domingo, 31 de dezembro de 2017

9 anos e 288 dias depois

Formal e simbolicamente, este blogue encerra hoje os seus serviços, isto é, no último dia do ano de 2017. Digo formal e simbolicamente, porque, de facto, há vários meses que o blogue já não tem actividade — o último post ocorreu no passado dia 1 de Maio. 
A dificuldade de compatibilizar os compromissos profissionais com uma escrita informada e responsável sobre os assuntos da educação foi progressivamente aumentando até chegar ao ponto de passar de dificuldade a impossibilidade.

Este blogue nasceu no dia 18 de Março de 2008. Nesse dia, o texto de abertura do blogue dizia:
«Este blogue nasce numa conjuntura particularmente grave da Educação em Portugal. Nasce no momento em que a política educativa, desprezando a substância, se centra na aparência e trabalha exclusivamente para a estatística, simulando, contudo, estar a elevar a qualidade da formação dos portugueses e a qualidade do ensino.
Paralelamente, foi esta mesma política educativa que elegeu como alvo os professores, acusando-os de serem os responsáveis pelo estado a que chegou a educação no nosso país. Com arrogância e incompetência política e técnica, os responsáveis pela pasta da educação decidiram menosprezar e desprezar a dignidade dos docentes. Consequência, a líder converteu em seus opositores aqueles que deveria liderar.»
A líder da pasta da Educação era Maria de Lurdes Rodrigues — certamente, a pior ministra(o) da Educação, desde 25 de Abril de 1974 —, o líder do governo era José Sócrates — certamente, o primeiro-ministro que mais mal fez a Portugal, desde 25 de Abril de 1974.
Para a Educação, os seis anos de governação do Partido Socialista foram anos de chumbo, cujas consequências ainda hoje todos estamos a pagar. Para o país, os seis anos de governação do Partido Socialista foram anos de encenação, de inversão de valores, de degradação da vida política e de engano dos portugueses, que culminaram com um vexatório pedido de resgate internacional para nos salvar da bancarrota. As consequências destes anos de governação ainda hoje estamos todos a pagar e, desgraçadamente, continuaremos a pagar por muito mais tempo.
Este blogue nasceu, pois, para dar um contributo, ainda que evidentemente modesto, ao movimento de resistência e combate às danosas políticas educativas de Rodrigues e Sócrates.
Na altura, convidei um grupo de colegas para colaborarem neste blogue, que pronta e generosamente aceitaram, mas que por motivos diversos foram deixando de o poder fazer. Quero, contudo, dirigir-lhes o meu agradecimento pela colaboração que cada um, na medida das suas possibilidades, deu ao blogue.
Após a queda do governo do PS, seguiu-se o período em que PSD e Passos Coelho foram os responsáveis pelo poder executivo. Crato foi o protagonista da política educativa desse governo: menos obsessivo na guerra aberta aos professores, não foi, contudo, menos incompetente nas opções de fundo que tomou. Comandado por uma ideologia cega e sem sustentação pedagógica, Crato teve de ser combatido como foi Rodrigues; assim como Passos teve de ser combatido como tinha sido Sócrates. Este blogue procurou continuar a dar o seu (modesto) contributo, ao cumprir o que entendia ser um dever cívico: opor-se à governação do PSD e da designada Troika — ainda que o tempo disponível fosse escasseando para o cumprimento responsável desse dever.
Voltamos a ter um governo do PS, agora liderado por António Costa. E temos um ministério da Educação, agora liderado por Tiago Brandão Rodrigues. Conforme escrevi em 1 de Dezembro de 2015, não conseguia compreender que alguém sem cultura política conhecida e sem conhecimentos específicos sobre a pasta da Educação tivesse sido convidado para ser seu responsável e esse alguém tivesse aceitado o convite. Dois anos depois, o enigma continua por esclarecer. O ministro não está à altura da tarefa que aceitou, e o PS, desgraçadamente, continua a mostrar pouco respeito por esta área da governação. Depois de duas escolhas catastróficas (Rodrigues e Alçada), considerou que a inexperiência política e a ignorância técnica constituíam os melhores requisitos para o exercício do cargo de ministro da Educação. Resultado: meia dúzia de ideias gerais (umas boas e outras más), ausência de um projecto sustentado e sustentável, opções erráticas e o pior está para vir...

