sábado, 28 de julho de 2012

Pausa

Hoje em dia fazer férias é, desgraçadamente, um luxo e uma necessidade vital. 
Um luxo, se pensarmos nos milhares de desempregados ou se pensarmos naqueles que têm salários ou pensões semelhantes a esmolas. Ver tanta gente que foi despedida e cujo futuro ficou reduzido aos limites da sobrevivência, ou ver tanta gente que trabalha ou trabalhou um ano inteiro com salários, horários e condições de trabalho miseráveis, e que não pode usufruir do descanso a que tem direito, faz pensar e sentir que ainda ter a possibilidade de fazer férias é quase uma prodigalidade — mesmo que o subsídio respectivo, que a lei consagra, tenha sido objecto de extorsão.
Por outro lado, fazer férias é uma necessidade vital. É vital para a nossa saúde mental termos a possibilidade de, pelo menos durante uns dias, deixarmos de ter contacto visual e auditivo com quem governa este país. Recordar o que Passo Coelho prometeu, há um ano, na campanha eleitoral e ver como, tomado o poder, ele agiu e age causa uma profunda repulsa. O seu comportamento foi vergonhoso, quer do ponto de vista político quer do ponto de vista ético. A trafulhice política tornou-se a marca de água deste governo e a sua credibilidade está reduzida a zero. O país ficou infestado de aldrabices, de trapacices, de «malabarices» que Coelho, Portas, Gaspar, Relvas, Crato... têm protagonizado. Mas acima de tudo o país ficou ferido com a política de barbárie social que, com um enorme desprezo pelas pessoas, este governo tem desenvolvido e quer continuar a desenvolver.
Fazer uma pausa no «convívio» com estas personalidades é vital. É vital para se preservar a sanidade psicológica e para, no regresso da pausa, se poder continuar a dar um contributo, por pequeno que seja, no combate que é imperioso prosseguir contra o actual governo e por uma política que, em primeiro lugar, respeite as pessoas.
É por isso que este blogue vai fazer uma pausa e o seu autor também. Regressamos os dois no início de Setembro.
Votos de boas férias, para quem as puder fazer.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Exames nacionais - apontamentos (12)

Um terceiro argumento a favor da realização de exames nacionais apresentado por Nuno Crato, no livro  O 'Eduquês' em Discurso Directo (2006), é o seguinte: «Há uma correlação fortíssima [entre o que o aluno responde num exame e aquilo que ele efectivamente sabe]. [...] A este propósito, é curioso relembrar as semelhanças e dissemelhanças entre as avaliações internas e externas do 12.º ano verificadas nos dados difundidos através dos rankings. Nas escolas que apresentam alunos mais bem preparados, as avaliações médias internas e externas são muito semelhantes. Em contraste, nas escolas que apresentam alunos mais mal preparados, os valores nas avaliações internas são geralmente bastante mais elevados do que os obtidos nos exames nacionais» (p. 52).
A necessidade de recurso aos «dados difundidos através dos rankings» para sustentar um argumento é um prenúncio pouco favorável sobre a sua solidez, mas, pondo isso de lado, vejamos melhor o que diz o argumento.
Crato afirma que «nas escolas que apresentam alunos mais bem preparados, as avaliações médias internas e externas são muito semelhantes.» Mas que entende Crato por «alunos mais bem preparados»? Crato não esclarece o conceito de «aluno mais bem preparado», o que, num homem que se afirma adepto do rigor, é falha grave. Temos então de procurar adivinhar o que é, para Crato, o «aluno mais bem preparado». O seu raciocínio conduz-nos a supor que para ele o «aluno mais bem preparado» é aquele que tira bons resultados nos exames. Mas isto levanta um problema, porque afirmar isto significa já pressupor que o exame é uma prova que avalia com fidelidade. Ora isto era precisamente o que Crato queria provar, que o exame tem fidelidade, ou, por outras palavras, que o exame estabelece uma «correlação fortíssima entre o que o aluno responde num exame e aquilo que ele efectivamente sabe». Crato põe-nos assim a andar em círculo: a premissa e a conclusão são uma e a mesma coisa — acontece exactamente o mesmo com a parte que se refere aos «alunos mais mal preparados». Ora, como todos sabemos, uma proposição não pode ser simultaneamente conclusão e premissa do mesmo argumento. Portanto, Crato não pode afirmar que existe «uma correlação fortíssima entre o que o aluno responde num exame e aquilo que ele efectivamente sabe», porque não apresenta provas disso. Crato pode afirmar, como qualquer um pode afirmar, que há casos em que as classificações dos exames são semelhantes às classificações internas e há casos em que classificações dos exames não são semelhantes às classificações internas. Mas daqui conclui-se o quê quanto à fidelidade dos exames? Nada.

Para além deste argumento não chegar a ser um verdadeiro argumento, porque, como vimos, não tem validade, ele suscita algumas observações adicionais.
Não se sabe bem porquê, mas é evidente que está enraízado no pensamento de Crato que um aluno «bem preparado» é um aluno que responde bem num exame. Contudo, as múltiplas e por demais conhecidas limitações avaliativas de uma prova de exame nacional impossibilitam que, com seriedade, se possa dizer que um aluno que tira um boa nota num exame seja um aluno bem preparado. A não ser que, para Crato, a escola deva ser reduzida a um campo de treino para exames. Todavia, a escola não é — e, se um dia o for, isso significará a sua destruição — um campo de treino para exames.
A escola transmite saberes, desenvolve capacidades, educa — pelos valores que escolhe e que pratica — e forma para vida. Os exames, como é óbvio, não podem fazer esta avaliação global. É por isso que há alunos verdadeiramente bem preparados em todas estas vertentes que obtêm classificações em exames nacionais abaixo da sua real preparação e há alunos que globalmente estão menos bem preparados, mas que obtêm, em exames nacionais, classificações superiores, porque a sua «boa preparação» circunscrevia-se fundamentalmente a estar capacitado para responder a um exame de determinada natureza e com determinadas características. Mas isto não é um aluno «bem preparado», é um aluno preparado para fazer exames, ponto final.
A este propósito conviria que Crato lesse (ou relesse) com atenção o estudo realizado pela Universidade do Porto, e divulgado há pouco meses, que mostra não existir correlação entre as notas mais altas obtidas nos exames nacionais e os melhores desempenhos dos alunos, nos cursos superiores que frequentam. Quase todos os melhores alunos, nos diferentes cursos da Universidade Porto, não são aqueles que mais altas classificações obtiveram nos exames nacionais. Isto revela que, de facto, os alunos melhor preparados não eram aqueles que conseguiram notas mais altas nos exames.
As conclusões deste estudo levaram a que o reitor daquela Universidade preconizasse uma reformulação no modo como actualmente se procede à selecção dos alunos para o ingresso no ensino superior. Este estudo, contudo, tem sido olimpicamente ignorado pelos fundamentalistas dos exames nacionais, de entre os quais, Nuno Crato, actual ministro da Educação e Ciência.

