A recente discussão provocada pelo anúncio de um imposto sobre patrimónios com valor fiscal superior a 500 mil euros (ou a um 1 milhão, na versão mais delicada) foi interessante de acompanhar. O interesse não residiu na elevação do debate nem na qualidade dos argumentos que contestavam o imposto (de ambas não houve sinal), o interesse esteve na observação do descontrolo reactivo e na desonestidade intelectual que o acompanhou. Na verdade, quando são tocados, ainda que suavemente, os interesses dos detentores de riqueza muito acima da média, rapidamente desaparece o discurso da justiça social e da solidariedade, e os protagonistas desses interesses passam a socorrer-se da mentira intencional e da acusação falsa e maldosa.
Durante os quatro anos do governo PSD/CDS ouvimos sistematicamente o discurso de que todos tínhamos de fazer sacrifícios, pois todos tínhamos vivido acima das nossas possibilidades. Viemos, depois, a verificar que, afinal, não tínhamos sido todos a viver acima das possibilidades, mas somente alguns. Banqueiros, patrões e políticos desonestos e incompetentes viveram, de facto, acima das suas possibilidades e conduziram o país à bancarrota. Não foram os pensionistas e reformados (excepto aqueles que usufruem de reformas milionárias, pagas pelo Estado) nem foram os trabalhadores em geral que viveram acima das suas possibilidades. O crédito malparado de particulares, um excelente barómetro para se avaliar o endividamento excessivo, estava, na altura do resgate, significativamente abaixo da média europeia (isto, apesar do pornográfico incentivo ao endividamento que os bancos promoviam). Isto é, a população portuguesa não contraiu créditos em excessos, ao contrário do que insistentemente foi afirmado. Foram banqueiros, patrões e alguns políticos quem o fez.
Também já pudemos verificar que, afinal, não nos sacrificamos todos do mesmo modo para satisfazer as exigências dos credores. Vários estudos nacionais e estrangeiros têm confirmado o que a percepção há muito revelava: foram os mais pobres e os menos favorecidos aqueles que mais sacrifícios foram obrigados a fazer. Foram, novamente, os pensionistas, os reformados, os subsidiados, os trabalhadores de mais baixos rendimentos e os funcionários públicos sobre quem recaiu a mais pesada factura.
Apesar disto, a notícia de que poderia passar a vigorar um imposto sobre quem tem um património avultado, isto é, sobre o tal 1% mais rico e milionário, desencadeou uma reacção histérica dos visados, que foi ampliada por vários órgãos de comunicação social. Na verdade, muitos jornais, rádios e televisões comportaram-se, e muitas vezes é assim que se comportam, como meros amplificadores dos interesses da minoria milionária. Sem critério jornalístico nem isenção, prestam-se a exercícios pouco dignos de porta-vozes dos bem instalados. Foi assim que a minoria milionária tentou fazer-nos crer que o anunciado imposto iria atingir a classe média e que estava em preparação um assalto à bolsa dos remediados.
A desonestidade, a hipocrisia e o grotesco andaram aqui a par, mas o que importa mais uma vez verificar é que em nenhuma circunstância se pode esperar que a classe rica aceite as regras da justiça social. Só o Estado democrático pode e deve, pela lei, obrigá-la a cumprir essas regras.