Não é, pois, por falta de motivos que este blogue fecha portas, é apenas por falta de tempo disponível. A Educação é algo demasiado sério, para ser objecto de opiniões pensadas e escritas por impulso. É preciso tempo para recolher informação, para a estudar, para sobre ela pensar e para acerca dela opinar. Ora, manifestamente, neste momento, não tenho esse tempo.
Termino com um agradecimento a todos aqueles que durante estes anos foram dedicando alguns minutos do seu lazer a seguir este blogue: bem hajam!
Até um dia.

sábado, 15 de abril de 2017

Radiografia de um artigo (supostamente) sobre educação

Fotografia de Gustavo Almeida.
O artigo «Os finalistas do eduquês» (aqui) é um confrangedor amontoado de dislates. A argumentação, quando existe, é pobre. Grande parte do texto é uma enumeração de frases panfletárias.
O artigo tem duas partes. 

Primeira parte. 
1.º parágrafo. Metade é auto-elogio. A outra metade é ininteligível: «factos», «prova da realidade» e «espírito científico» é tudo o mesmo. Coitada da Matemática que não tem «factos» para lidar nem «realidade» que lhe dê «provas»; coitada da Microfísica que lida com uma «realidade» que lhe dá «factos» paradoxais; coitada da Lógica, coitada da...
2.º parágrafo. Somos informados de que estamos a enfrentar «o mais brutal [...] ataque à Razão, à Civilização e aos grandes valores universais comuns.» Depois da leitura desta frase, pensa-se que a seguir virá uma condenação do terrorismo. Mas não. Quem é responsável pelo mais brutal ataque «à Razão, à Civilização e aos valores universais» é a «ideologia relativista, permissiva e obscurantista» que, segundo o autor, tem dominado as nossas escolas.
3.º parágrafo. Somos mandados para um blogue. Somos informados de que devemos ler a tradução de um discurso do ministro da Educação inglês.
4.º parágrafo. Auto-elogio, novamente. O discurso do ministro inglês, afinal, segundo o autor do artigo, diz o óbvio. Por coincidência, precisamente aquilo que o autor do artigo diz andar há muito a «gritar». «Sozinho», acrescenta, em tom de queixume.

Segunda Parte.
1.º parágrafo. Somos informados de que o «vandalismo sazonal perpetrado por "estudantes" portugueses em Espanha», assim como as praxes e a violência nas escolas têm uma causa: a ideologia mencionada no 2.º parágrafo, da primeira parte.
2.º parágrafo. Somos informados de que as escolas traficam as viagens desses estudantes, mas ignoram-nas, assim como o ME.
3.º parágrafo. Somos informados de que devemos generalizar: o vandalismo é geral, os nossos estudantes são vândalos. Fica-se com a dúvida se o vandalismo sendo geral deixa de ser sazonal, ou, se o sendo, é um sazonal geral. Somos também informados de que os vândalos não pertencem a grupos sociais desfavorecidos.
4.º parágrafo. Os vândalos são produto da tal ideologia mencionada no 1.º parágrafo da segunda parte e no 2.º parágrafo da primeira parte.
5.º parágrafo. Somos informados de que, no futuro, os vândalos irão votar na Catarina Martins. Fim.

Pude verificar que, há pouco mais de dois meses, o mesmo autor elogiou as políticas educativas de David Justino, Lurdes Rodrigues e Nuno Crato (por se oporem à tal «ideologia relativista, permissiva e obscurantista» ­­­— aqui, 8.º parágrafo). Ora, David Justino foi ministro da Educação entre 2002 e 2004, Lurdes Rodrigues entre 2005 e 2009 (Isabel Alçada, sua continuadora, entre 2009 e 20011) e Nuno Crato entre 2011 e 2015. Todos «anti-eduquês», segundo o pensamento do autor. Catorze anos consecutivos de «anti-eduquês».
Isto significa que os vândalos de que o autor fala, afinal, não são finalistas do «eduquês». São finalistas das políticas de Justino, Rodrigues e Crato, que o autor elogia e admira.
É a «prova da realidade» e dos «factos»...