(Continua)

Hoje, em Lisboa


quinta-feira, 26 de julho de 2012

Cortes na Função Pública e impúdicas contradições

O descontrolo verbal contra a declaração de inconstitucionalidade do corte dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos não pára. A imagem de contenção e de razoabilidade que os sectores dominantes da nossa sociedade gostam de preservar deu lugar a uma rara desorientação e à incontinência discursiva. Tudo isto porque aquilo que lhes era particularmente interessante e cómodo ver — os funcionários públicos, os pensionistas, para além dos desempregados, a pagarem o grosso da crise — já não pode ocorrer no próximo ano, do modo vergonhoso como este ano ocorreu.
A argumentação com que a elite governamental, empresarial e financeira se socorre para esgrimir contra a decisão do Tribunal Constitucional (TC) é intelectualmente grosseira. Um dos recorrentes argumento é este: no sector privado é mais fácil despedir que no sector público, isto quer dizer que os funcionários públicos são privilegiados, logo devem ser penalizados nos subsídios de férias e de Natal.
Três breves observações:
1. Os factos desmentem o discurso. O caso dos professores contratados é suficiente: profissionais com quinze, vinte e mais anos de serviço no ministério da Educação são despedidos, aos milhares, sem apelo nem agravo. Não parece que exista, com estas dimensões, exemplo idêntico no sector privado.
2. No contexto da discussão sobre a justiça do conteúdo do acórdão do TC, afirmar que há mais despedidos no sector privado do que no público é intelectualmente desonesto, é desconversar: quem é despedido não tem, infelizmente, subsídios de férias nem de Natal, portanto, não pode ficar sem eles. A discussão recai não sobre os despedidos mas sobre quem tem os subsídios e outros rendimentos, isto é, sobre aqueles que estão no activo, sejam do público ou do privado. Qual seria a exotérica razão que justificaria serem atingidos apenas os do sector público?
3. Um argumento não pode ser ambivalente, não pode ser utilizado para teses opostas. Mas as nossa elites fazem-no com à-vontade.
Defendem insistentemente que tornar o despedimento mais fácil é algo de benéfico — isso possibilita criar mais emprego, dizem-nos; sendo mais fácil despedir, os patrões contratarão mais pessoas e o desemprego baixará. A facilidade de despedir é, por conseguinte, algo de intrinsecamente bom. Ora, aquilo que é intrinsecamente bom não pode ser, em simultâneo, algo de intrinsecamente mau. Contudo, é precisamente isto que as nossa elites desonestamente defendem, quando afirmam que, sendo mais fácil despedir no sector privado, este sector está em desvantagem em relação ao sector público — ou seja, a facilidade de despedir, repentina e misteriosamente, deixa de ser uma coisa boa e torna-se uma coisa . A perturbação das nossa elites fá-las tropeçar em si próprias.

Como referi em texto anterior, quem tem autoridade política e ética para se opor aos cortes/taxas/impostos sobre os salários, sejam do sector público ou do sector privado, são aqueles que sempre defenderam que os impostos devem recair sobre o sector financeiro, as grandes fortunas e os rendimentos mais elevados. Estes têm autoridade para protestar, os demais não têm essa autoridade nem essa possibilidade, sem entrarem em impúdicas contradições.

Quinta da música - Vivaldi

Trechos - Serge Latouche

«Dizia Castoriadis: "Face a uma catástrofe mundial, por exemplo, vemos claramente regimes autoritários a impor restrições draconianas a uma população aflita e apática. [...] E se não houver um novo movimento, um redespertar do projecto democrático, a 'ecologia' pode muito bem ser integrada numa ideologia neofascista."
Em reacção a esta perspectiva aterradora, a aposta no decrescimento supõe que a atracção pela utopia convivial, associada ao peso das restrições à mudança, seja susceptível de favorecer uma "descolonização do imaginário" e de suscitar um número suficiente de comportamentos "virtuosos" a favor duma solução razoável: a democracia ecológica. Era esta também a análise de Castoriadis: "É indispensável a inserção da componente ecológica num projecto político democrático radical. Aliás, é tanto mais imperativa quanto o questionamento dos valores e das orientações da sociedade actual, implicado por tal projecto, é indissociável da crítica do imaginário do 'desenvolvimento' na dependência do qual vivemos."»
Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Às quartas

CANÇÃO DA VERDADE JOVEM

A verdade cantava no escuro
No cimo da tília sobre o coração

O sol há-de amadurecer dizia
No cimo da tília sobre o coração
Se os olhos o iluminarem

Troçámos da canção
Agarrámos prendemos a verdade
Cortámos-lhe a cabeça debaixo da tília

Os olhos estavam noutro sítio
Ocupados com outra obscuridade
E nada viram

Vasko Popa
(Trad.: Eugénio de Andrade)

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!, Teorema.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Ainda os cortes na Função Pública e o «esforço nacional»

A declaração de inconstitucionalidade dos cortes dos subsídios de férias e de Natal na Função Pública teve várias virtuosidades. Uma delas foi a de fazer justiça, outra foi a de pôr a descoberto a dissimulação daqueles que publicamente não se cansam de defender a inevitabilidade dos sacrifícios e da austeridade. Na realidade, sempre que afirmavam essa inevitabilidade, faziam-no, sabemo-lo hoje, com uma oculta nuance: os sacrifícios são necessários sim, mas para os outros, não para os próprios.

A indescritível histeria que se levantou quando foi conhecido o acórdão do Tribunal Constitucional ainda não terminou. Prossegue diariamente. Muitos dos nossos banqueiros, gestores, financeiros, empresários, comentadores, jornalistas mostram, em uníssono, o quanto os incomoda a decisão daquele tribunal. Esta histeria tem uma razão: o receio ou a certeza de que o governo se prepara para alargar os cortes/taxas/impostos ao sector privado, precisamente o sector de onde essas vozes provêm. Eles temem ser atingidos por esses cortes/taxas/impostos e, por isso, clamam.
O problema é que quem tem autoridade política e ética para clamar contra os cortes são aqueles que sempre o fizeram, que sempre clamaram, fossem os cortes no sector público ou no sector privado. São aqueles que sempre disseram que a política de austeridade aplicada aos salários é injusta — quer seja selectiva ou não —  e conduz à miserabilização. Quem tem autoridade política e ética para se opor aos cortes/taxas/impostos sobre os salários são aqueles que sempre defenderam que os impostos devem recair sobre o sector financeiro, as grandes fortunas e os rendimentos mais elevados. Estes têm autoridade para protestar, os demais não.

