defesa da liberdade de expressão.

3. Seja qual for o ponto de vista (excepto, evidentemente, para quem defende a barbárie), os assassinatos cometidos na redacção do Charlie Hebdo são repugnantes. Segundo os valores do statu quo, naturalmente que todos os actos desta natureza são inaceitáveis, se outras razões não existissem, bastaria a perturbação da ordem vigente como motivo suficiente para a sua reprovação; segundo uma perspectiva de contestação dos valores dominantes (seja reformista ou revolucionária), nenhum acto de pura selvajaria, arbitrário e tendo como pano de fundo o fanatismo religioso pode ser objecto de apoio ou compreensão. Nem as reformas nem as revoluções se constroem a partir de actos de pistoleiros tresloucados.

4. O desfile do passado dia 11, pelas ruas de Paris, teve, como era de esperar, duas faces: a face da solidariedade e do protesto genuínos e a face da repugnante desonestidade política, esta última particularmente visível na primeira fila da manifestação. Desonestidade política confirmada pela dualidade de critérios com que estes «manifestantes» das primeiras filas ora defendem ora condenam a liberdade de expressão e pela indiferença que diariamente revelam perante idênticos e ainda mais graves atentados que em diversas regiões do mundo são levados a cabo.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Novamente os gregos

Autor da fotografia: António Nunes.
No próximo dia 25 de Janeiro, sabemos que há a possibilidade de ocorrer uma significativa alteração no poder político da Grécia. O Syrisa é o partido que se encontra à frente nas sondagens e é o partido que defende uma ruptura com a via da austeridade e do empobrecimento que tem dominado a Europa.
Perante esta possibilidade de democraticamente o povo grego eleger um governo que se propõe combater o statu quo, surgiram de imediato reacções ameaçadoras e desrespeitosas dirigidas aos gregos, provenientes de quase toda a gente e de quase todo o lado: de primeiros-ministros, passando por ministros e comissários europeus até aos mais insignificantes comentadores, todos se consideram no direito de, com acinte, prometerem retaliações à Grécia.
É nestas situações que a hipocrisia política cai com uma rapidez que impressiona. São justamente aqueles que a todo o tempo mais falam em democracia representativa e em liberdade de escolha que mais rapidamente atiram às malvas as regras dessa democracia representativa e o direito à liberdade de escolha, sempre que do seu exercício possam resultar escolhas que ponham em questão os interesses dominantes. É mesmo disto que se trata. Na verdade, o que está em jogo na Grécia é algo relativamente simples: ou os eleitores optam por dar o poder aos partidos que garantem a manutenção do sistema económico e financeiro vigente — o sistema que levou a Grécia e a Europa à situação actual — ou optam por delegar esse poder em partidos que se propõem combater e alterar substancialmente esse sistema.
No fundo, trata-se de optar entre manter os pilares de uma sociedade que assegura leis e regras protectoras da concentração de uma incomensurável riqueza nas elites financeira e económica, em detrimento do bem-estar do resto da população, ou alterar esses pilares, mudando leis e regras de modo a que a riqueza seja mais bem distribuída.
É verdade que a vida é complexa e que normalmente existem múltiplos factores que intervêm numa realidade, mas essa complexidade não apaga nem pode servir para se pretender apagar as coisas simples que persistem, como é o facto de existirem objectivamente, nas sociedades que valorizam mais o capital do que o trabalho, interesses opostos, e que os interesses dos que estão do lado do trabalho são aqueles que sistematicamente ficam desprotegidos. Mais do que desprotegidos, esses interesses são cruelmente pisados.
Ora, o que na Grécia surge agora como uma possibilidade — um governo politicamente não alinhado com os interesses dominantes — está a deixar assustadas as elites europeias. Até porque se a possibilidade grega se tornar realidade, é muito provável que outras possibilidades surjam e outras se reforcem, como é o caso do partido Podemos, em Espanha. A hipótese de que um movimento destes possa desenvolver-se em diferentes regiões é uma perspectiva terrível para os «donos disto tudo» nos diferentes países europeus, tal é a dimensão do que possuem e que de nenhum modo querem perder.
Lamentavelmente, os portugueses parecem pouco interessados nestas novas possibilidades que despontam.