Nota: sou, há muito, adversário, no meu quotidiano profissional, do designado «eduquês» (se por «eduquês» se entender ausência de rigor, ausência de exigência, ausência de orientação pedagógica, ausência de valores, desvalorização do conhecimento, desvalorização do professor, etc.). Porque sou adversário da falta de rigor e da falta de exigência, verbero artigos que não tenham o mínimo de rigor nem o mínimo de exigência. Verbero prosa que seja filha do facilitismo intelectual.

sábado, 4 de março de 2017

Acerca do prefácio de um perfil e outras notas

Sem autor identificado
«Consideração da diversidade e da complexidade como fatores a ter em conta». «Criar um quadro de referência que pressuponha a liberdade, a responsabilidade, a valorização do trabalho, a consciência de si próprio, a inserção familiar e comunitária e a participação na sociedade que nos rodeia. «Equilíbrio entre o conhecimento, a compreensão, a criatividade e o sentido crítico». «O aprender a conhecer, o aprender a fazer, o aprender a viver juntos e a viver com os outros e o aprender a ser». «O global e o local, o universo e o singular, a tradição e a modernidade, o curto e o longo prazos, a concorrência e a igual consideração e respeito por todos, a rotina e o progresso, as ideias e a realidade». 
Estas citações são excertos das primeiras vinte linhas do prefácio do documento intitulado Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, que se encontra para discussão pública e que também é conhecido como Perfil dos Alunos para o Século XXI. 
O prefácio tem trinta e cinco linhas. As sete linhas seguintes às primeiras vinte apresentam uma listagem, numa adaptação nem sempre feliz, dos sete saberes que Edgar Morin considerou necessários para a educação do futuro (trata-se de um trabalho, elaborado em 1999, a convite da UNESCO, que sintetiza as principais ideias do autor sobre a educação para o nosso milénio e as propostas formuladas por cerca de duas dezenas de personalidades de todo o mundo ligadas à educação). Depois da listagem, vêm as oito linhas finais onde é referida a educação, a cultura, a ciência, o saber e o saber fazer; o poeta, o artista, o artesão, o cientista, o desportista e o técnico; as aprendizagens, a inclusão, o desenvolvimento sustentável, a adaptabilidade, a estabilidade, o saber e as diferenças.
As trinta e cinco linhas impressionam pelo amontoado de conceitos que comportam e pela sensação de cansaço e de vazio que provocam em quem as lê, apesar de serem apenas trinta e cinco. Quando se quer dizer tudo acaba-se por dizer nada. 
O problema é que o resto do documento sofre, grosso modo, do mesmo mal do seu prefácio, a que acresce a circunstância de ser repetitivo e às vezes presunçoso. É pena, porque, no meio da amálgama, as ideias boas acabam por ser trucidadas pelas ideias banais e pelo descrédito que o emaranhado suscita.

Além disso, no documento parecem existir fragilidades conceptuais, entre elas: 
i) A falta de uma fundamentação que explique como se compatibiliza este perfil único de aluno com a simultânea defesa de multiplicidade de percursos formativos; 
ii) Como se compatibiliza este perfil dos alunos à saída de 12 anos de escolaridade obrigatória com a circunstância de, ao fim desse tempo, uns alunos já terem concluído o 12.º ano e outros ainda poderem estar, por exemplo, a concluir o 9.º ano?; 
iii) Por que razão o termo «valores» é conceptualmente tão mal tratado, na definição que é apresentada? E por que razão, logo de seguida, se escrevem coisas como esta: «O processo [valorativo] é mais complexo e multilateral. Trata-se da relação construída entre a realidade objetiva, os componentes da personalidade e os fatores de contexto [...]»? Se assim é, como se compatibiliza essa construção valorativa única (já que, como é dito, ela resulta da relação, certamente irrepetível, entre a realidade, a personalidade de cada um e os factores específicos de contexto) com a definição dos cinco valores enunciados no documento como valores para todos?
iv) Que elementos de natureza cognitiva e psicológica fundamentam e dão sentido a muitos dos descritores operativos propostos? Por exemplo, aos seguintes dois descritores operativos que enunciam que os alunos devem: 
- «identificar, utilizar e criar diversos produtos linguísticos, literários, musicais, artísticos, tecnológicos, matemáticos e científicos, reconhecendo os significados neles contidos e gerando novos sentidos»;
- «generalizar as conclusões de uma pesquisa, criando modelos e produtos para representar situações hipotéticas ou da vida real. Testar a consistência dos modelos, analisando diferentes referenciais e condicionantes. Usar modelos para explicar um determinado sistema, para estudar os efeitos das variáveis e para fazer previsões acerca do comportamento do sistema em estudo. Avaliar diferentes produtos de acordo com critérios de qualidade e utilidade em diversos contextos significativos».
v) O conteúdo destes dois descritores é compatível com o terceiro princípio enunciado na página 8: «A escola contemporânea agrega uma diversidade de alunos tanto do ponto de vista socioeconómico e cultural como também do ponto de vista cognitivo e motivacional. A adoção do perfil é crítica para que todos possam ser incluídos [...]»?
vi) A seriedade intelectual permite que se enuncie como princípio que «cabe à escola o dever de dotar os jovens de conhecimento para a construção de uma sociedade mais justa»? Se os autores não tiveram o cuidado de esclarecer o que entendem por «uma sociedade mais justa», o que é que estão verdadeiramente a solicitar à escola? 
Uma sociedade mais justa é aquela em que o Estado assume um grande papel interventivo na sociedade e, deste modo, assume a função de fazer a redistribuição de rendimentos? Ou uma sociedade mais justa é aquela em que o Estado assume um papel mínimo e deixa que a dita sociedade civil se auto-regule? Ou uma sociedade mais justa é aquela em que...? Para que modelo de «sociedade mais justa» a escola tem o dever de dotar os jovens de conhecimento?
Elencar generalidades é uma tentação, mas não é certamente uma boa tentação.