Os demais, os que sempre estiveram do lado da defesa dos sacrifícios e da austeridade, deveriam sentir-se lisonjeados pela forte probabilidade de agora virem a ser chamados a participar naquilo a que repetidamente designam de «esforço nacional». Deveriam sentir-se assim, mas, por alguma estranha razão, não parece ser isso que sentem. Na verdade, aquilo a que chamam de «esforço nacional» significa, para eles, o esforço dos funcionários públicos, dos pensionistas, dos reformados, dos desempregados e de todos os assalariados a quem são pagos salários indecentes. Banqueiros, gestores, financeiros, empresários, comentadores e jornalistas que se pronunciam perplexos com a declaração de inconstitucionalidade dos cortes dos subsídios de férias e de Natal na Função Pública consideram-se isentados de participar no referido «esforço nacional». Pretendem preservar os seus rendimentos, abster-se de pagar a crise, continuar a usufruir dos serviços públicos — saúde, educação, justiça, segurança, infra-estruturas, ... —, e, simultaneamente, desejam que os profissionais do Estado que lhes prestam esses serviços — médicos, professores, juízes, militares, polícias, ... — sejam penalizados nos seus vencimentos, em média anual, entre 15% e 25%.
Este é o entendimento que muitos dos nossos banqueiros, gestores, financeiros, empresários, comentadores e jornalistas têm sobre o «esforço nacional» que publicamente defendem.

Nacos

Canto VII

29
Bloom queria saber mais da Índia. Para
que lado o pescoço dos homens roda mais
— para as mulheres ou para as coisas?
Porque razão existem tantas escadas distribuídas
pelas ruas, quase todas deitadas no chão,
como se fossem um utensílio
para ser usado horizontalmente
e não na vertical? Serão assim tão religiosos
que nem precisem de escadas para pequenos arranjos
domésticos? — gracejou Bloom.
Anish respondeu: vou falar da Índia. O que tu
conheces são postais.

30
Mas a Índia tem homens e tem mulheres — disse Anish.
O ouro foi todo levado, mas por vezes parece que ainda
o querem levar de novo. As cidades
começaram a ser construídas como poemas,
mas rapidamente foram concluídas com tijolos baratos
e o sofrimento dos que trabalharam longamente
e ganharam pouco. Este país
é como os outros: belo e bruto.
E se conheces um país que não o seja, então
digo-te que não o conheces realmente.
Os países nasceram do lado
errado.

31
Um país deveria ser um espaço
para o povo existir, mas o povo não existe — disse Anish.
Ambíguas instituições adiam a salvação
imediata que uma refeição costuma dar
e encaminham os mendigos para
departamentos mais competentes
no outro lado da cidade, ou no céu,
onde os Deuses, inábeis na cozinha urgente,
se especializaram em longuíssimas promessas.
Eis a Índia; apresento-te este país.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho

Carta aberta a Roberto Carneiro - a opinião de Paulo Duro

Não partilho da elevada opinião que o colega Paulo Duro tem de Roberto Carneiro, todavia, o testemunho que aqui nos deixa, enquanto professor contratado, é significativo.

Carta Aberta
Boa Tarde Dr Roberto Carneiro. 
Sempre me habituei a vê-lo como O Ministro de Educação por excelência. Não sei se foi por ter acompanhado o seu percurso ministerial enquanto estudante, mas fiquei, como aluno, com a noção de que é um homem de convicções, palavra, inteligência e seriedade. Apenas queria dar-lhe os meus sinceros parabéns pelo texto da sua autoria sobre o estado da nossa Educação. 
Agora do outro lado, enquanto docente, sinto-me usado, maltratado, e descartável pelo modelo mecanicista introduzido pelo ministro atual. Sou docente há cerca de 12 anos e sempre desempenhei a minha profissão com amor, seriedade, prazer e com um, inevitável, sentido voluntarista, porque acredito que contribuo, todos os dias, para um Portugal melhor, moderno, capaz, com jovens bem preparados cientificamente e moralmente, conscientes do passado, do presente e da importância do seu papel no futuro. Sou, tornei-me um homem que encara a profissão como uma missão, à qual não poupo dedicação, abnegação e esforço! Porém, deixe que lhe diga, a forma como a profissão tem sido enlameada pelos últimos ministros e secretários de estado tem-me levado ao desespero e à falta de fé no sistema educativo português. Sou enxovalhado quando sou usado e atirado fora para outro contrato, em local incógnito e condições incertas. Sinto-me lesado cada vez que os números se sobrepõem à minha dignidade enquanto professor e Ser Humano. Revolto-me quando o primado do dinheiro supera o primado pedagógico numa escola. Fico aterrado quando penso nas consequências que esta reforma monstruosa que aí se avizinha irá ter nas gerações que frequentam e frequentarão o ensino em Portugal! 
Queria convidá-lo, em nome individual, enquanto professor, enquanto guardião desta nobre profissão, a continuar a intervir. Faça ouvir a sua voz em todos os locais Dr. Roberto! Na situação em que o ensino português se encontra, todas as vozes se têm que unir numa só voz contra a destruição e traição perpetuada pelo atual ministro! Por Portugal! Pelo futuro! Pela Educação! 
Respeitosamente, 
Paulo Duro

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Sem desculpa

Para quem não é professor e, por conseguinte, desconhece a realidade a que o ministro da Educação se refere — nomeadamente o processo de elaboração de horários nas escolas —, o conteúdo desta entrevista pode não parecer particularmente estranho, todavia, para qualquer docente, as explicações que Nuno Crato dá sobre esta matéria são uma pungente ilustração da sua objectiva incompetência. Confesso que julgava não ser possível um ministro expor de modo tão cru a sua ignorância. Se existisse o sentido de decência, Nuno Crato teria de se demitir. 
Não é possível que tanto desconhecimento e tanta irresponsabilidade se mantenham no poder. Há anos seguidos que se brinca com a Educação em Portugal.

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domingo, 22 de julho de 2012

Paolo Fresu & Uri Caine

Pensamentos de domingo

«O rico comete uma injustiça e mesmo assim mostra-se altivo; o pobre é injustiçado e mesmo assim precisa de se desculpar.»
Textos Bíblicos 
«Sempre por via irá direita
Quem do oportuno tempo se aproveita»
Luís de Camões
«Nada é tão contagioso como o exemplo.»
François La Rochefoucauld  
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora (adaptado).

sábado, 21 de julho de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Um homem, diz um pequeno conto sufi, apercebeu-se com alegria de que entendia a linguagem das formigas.
Aproximou-se de uma formiga e perguntou-lhe:
— Tendes um deus?
— Claro — disse a formiga.
— Como é ele? É parecido com uma formiga?
— Não exactamente — respondeu ela. — Nós só temos um ferrão. Ele tem dois.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

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sexta-feira, 20 de julho de 2012

Exames nacionais - apontamentos (11)