Não sei o que vai resultar da discussão pública em curso, mas se o documento que vier a ser adoptado não for substancialmente diferente deste, temo que tudo isto não passe de uma enorme perda de tempo para todos e mais um momento falhado na nossa história da Educação.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Um problema de percepção ou de valores?

Fotografia de Gustavo Almeida.
A trapalhada que envolve o ministro das Finanças é lamentável. Lamentável para o próprio, lamentável para o país e lamentável em relação ao que (mais uma vez) revela sobre a ética política do PSD e do CDS.
Para o próprio, porque sai política e eticamente desgastado. Para o país, porque, evidentemente, sai a perder com a fragilidade política do ministro. Para o PSD e CDS, porque o retrato que deles fica é (mais uma vez) miserável, na medida em que aquilo que verdadeiramente move estes dois partidos não é saber se Mário Centeno celebrou ou não um acordo com Domingues (acordo que eles até subscreveriam...), o que os move é o desejo de achincalhar com o intuito de fragilizar todo o Governo — os fins justificam os meios. Na realidade, a mentira nunca foi para o PSD e CDS um problema ético, nem sequer político, caso contrário, Passos Coelho teria sido derrubado, por acção dos deputados desses dois partidos, do cargo de primeiro-ministro poucos meses após ter tomado posse. Na história recente da democracia portuguesa, não houve um primeiro-ministro que tivesse mentido tanto como mentiu Passos Coelho — nem mesmo Sócrates. Repugna, por isso, ver o comportamento descontrolado dos dirigentes do PSD e do CDS, na busca obsessiva pelo exercício conspurcado da política.

Todavia, o que interessa é saber qual foi a causa desta trapalhada que envolve Mário Centeno. Erros de percepção, como alega o ministro? Não parecem ter sido — parece até duvidoso que tais erros de percepção tenham acontecido. O que, na verdade, gerou este problema é uma opção por valores que conduzem a caminhos tortuosos, opção feita pelo ministro Centeno e pelo primeiro-ministro António Costa.
Ao que parece, a cultura de valores destes dois governantes vê no sector privado o expoente da competência e da eficácia. E, à luz dessa valorização, e de modo a aliciar alguns protagonistas desse mundo privado para a CGD, decidiram, sem pudor político nem ético, começar a pagar vencimentos pornográficos, alterando, para esse efeito, o estatuto do gestor público. Do mesmo modo, não lhes repugnaria, como agora é claro, isentar esses protagonistas do sector privado em trânsito para o sector público das obrigações legais que os gestores das empresas públicas têm, isto é, da obrigação de apresentarem declarações de rendimentos ao Tribunal Constitucional. 
Este quadro de valores não é aceitável. Hipotecar a exigência de rigor, de transparência e de equidade salarial no exercício de qualquer cargo ou função pública é optar por valores que indicam um caminho oposto àquele que deveremos seguir. É optar por valores que se opõem à cultura que elege os bens públicos e as exigências das funções públicas como modelos a seguir pela sociedade.
A origem da trapalhada é esta. Se os valores que norteiam a prática política destes dois governantes fossem outros, a trapalhada não teria existido.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Incómodos milionários