No texto da semana passada, abordei o primeiro argumento que Nuno Crato apresenta a favor da realização de exames nacionais, no livro intitulado O 'Eduquês' em Discurso Directo (2006).
Hoje vou dar a minha opinião sobre o segundo argumento: «Os exames podem ser orientadores de percursos escolares, levando, por exemplo, a encaminhar estudantes com dificuldades para vias alternativas, com o mesmo ou outro término escolar.» (p.48).
Discordo deste ponto de vista. Elevar os exames nacionais à categoria de orientadores de percursos escolares suscita perplexidade; acrescentar que os exames nacionais podem encaminhar os estudantes com dificuldades para percursos alternativos duplica o espanto; apresentar isto como justificação para a realização destas provas triplica o embaraço.
O meu ponto de vista é, de facto, bastante divergente deste. Em primeiro lugar: eu já ficaria satisfeito se os exames nacionais cumprissem a primeira função para que foram criados, isto é, se fossem capazes de avaliar aprendizagens e competências com fiabilidade/fidelidade. Infelizmente não tenho essa satisfação, os exames não o conseguem fazer. Em segundo lugar: se a função básica de avaliar aprendizagens e competências com fiabilidade/fidelidade não é cumprida, não se compreende que se pretenda atribuir aos exames outras funções que, para além de serem mais complexas, dependem do cumprimento satisfatório da função básica.
Adicionalmente a esta objecção, existe outra e mais relevante: a função de orientar um percurso ou de encaminhar para percursos alternativos é uma função do(s) professor(es), não cabe a um exame nacional. 
Somente uma ideia muito limitada do papel do professor e um crença ilimitada nas potencialidades de um exame é que podem conduzir à extravagante conclusão de se atribuir a uma prova desta natureza capacidades orientadoras. E este é um dos problemas de Crato: a devoção que tem a tudo o que lhe surja traduzido em números. Crato acredita ou tende a acreditar que uma prova de exame nacional classificada, por exemplo, com 12,3 valores corresponde a um saber real (se estivermos a falar só de saberes) de 12,3 valores. Crato acredita que o número é o modo mais fiel de expressar uma realidade. Por isso, ele vê nos exames nacionais o poder de orientar e encaminhar, porque, no seu entendimento, os números não enganam: mostram o que a coisa é, ou seja, neste caso, mostram o que o aluno é. Mostram o que é, o que não é e o que poderá vir a ser, daqui a sua função supostamente orientadora e encaminhadora, do ponto de vista de Crato.
Crato não nega — se o fizesse não poderia ser ministro da Educação — mas desvaloriza a dimensão relacional que o acto de ensinar possui. A dimensão relacional, intersubjectiva é para Crato um adorno, algo que se existir é óptimo, mas se não existir não é grave. A sua obsessão pelo conhecimento fá-lo secundarizar e desvalorizar o resto. Ora é com estes desequilíbrios conceptuais que temos dado cabo da Educação em Portugal: ou vivemos imersos no mar do «eduquês» ou passamos para o outro extremo em que nada importa a não ser o conhecimento. 
O curioso é que Crato não valoriza mais do que eu valorizo a sólida formação científica que um professor tem de possuir. Eu também faço parte do grupo que defende que o conhecimento científico é condição necessária para se ser um bom professor. Sem o profundo domínio científico das matérias que lecciona ninguém pode ser um professor recomendável. Todavia, sendo isto uma condição necessária não é de todo uma condição suficiente. Não chega ser bom cientificamente. Ensinar implica uma relação pedagógica sã, humanamente rica, uma relação afectiva, uma relação de proximidade.
E é nesta e desta relação que surge o trabalho de orientação, de encaminhamento, que constitui, precisamente, o trabalho essencial do pedagogo (como o étimo da palavra indica) e que nenhum exame nacional pode ter, substituir ou complementar.
Se se estivesse à espera do resultado de um exame para orientar ou encaminhar um aluno, muito mal nós estaríamos. Primeiro, porque os resultados dos exames nacionais não são (con)fiáveis; segundo, porque esperar por tais resultados, para orientar e encaminhar, significaria que não tinha existido, durante o ano, qualquer trabalho pedagógico. Fazer depender o trabalho de orientação e de encaminhamento dos resultados dos exames nacionais seria a negação objectiva da função pedagógica do professor.

Concluindo: este segundo argumento de Crato a favor dos exames nacionais tem, à semelhança do primeiro, uma notória fragilidade.

(Continua)

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Quinta da música - Max Bruch

Insuportável

No domínio da educação, vivemos, de 2005 a 2011, debaixo de uma mescla de desmedida arrogância e de generalizada incompetência técnica e política protagonizadas pelas equipas ministeriais de Rodrigues e de Alçada. 
De 2011 a 2012, isto é, no último ano, vivemos debaixo de uma mescla de amadorismo, ignorância e improvisação protagonizados pela equipa de Crato. 
Para além disto, em ambos os casos, os professores foram e são maltratados. Primeiro de modo insolente, agora de modo indigno.
As insolências de Rodrigues são bem conhecidas desde há muito, as indignidades de Crato estão agora a ser conhecidas. O episódio, que se encontra em desenvolvimento diário e que teve como consequência obrigar dezenas de milhares de professores dos quadros a concorrer, é um caso de extrema gravidade que ilustra, pelo menos, duas coisas: a torpeza com que o actual ministro trata os profissionais da educação e o diletantismo que impera no seu ministério.
Depois de ter provocado um tsunami nas escolas — levando ao desespero milhares de docentes e respectivas famílias, brincando com a vida profissional e pessoal dos professores — e depois de se ter apercebido da dimensão dos estragos que a sua irresponsabilidade originou, Crato emitiu um comunicado que, para além de estar vergonhosamente redigido e de ser quase ininteligível do ponto de vista técnico, parece (sublinho o «parece») dar a entender que, afinal, todos os horários zero vão ser aproveitados para mil e uma actividades e que nenhum professor terá de sair da sua escola. Parece (com o devido sublinhado) que agora já vale tudo para tapar o incomensurável buraco aberto. 
Tudo isto é demasiado mau para ser verdade, mas desgraçadamente tudo isto é também demasiado verdadeiro: primeiro destruiu-se, deixou-se tudo em cacos, agora, com cuspo, procura-se unir os estilhaços. Manipulam-se os professores como se fossem peças descartáveis de uma máquina.
Não é possível a educação resistir a tanta barbaridade seguida. Foram seis anos, agora foi mais um, e perfilam-se mais três. Impedir que esses mais três se concretizem tornou-se um imperativo categórico.

A estolidez nem sempre vence

Recebido por e-mail:

Exmos Senhores:

Sou pai de um adolescente com Síndrome de X Frágil sendo, por isso "classificado" como criança com necessidades educativas especiais do foro cognitivo (NEE). 
Este ano o meu filho, que frequenta o ensino regular viu-se confrontado com a exigência de fazer exames nacionais e não as provas a nível de escola, como ficou previsto no seu Plano Educativo Individual elaborado no início do ano lectivo. Fiz em Março do corrente ano uma exposição ao Júri Nacional de Exames e requeri que fosse autorizado a fazer as provas a nível de escola. Esse meu pedido foi indeferido. Dei início a um Processo denominado Intimação para Protecção de Direitos Liberdades e Garantias no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, onde obtivemos sucesso total com a condenação do Ministério da Educação. 
Assim ficou a porta aberta para situações semelhantes. [...]

Com os melhores cumprimentos,
[Leitor identificado]

Nota: Pode ser lida a notícia referente a este caso na edição do jornal Público de 14 de Julho — «MEC condenado a proporcionar provas de escola a aluno com deficiência». E pode ser lido um artigo de opinião também sobre este assunto no mesmo jornal, na edição de 17 de Julho — «Educação e deficiência: uma sentença justa contra uma medida injusta», da autoria do eurodeputado Paulo Rangel.

Para clicar


Vigília em Lisboa

Em Lisboa, a vigília iniciou-se ontem e vai prosseguir hoje, em frente à Assembleia da República, até à chegada do ministro da Educação ao Parlamento, para ser ouvido na Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura, no seguimento do requerimento potestativo apresentado pelo Bloco de Esquerda.




quarta-feira, 18 de julho de 2012

Demasiado grave

Fazer política não pode ser sinónimo de desprezar ou sinónimo de maltratar ou sinónimo de ignorar as pessoas. Se assim não for, o exercício da política transforma-se num expoente de perversidade e de iniquidade. 
Fazer política sob o comando de uma folha de Excel é fácil, contudo, é profundamente estúpido e perigoso: salvam-se os números, mas destroem-se as pessoas.
Desgraçadamente, para grande parte dos portugueses, é sob este paradigma político que vivemos. Que o digam as centenas de milhares de desempregados, os milhares de jovens que não conseguem o primeiro emprego, as centenas de milhares de reformados e pensionistas, os milhares de profissionais das mais diferentes áreas de actividade que vêem o valor do seu trabalho equiparado a uma esmola, os milhares de funcionários públicos que têm as carreiras congeladas há anos e que têm os seus vencimentos diminuídos em dois dígitos percentuais, e que o digam, neste momento, as dezenas de milhares de professores que vão ficar no desemprego ou que vão ficar sem horário para leccionar, daqui a pouco mais de um mês. Em nome dos números, abatem-se as pessoas.
No caso específico da Educação, o balanço de um ano de governo é devastador. Movido por critérios de mercearia e obliterado pelas crenças naïf em que se suporta, Nuno Crato está a destruir o principal capital humano que sustenta o desenvolvimento de qualquer país: os professores. Desprezando os professores como está a desprezar, maltratando-os como os está a maltratar, ignorando-os como os está a ignorar, Crato e o seu governo estão a minar o futuro da nossa educação, porque tudo isto tem consequências irreversíveis na qualidade do ensino e das aprendizagens.
Os professores e as famílias dos professores estão, neste momento, dominados por três sentimentos: medo, indignação e revolta. Estes sentimentos são legítimos e são alimentados pela hipocrisia e pela desonestidade política do ministro e do governo. É hipocrisia e desonestidade justificar o despedimento de milhares de professores com o argumento de que é em função das necessidades das escolas que os professores têm ou não têm horário para leccionar. Esta (pseudo) evidência revela as intenções de quem a enuncia: se se reduz o currículo das disciplinas, se se reduz a carga horária, se se aumenta o número de alunos por turma, se não se autoriza a abertura de turmas ou de cursos quando há alunos inscritos, evidentemente que as necessidades das escolas se reduzem. A questão é saber com que fundamento educativo se fazem as reduções, se aumenta o número de alunos por turma e se proíbe a abertura de novas turmas e cursos. Um país que tem um grau de iliteracia assustador, que tem inaceitáveis níveis de abandono e de insucesso escolar e que obtém resultados escolares globalmente baixos, como pode, com responsabilidade e seriedade, aumentar o número de alunos por turma? Como pode diminuir a carga horária a várias disciplinas? Como pode negar o direito à educação a alunos jovens e adultos que  querem estudar? Estamos num país que tem necessidade, como de pão para boca, de mais e melhor escola, não do contrário. 
Não é, pois, possível aceitar por mais tempo a irresponsabilidade e a incompetência técnica e política de Nuno Crato. O que se está a passar é demasiado grave.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!, Teorema.

Nacos

Canto VII

27
Bloom ficou alojado na casa de Anish,
simpático hospedeiro que ofereceu comida
fundamental e nada literária como convém.
Comida tranquila para oferecer bons sonhos.
Até os alimentos são calmos, como conseguem 
isso? — perguntou Bloom. — Usamos muitos condimentos
mas cozinhamos devagar — respondeu Anish.
Lá fora, entretanto, a noite e o silêncio
vinham mais dos animais e das coisas
que dos homens. Havia fogo
tranquilo em várias casas e a noite
era robusta. Bloom estava feliz e respirava.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.

Para clicar


Vigília pela Educação - 18 e 19 de Julho


Vigília de 18 para 19 de Julho, em todas as capitais de distrito. 
"QUE NENHUM PORTUGUÊS FIQUE EM CASA!" 

Em Lisboa será junto ao Parlamento. Nas outras capitais, será nas respectivas Praças da República, como símbolo da importância da Educação para a República. 

Início: 19h. Abertura dos telejornais: 20h. 
Estaremos TODOS até às 2h, para garantir cobertura nos jornais dos canais de informação. Depois uns poderão ir dormir ou ficar... Mas todos regressaremos com o sol para terminar ao meio dia. 

PARA QUEM PUDER ESTAR EM LISBOA:

Na quarta-feira DIA 18: Audição Parlamentar e Votação - cessação da lei REC - iniciativa do PCP
Na quinta-feira DIA 19: Requerimento Potestativo - audição ao ministro - iniciativa do BE

INSCREVAM-SE JÁ! 
Contactar/TEM DE SE MARCAR:
Ana Barriga ou Cristina Tavares
Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura
Telefone: 213919472

Consultar a página do Facebook: https://www.facebook.com/events/255710381206730/

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Política e náusea

A política devia ser uma actividade decente, mas não é. Não o é, porque uma parte substancial da elite política portuguesa não está na política para prestar um serviço público, está somente para satisfação de uma vaidade, e/ou para promoção pessoal, e/ou para obtenção de uma carreira que garanta privilégios e mordomias, enfim, por várias razões, mas nenhuma delas relacionada com a função nobre que a democracia lhe destinou.
Sendo este o ponto de partida da maioria dos nossos políticos, compreende-se que para muitos deles o fim justifique os meios, e que a seriedade intelectual ceda facilmente a conveniências e a interesses partidários ou de clientelas.
Paulo Portas foi disto um exemplo recente.
Na abertura do congresso do CDS-Madeira, realizado no último fim-de-semana, o líder do CDS, a propósito da declaração de inconstitucionalidade do corte dos subsídios na Função Pública, fez a afirmação seguinte: «Temos de saber e entender que, se o problema de Portugal é défice do Estado [palavra pronunciada com acentuada ênfase], não é justo pretender que o sector privado tenha a mesma responsabilidade de ajudar.» Isto é, segundo Portas, como o défice é do Estado, o sector privado não é co-responsável no pagamento desse défice.
É curioso que o líder do CDS não se lembre desta (aparente) separação entre o Público e o privado, quando a situação ocorre ao contrário, ou seja, quando é o Estado que se endivida para emprestar dinheiro aos bancos privados (BPI e BCP), como o aconteceu há poucas semanas.
Contudo o que é verdadeiramente grave é a repulsiva desonestidade política do argumento e o pressuposto, presente na mente do seu autor, de que os portugueses são estultos. Na realidade, Paulo Portas sabe, como todos sabemos, que os gastos do Estado na Educação, na Saúde, na Justiça, na Defesa, na Segurança, etc. são gastos de cujos os benefícios todos usufruem. Quando se constrói uma escola, essa escola é para todos, quando se constrói um hospital, esse hospital é para todos, quando se constrói um tribunal, esse tribunal é para todos, quando se paga o salário a um professor é para ele ensinar a todos os alunos, quando se paga o salário a um médico é para ele tratar de todos os doentes, etc.
Para além disso, o Estado, como acima referi, ainda vai em socorro dos privados, como foi o caso do BPN — que foi, esta sim, uma intervenção com o dinheiro de todos, mas ao serviço de alguns.
Paulo Portas sabe tudo isto, como qualquer um de nós o sabe, mas deliberadamente omite-o, conscientemente quer enganar quem o ouve. A afirmação que fez ofende pelo farisaísmo que encerra.
Assim a política e a náusea tendem a fundir-se.