A recente discussão provocada pelo anúncio de um imposto sobre patrimónios com valor fiscal superior a 500 mil euros (ou a um 1 milhão, na versão mais delicada) foi interessante de acompanhar. O interesse não residiu na elevação do debate nem na qualidade dos argumentos que contestavam o imposto (de ambas não houve sinal), o interesse esteve na observação do descontrolo reactivo e na desonestidade intelectual que o acompanhou. Na verdade, quando são tocados, ainda que suavemente, os interesses dos detentores de riqueza muito acima da média, rapidamente desaparece o discurso da justiça social e da solidariedade, e os protagonistas desses interesses passam a socorrer-se da mentira intencional e da acusação falsa e maldosa. 
Durante os quatro anos do governo PSD/CDS ouvimos sistematicamente o discurso de que todos tínhamos de fazer sacrifícios, pois todos tínhamos vivido acima das nossas possibilidades. Viemos, depois, a verificar que, afinal, não tínhamos sido todos a viver acima das possibilidades, mas somente alguns. Banqueiros, patrões e políticos desonestos e incompetentes viveram, de facto, acima das suas possibilidades e conduziram o país à bancarrota. Não foram os pensionistas e reformados (excepto aqueles que usufruem de reformas milionárias, pagas pelo Estado) nem foram os trabalhadores em geral que viveram acima das suas possibilidades. O crédito malparado de particulares, um excelente barómetro para se avaliar o endividamento excessivo, estava, na altura do resgate, significativamente abaixo da média europeia (isto, apesar do pornográfico incentivo ao endividamento que os bancos promoviam). Isto é, a população portuguesa não contraiu créditos em excessos, ao contrário do que insistentemente foi afirmado. Foram banqueiros, patrões e alguns políticos quem o fez.
Também já pudemos verificar que, afinal, não nos sacrificamos todos do mesmo modo para satisfazer as exigências dos credores. Vários estudos nacionais e estrangeiros têm confirmado o que a percepção há muito revelava: foram os mais pobres e os menos favorecidos aqueles que mais sacrifícios foram obrigados a fazer. Foram, novamente, os pensionistas, os reformados, os subsidiados, os trabalhadores de mais baixos rendimentos e os funcionários públicos sobre quem recaiu a mais pesada factura.
Apesar disto, a notícia de que poderia passar a vigorar um imposto sobre quem tem um património avultado, isto é, sobre o tal 1% mais rico e milionário, desencadeou uma reacção histérica dos visados, que foi ampliada por vários órgãos de comunicação social. Na verdade, muitos jornais, rádios e televisões comportaram-se, e muitas vezes é assim que se comportam, como meros amplificadores dos interesses da minoria milionária. Sem critério jornalístico nem isenção, prestam-se a exercícios pouco dignos de porta-vozes dos bem instalados. Foi assim que a minoria milionária tentou fazer-nos crer que o anunciado imposto iria atingir a classe média e que estava em preparação um assalto à bolsa dos remediados. 
A desonestidade, a hipocrisia e o grotesco andaram aqui a par, mas o que importa mais uma vez verificar é que em nenhuma circunstância se pode esperar que a classe rica aceite as regras da justiça social. Só o Estado democrático pode e deve, pela lei, obrigá-la a cumprir essas regras.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Taxa de IRS para mais ricos não sobe