domingo, 15 de julho de 2012

Tommy Flanagan

Pensamentos de domingo

«Todos os néscios confundem valor e preço.»
Antonio Machado y Ruiz 
«O verdadeiro valor das coisas é o esforço e o problema de as adquirir.»
Adam Smith
«Ninguém sobrevive ao facto de ser considerado acima do seu valor.»
Oscar Wilde
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora

sábado, 14 de julho de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Memória da realidade e realidade da memória
Todos os psiquiatras contam a história do paciente que vai ver o seu médico e lhe diz:
— Doutor, tenho buracos na memória.
— Um momento — diz o médico.
Dá uma ordem breve à sua secretária, depois volta-se para o seu paciente e pergunta-lhe:
— E desde quando tem isso?
— Desde quando tenho o quê, doutor?
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Exames nacionais - apontamentos (10)

Nuno Crato, no livro intitulado O 'Eduquês' em Discurso Directo (2006), apresenta, entre outras coisas, os argumentos que considera relevantes a favor da realização de exames nacionais.
O primeiro argumento é este: «Os exames estabelecem metas e, por isso, podem incentivar os alunos a lutar para ultrapassar essas metas» (p. 47).
Vou pôr de lado as modas pedagógicas que por vezes fazem com que os mesmos termos expressem diferentes conceitos — o que sucede com o termo «metas» e com o termo «objectivos», cuja extensão dos respectivos conceitos foi, em alguma literatura, inexplicavelmente invertida —, o que se traduz numa dificuldade acrescida para o leitor, se não houver esclarecimento prévio por parte do autor sobre o significado dos termos que utiliza (como é manifestamente o caso de Nuno Crato), e vou supor que, em O 'Eduquês' em Discurso Directo, metas e objectivos (de aprendizagem) são termos mais ou menos sinónimos.
Passo então às observações que o argumento a favor dos exames, enquanto instrumento que formula metas, suscita:
1. Pelo modo como o argumento está elaborado, um leitor não iniciado no assunto seria levado a supor que são os exames que estabelecem as metas de aprendizagem, reconhecendo, a partir daqui, utilidade a estas provas, enquanto orientadores do estudo dos alunos. Mas mal estaríamos nós se isto fosse verdade. Quem estabelece as metas de aprendizagem é o próprio Ministério da Educação, em documento próprio e específico para o efeito ou no programa de cada disciplina. Não são, portanto, os exames que estabelecem as metas. Os exames supostamente testam se (algumas) metas foram alcançadas pelos alunos.

2. Se Crato pretende enfatizar que os exames se elaboram a partir das metas/objectivos que os alunos devem alcançar, pergunta-se se não é isso que acontece com qualquer prova de avaliação sumativa? Neste contexto, onde reside exactamente a presumida mais-valia dos exames? Aliás todo o processo de ensino-aprendizagem não é pensado e concretizado a partir de objectivos a atingir?

3. Mas, por outro lado, se Crato utiliza o termo «metas» como sinónimo de «objectivos» (de aprendizagens), que razoabilidade tem o final da frase: «[os exames] podem incentivar os alunos a lutar para ultrapassar essas metas»? As metas/objectivos de aprendizagem não se ultrapassam, como acontece numa corrida de obstáculos, as metas/objectivos de aprendizagem atingem-se, concretizam-se, realizam-se. Portanto, o final da frase adequa-se mal ao significado dos conceitos.

Chegados aqui, fica-se sem se saber ao certo o que Crato quer efectivamente dizer quando fala «em metas que os exames estabelecem»: se são metas de aprendizagem, não é adequado, como acabámos de ver, falar em ultrapassagens...; se não são metas de aprendizagem, se são metas no sentido de «etapas a vencer», de «obstáculos a ultrapassar», isto significaria dizer que se está a criar uma parafernália de exames apenas para dar ao aluno o «incentivo» de ter metas para vencer! Não me parece que possa ser esta a ideia de Crato. Aliás dentro do género (se entendermos as metas como sinónimo de desafios a vencer) já existe um menu suficientemente variado (e mais barato) que pode ser/é apresentado ao aluno:  Meta 1 — a passagem de ano; Meta 2 - a passagem de ano com classificações acima de...; Meta 3 —a passagem para um outro ciclo de ensino; etc.
Contudo, se é mesmo este sentido que Crato atribui ao termo «metas»,  estaremos então perante mais um sinal da falta de consistência do discurso do nosso ministro da Educação. Na verdade, quem verdadeiramente valoriza o rigor e a cultura do esforço não pode assentar a educação dos alunos no método da cenoura que se coloca à frente do burro para o motivar a andar. Quem valoriza o rigor e a cultura do esforço, enquanto referenciais educacionais, tem de desenvolver a cultura do dever: o dever do estudante é estudar e a passagem de ano e as classificações que obtém resultam do cumprimento desse dever. Cada aluno tem o dever de dar o melhor de si próprio para aprender, porque se usufrui do estatuto de estudante tem de cumprir o papel que lhe corresponde; e porque sendo o melhor para si próprio é também o melhor para os outros, no sentido em que é a melhor forma de corresponder ao esforço colectivo que paga o ensino (público) de cada aluno.

Concluindo: este primeiro argumento de Crato a favor dos exames tem uma grande fragilidade, quer as metas sejam entendidas como objectivos de aprendizagem, quer as metas sejam entendidas como etapas a vencer. Em qualquer dos casos, chega-se à conclusão de que o argumento dificilmente se sustenta.

(Continua)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

No Rossio

A indignação e o desespero de muitos professores foram evidenciados hoje na manifestação no Rossio.
Um país que se permite o luxo de despedir professores é certamente um país com elevados índices de literacia, com uma população particularmente culta e com alunos que alcançam resultados acima da média europeia.




Hoje

Manifestação dos Professores
12 de Julho - Lisboa - Rossio - 15h00

Também estou a ensinar quando luto!


quarta-feira, 11 de julho de 2012

Nada a esperar

Durante uma hora e meia aproximadamente, assisti ao debate sobre o estado da Nação, realizado hoje na Assembleia da República. Durante este tempo pude confirmar mais uma vez uma característica essencial da composição do nosso parlamento: uma esmagadora maioria das mulheres e dos homens que ali se sentam está de acordo nestes pontos: há um statu quo social intocável; há uma estrutura social inamovível; há poderes estabelecidos inquestionáveis; há interesses instalados inalteráveis. 
Neste contexto, para esta enorme maioria de deputados, apenas são admissíveis alguns retoques sociais, apenas são aceitáveis pequenas alterações nas relações de força e ligeiros avanços ou recuos em direitos, mas tudo deve ficar essencialmente na mesma, em relação ao modo como a sociedade está estruturada.
Para esta grande maioria de deputados há uma linha muito clara (à semelhança do filme publicitário) que separa o que pode do que não pode ser alterado, o que é aceitável discutir do que não é aceitável discutir. Assim, quando estes deputados esgrimem entre si argumentos sobre o rumo do país, nada de verdadeiramente importante está a ser discutido, nada que verdadeiramente possa alterar as regras do jogo social. 
Grande parte das mulheres e dos homens que se sentam naquelas cadeiras está essencialmente preocupada consigo própria, com a sua performance, com a sua carreira, com a sua maior ou menor influência, com a sua maior ou menor respeitabilidade social e partidária. Nenhum destes deputados está disponível para pensar políticas que possam alterar o statu quo, mesmo que essas políticas sejam socialmente mais justas e equilibradas.
Vivemos inseridos numa sociedade estruturada de uma forma objectivamente injusta e geradora de sofrimento. Mas quase todos os deputados da nossa Assembleia da República estão mais concentrados no fato e na gravata que envergam e no modo como se debruçam sobre a bancada, sempre que discursam, do que em promoverem verdadeiras transformações que defendam os legítimos interesses de quem os elegeu.
Deste parlamento nada há a esperar.

Às quartas

COSMORAMA

Porque será que não medram aqui
Senão ódios e pedras?
Pátria maninha de outras sementeiras!
Cores derramadas, e os pintores não pintam;
Formas aos gritos, e os cinzéis parados;
Versos já feitos, e ninguém os lê!
Tudo seco e mirrado.
A terra na incultura que se vê,
E o mar como um piano abandonado.

Miguel Torga

terça-feira, 10 de julho de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!, Teorema

Nacos

Canto VI

77
E os pássaros, se existem, já há muito perderam 
o espírito musical. Ninguém tem uma relação tão
próxima com o céu que se atreva a voar neste dia:
os relâmpagos cortam em dois outros relâmpagos
com que se cruzam: pássaros e aviões não levantam voo,
escondem-se no mesmo armazém onde cheira demasiado
a vinho porque os barris se partiram.
Ninguém tem a chave quando o extraordinário entra
no dia. E, numa tempestade, os ébrios não se distinguem
dos outros.

78
Ninguém de facto se reconcilia
com uma parte que lhe foi amputada e
a natureza foi amputada aos homens;
estes percebem-no, finalmente, quando
não a esgotam em duas fórmulas de sete números.
A energia da natureza não é aquilo a que os
homens chamam energia da natureza. O som brutal
faz a mulher soltar um grito bem maior
do que o homem que a protege.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho

12 de Julho


segunda-feira, 9 de julho de 2012

Os novos interessados pela justiça social

É uma irresistível tentação ouvir o parecer de alguns comentadores acerca da recente declaração de inconstitucionalidade do corte dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e pensionistas. A profunda preocupação que alguns comentadores manifestam com a possibilidade de se estar a cometer uma injustiça com aquela declaração de inconstitucionalidade enternece o mais bárbaro.
A atenção, o cuidado e a importância que alguns comentadores passaram a dar às questões relacionadas com a igualdade, a equidade e a justiça social devem ser objecto de registo. É verdade que até agora nunca os tínhamos visto indignados ou sequer preocupados com o facto de haver, no nosso país, um fosso cada vez maior entre ricos e pobres, ou com o facto de eles próprios serem principescamente pagos por aquilo que escrevem ou dizem nos órgãos de comunicação social, para os quais trabalham, em contraponto com os miseráveis vencimentos que os jovens jornalistas recebem e com as péssimas condições de trabalho que têm. Pelo contrário, vêmo-los sempre muito confortáveis no seu estatuto de bem sucedidos e de bem instalados na vida. Aliás nunca os vimos questionar as «regras» de ascensão social que vigoram na nossa sociedade e que lhes possibilitam ficar tão acima de todos os outros. O próprio desemprego é visto por muitos deles apenas como uma coisa desagradável — para alguns, é mesmo e só uma maçada, porque obriga a ter mais cuidado com essa gente sem emprego que pode tornar-se socialmente inconveniente a qualquer momento.
Sabemos pois que, apesar de sempre terem ligado pouco ou nada a essas «coisas» da igualdade, da equidade e da justiça social, agora manifestam-se preocupados com isso. E assenta em quê essa preocupação? Assenta no seguinte: no sector privado é possível despedir e no sector público não é, daqui retiram a consequência de que os primeiros devem ficar isentos dos cortes nos subsídios de Natal e férias e os segundos devem arcar com eles na totalidade.
O problema é que este argumento é ele próprio um problema. Aliás dois, porque:
i) o desemprego e os despedimentos são cada vez mais uma realidade na função pública. Neste momento, os milhares de contratados do Estado, nas mais diversas profissões, são vistos como seres que se descartam, sem cerimónia. Não teremos de esperar muito tempo até vermos o Estado a querer despedir sem rebuço os seus profissionais dos quadros;
ii) independentemente de o Estado despedir ou não despedir, o que está em questão é uma coisa bastante diferente: é saber sobre que rendimentos se aplica a penalização do corte dos subsídios de férias e Natal. Infelizmente os desempregados não são tidos para esta questão, pois já perderam os seus rendimentos e não têm sequer  aqueles subsídios. A questão coloca-se, pois, em relação a quem tem rendimentos, independentemente desses rendimentos provirem do sector público ou privado. Porque razão os rendimentos do sector privado haveriam de ter um tratamento especial? Em nome de que princípio os rendimentos do sector privado deveriam ser privilegiados?

Aqui ainda há um outro elemento estranho: os comentadores que agora se mostram particularmente preocupados com esta alegada desigualdade (sustentada no factor despedimento) são justamente os mesmos que não se cansam de nos dizer que os despedimentos são uma inevitabilidade, que já não há empregos para toda a vida, que os direitos adquiridos têm de terminar, que a precariedade é o futuro e que tem de ser assim e que só pode ser assim. Não se compreende pois esta súbita preocupação com os despedimentos, por parte destes comentadores.