Fotografia de Gustavo Almeida
Este era o título de uma notícia publicada há poucos dias no sítio do Expresso. Segundo este jornal, trata-se da única certeza que neste momento há sobre o que irá acontecer, em termos de IRS, no próximo ano. O argumento avançado, por uma fonte do Governo, para que não haja um aumento da taxa do escalão mais elevado daquele imposto é, cito da mesma notícia: «o aumento de tributação dos mais ricos não teria grande impacto».
Se a notícia for verdadeira, é lamentável. Na verdade, é lamentável que: a) não haja aumento deste imposto para o mais ricos; b) o fundamento dessa decisão seja o reduzido impacto orçamental desse aumento. Como é igualmente lamentável que continue ser aplicada a mesma taxa a quem tem um rendimento anual de 80 mil euros e a quem tem o dobro ou triplo desse rendimento.
Do ponto de vista da justiça social, não há nenhuma justificação aceitável para que os rendimentos milionários não sejam mais tributados, enquanto persistirem os níveis de pobreza que temos. Um Estado não pode, na parte em que tem poderes para actuar, ser co-responsável na manutenção de situações de desigualdade aviltante. Não é possível o Estado assistir de forma complacente à contínua degradação de vida de milhares de pessoas e, em simultâneo, ao contínuo e muitas vezes pornográfico enriquecimento de alguns. Não é suportável emocional e moralmente presenciar este espectáculo. O conceito de dignidade humana não é compatível com uma sociedade que permite a mendicidade como modo de sobrevivência e, por outro lado, a opulência e a riqueza desmedida. Mas é isto que diariamente nós vemos quando olhamos à nossa volta.
É por isso absolutamente irrelevante saber se o impacto orçamental do aumento da tributação dos mais ricos é maior ou menor. O problema não é de impacto financeiro, o problema é de impacto ético.
Mas, ao que parece, para o Governo isto é irrelevante.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

7 notas

Fotografia sem autor identificado
Depois de um ano em que o trabalho não permitiu deixar aqui muitos posts e antes da partida para uns dias de pausa, algumas notas soltas:

1. Os nossos banqueiros continuam alegremente a desgraçar o país. Banqueiros que, recordemos, fizeram coro com aqueles que entre 2011 e 2015 nos disserem repetidamente que «andámos a viver acima das nossas possibilidades». Com ordenados pornográficos, com mordomias e privilégios escandalosos, os homens da finança vão destruindo uma a uma as instituições bancárias e vão endereçando as facturas para as mulheres e os homens desta terra que, com ordenados miseráveis e sem nunca saberem o que são mordomias ou privilégios, vão pagando.

2. O nosso Presidente da República continua embevecido com o protagonismo que conseguiu alcançar. De afecto em afecto, de petisco em petisco, de comenda em comenda, de comentário em comentário, de feira em feira, Rebelo de Sousa arrisca-se a chegar ao final do primeiro ano de mandato sem saber muito bem em que funções foi investido e o que realmente anda aqui a fazer.

3. O líder do PSD continua igual a si próprio — agora (felizmente) sem poder. Igual a si próprio na falta de seriedade política, que foi uma constante durante os seus quatro anos de governação, e igual a si próprio na permanente defesa que faz do conglomerado de interesses que o mundo do capital lhe solicita.

4. O PS tem conseguido manter, por razões de sobrevivência eleitoral, a sua ala direita relativamente contida. Evidentemente que há uma imensa hipocrisia política que neste momento domina grande parte das hostes socialistas. São poucos aqueles que, dentro do PS, apoiam por convicção a actual solução governativa. Quando surgir a oportunidade, a ala socialista irmã gémea do PSD tudo fará para que o pântano do bloco central regresse rapidamente.

5. António Costa, enquanto primeiro-ministro, tem uma vida difícil. Quer passar pelos pingos da chuva e ficar enxuto. Não é possível. É verdade que, enquanto a chuva for miudinha e escassa e a gabardina estiver oleada, os pingos não se entranham e rapidamente secam; mas quando chegar a altura de chuvadas fortes e repetidas, António Costa vai ter de optar: ou enfrenta a chuva e molha-se ou, para evitar constipar-se, fica em casa e deixa de governar. Enfrentar a chuva e molhar-se quer dizer enfrentar o poder que neste momento domina a União Europeia (poder que tudo tem feito e continuará a fazer para destruir um governo apoiado por partidos de esquerda).

6. A actuação do Ministério da Educação tem sido confusa, como seria de esperar de quem não tinha qualquer pensamento estruturado sobre a área que (inexplicavelmente) aceitou governar. Ao fim de oito meses de governação educativa, temos boas decisões misturadas com más decisões e com decisões inexplicáveis. Mas, acima de tudo, continuamos sem saber o que pensa o ministro sobre pontos tão importantes como: a estrutura curricular do ensino básico e secundário; o modelo de gestão, o modelo de avaliação do desempenho, o modelo de colocação dos professores, a municipalização das escolas, entre outros.

7. Nota final (e filosófica): o mundo continua a ser dominado pela ideia de que os fins justificam os meios. Até no ido Europeu de futebol...

Boa pausa, para quem a puder fazer...

Para clicar








sábado, 2 de julho de 2016

A nossa complacência com as elites

Fotografia de Pedro Costa
Soubemos esta semana que Miguel Relvas ficou (finalmente) sem a licenciatura que tinha obtido ilegalmente. Também esta semana ficámos a saber que Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, Luís Pacheco de Melo e Amílcar Morais Pires (os dois primeiros, ex-presidentes da PT, o terceiro, administrador financeiro da PT, e o último, administrador financeiro do BES) foram acusados pela CMVM de burlarem o mercado com informações falsas nos relatórios e contas que apresentaram. Também os membros da Comissão de Auditoria da PT foram acusados, pela mesma entidade, de incumprimento das suas funções de fiscalização.
Estas são as mais recentes acusações de um infindável rol de processos resultantes de investigações realizadas pelas autoridades à actividade desenvolvida, nos últimos anos, pela designada elite financeira e empresarial. As acusações são às dezenas e os acusados às centenas. Esta elite tem-se revelado especialmente vocacionada para a prática de crimes.
Junte-se a este amontoado de indivíduos pertencentes à elite dos banqueiros e dos patrões o grupo de uma outra elite, a dos políticos que foram ou estão a ser objecto de processos judiciais (um primeiro-ministro, ministros, deputados, autarcas), e o número de implicados passa a atingir proporções verdadeiramente assustadoras.
Apesar destas elites já terem o usufruto indevido de indecorosas mordomias, que lhes advêm do facto de pertencerem a classes sociais desmedidamente privilegiadas, isso não as inibe de acumularem esses privilégios com a prática de gravíssimos crimes financeiros e económicos. Gente medíocre, incompetente e criminosa tem, pois, dominado a nossa vida colectiva.
Todavia, o olhar com que lemos estes factos não é menos assustador: olhamo-los de forma condescendente e resignada, encaramo-los como um azar do nosso destino colectivo ou, segundo um exercício intelectual supostamente mais elaborado, como uma fatalidade inerente à natureza humana... 
No dizer destes olhares, é uma inevitabilidade do destino ou da natureza humana uns terem de pagar (enquanto vítimas de exploração, de burla, de roubo, de corrupção, de evasão fiscal, etc.) para que outros possam usufruir, legal ou ilegalmente, do esplendor de uma vida apenas sustentável na ordem dos milhares ou dos milhares de milhões, seja qual for a divisa de que estejamos a falar. Uma oculta e misteriosa lei dividiria, portanto, os seres humanos em dois grupos: os que trabalham e pagam; e os que recebem e fruem, legal ou ilegalmente. Esta suposta lei da natureza seria a justificação para uma atitude tolerante que todos deveríamos ter em relação às desigualdades sociais legais e uma atitude passiva em relação à designada criminalidade de colarinho branco, porque o seu combate seria da exclusiva responsabilidade do poder judicial.
Contudo, há outros modos de olhar para esta realidade. Um outro modo é aquele que vê esta situação como a consequência decorrente, em grande parte, de uma demissão, de uma renúncia, de uma fuga ao cumprimento de um dever, que é simultaneamente um direito. Refiro-me ao dever e ao direito de exercermos o escrutínio directo de todas as actividades públicas que se desenvolvem à nossa volta. Refiro-me ao dever e ao direito de não delegarmos, sem controlo, quaisquer poderes públicos. Ao dever e ao direito de não aceitarmos a ideia de que existem seres humanos superiores a outros e de que essa alegada superioridade lhes dá direitos que ficam vedados aos restantes. O próprio exercício da Justiça tem de ser rigorosamente escrutinado. Polícias, advogados, magistrados e juízes não são seres humanos à parte dos restantes, possuídos de poderes intocáveis. Os poderes de que usufruem foram-lhes poderes emprestados/delegados pelos cidadãos (e porque lhes foram emprestados/delegados, também lhes podem ser retirados ou alterados).
Enquanto não realizarmos este dever/direito de cidadania plena em todos os locais e em todas as actividades onde desenvolvemos as nossas vidas, seremos, por inacção, coniventes com todas as situações relativas à realidade social que construimos.
Enquanto nos limitarmos ao depósito quadrienal de um boletim de voto na urna que a Junta de Freguesia nos disponibiliza, continuaremos não apenas a assistir ao aprofundamento de repugnantes desigualdades sociais como ao crescente exercício de violação das leis da nossa res publica.