Finalmente, se estes comentadores estivessem verdadeiramente preocupados com a igualdade, a equidade e a justiça social deveriam dizer que os rendimentos do trabalho, em particular os baixos e os médios rendimentos, provenham eles do sector público ou privado, não podem ser objecto de quaisquer cortes ou penalizações. E deveriam acrescentar que, em primeiro lugar, é sobre os rendimentos do sector financeiro que esses cortes e/ou penalizações têm de recair, pois é na incomensurável diferença entre estes dois tipos de rendimentos que assenta grande parte da desigualdade, da falta de equidade e de justiça social.
Curiosamente ninguém os ouve dizer isto.

domingo, 8 de julho de 2012

Frank Stozier

Pensamentos de domingo

Um modesto contributo para que se percebam melhor as razões que levam alguns a abreviar em cerca de 90% o currículo de uma licenciatura:

«O excesso de estudo provoca erro, confusão, melancolia, cólera e fastio.»
Pietro Aretino 
«De todas as escolas que frequentei, a da rua, foi a que me pareceu melhor.»
Anatole France

«Muito estudo desgasta o corpo.»
Textos Bíblicos

In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 7 de julho de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Uma história árabe e judia (contam-na nas duas tradições).
A rainha de Sabá, quando recebeu a visita do grande Salomão, com quem rivalizava em saber, propôs-lhe uma espécie de enigma. Levou-o a um compartimento do seu palácio onde uns artesãos prodigiosos tinham enchido tudo de flores artificiais. Dir-se-ia um prado miraculoso, onde muitas e olorosas flores se balançavam docemente sob o efeito de uma brisa desconhecida.
— Eis o meu enigma — disse a rainha. — Uma destas flores, uma só, é verdadeira. Podes indicar-ma?
Salomão olhou atentamente em seu redor. Apelou aos tesouros da sua sensibilidade, a todas as forças da sua concentração. Não soube designar a flor verdadeira. Então, como suasse abundantemente, aproveitou para dizer à rainha de Sabá:
— Reina aqui um calor pouco habitual. Podes pedir a um dos teus criados que abra uma janela?
— Aqui está a verdadeira flor — disse o rei um pouco mais tarde.
Não podia enganar-se. Uma abelha, entrada pela janela, acabava de pousar na única flor verdadeira.
Se é sempre difícil ser Salomão, dizem os comentadores desta história, é ainda mais difícil ser abelha. Mas o mais difícil em todos os tempos é ser a flor.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Exames nacionais - apontamentos (9)

Algumas notas ainda sobre a parte relativa à falta de fiabilidade/fidelidade das classificações dos exames nacionais.

1. No decurso dos 30 anos que levo de docência redigi algumas dezenas de recursos de classificações atribuídas a exames nacionais realizados por alunos meus (e outros, que não eram meus), da disciplina de Filosofia, dos 11.º e 12.º anos. Como qualquer professor, sempre estive/estou à disposição dos alunos para, em caso de incompreensão da classificação obtida num exame, proceder à análise e à avaliação desse exame e, nas situações em que visse/veja motivos para apresentação de recurso, proceder à sua redacção. De todos os recursos apresentados resultaram subidas das classificações. Em alguns casos, as classificações subiram duas vezes — como resultado do 1.º recurso e depois como resultado do 2.º recurso. 
Algumas observações sobre estes factos:
i) Estes alunos tiveram a sorte de ver as classificações dos seus exames corrigidas, porque circunstancialmente o professor deles (neste caso, eu) ainda não tinha entrado de férias, aquando da saída dos resultados. Caso contrário, teriam ficado com as classificações que os penalizavam;
ii) Todavia, e inversamente, nenhum dos alunos que fez exames na 2.ª fase (antiga 2.ª chamada) usufruiu dessa possibilidade, porque circunstancialmente o professor deles (neste caso, eu), no momento da saída dos resultados, já estava de férias. E obter a ajuda de outro professor é muito difícil, pois nesse período quase todos os docentes estão a gozar o tempo de descanso a que têm direito;
iii) Os alunos que, mesmo na 1.ª fase, por um qualquer motivo circunstancial, não puderam solicitar o meu apoio ficaram, na prática, sem a possibilidade de recurso;
iv) O facto de todos os recursos apresentados terem sido atendidos levanta duas possibilidades, e nenhuma delas é boa:
  a) existia uma orientação superior no sentido de considerar positivamente qualquer recurso, e daí todos terem sido despachados favoravelmente — o que é uma possibilidade assustadora;
  b) houve um erro de todos os professores correctores (ao longo dos diversos anos) nas classificações atribuídas, e daí todas as classificações terem sido alteradas— o que  é uma possibilidade igualmente assustadora.
E não parece haver terceira hipótese, o que não deixa de ser igualmente assustador...
Houve também um caso em que redigi um recurso de uma classificação atribuída a um exame de 12.º ano de uma disciplina que nunca leccionei: Português. Do 1.º recurso, resultou uma subida da classificação, que considerei insuficiente. Redigi novo recurso, do qual resultou nova subida da classificação. 
Ora, algo deve estar profundamente errado para que esta situação tivesse ocorrido: alguém que não é professor da disciplina detecta erros na classificação de uma prova que dois professores da disciplina não detectam; ou, então, o primeiro professor classificador é que estava certo e o que prevaleceu foi a classificação incorrecta dos últimos classificadores; ou, ainda, não foi uma coisa nem outra que aconteceu, porque a classificação de um exame não é um exercício de preto ou branco. Mas se for esta última hipótese a verdadeira, é necessário tirar ilações disso, e não querer fazer dos exames uma coisa que eles não são: a derradeira e superlativa avaliação.


2. Para além do conhecimento que temos das múltiplas experiências realizadas em dezenas de países  sobre o modo como os professores classificam provas de exame, tive a oportunidade de participar em duas experiências dessa natureza. A primeira há cerca de dezasseis anos, a segunda recentemente.
Em ambas as situações, foi entregue a vinte professores o enunciado de uma prova, os respectivos critérios de classificação e a prova respondida pelo aluno. No primero caso, as classificações atribuídas oscilaram entre 7,6 e 14 valores e, no segundo caso, entre 7,2 e 15,6 valores. Desta última vez, nenhum professor envolvido era inexperiente e, contudo, 30% dos classificadores reprovaria o aluno e 21% atribuir-lhe-ia uma classificação superior a 15 valores.
Da reflexão e do debate ocorridos após o conhecimento dos resultados, saliento algumas conclusões:
a) divergente entendimento sobre a função dos critérios de classificação: função simplesmente reguladora vs função objectivamente normativa;
b) divergente grau de vinculação aos critérios definidos;
c) divergente modo de aplicação dos critérios, mesmo entre quem tem um entendimento idêntico da função dos mesmos.
Não tenho nenhuma dúvida sobre a seriedade com que todos os professores envolvidos classificaram a mesma prova, mas também não há nenhuma dúvida de que, em situação real, a possibilidade dos dois alunos, que viram as suas provas avaliadas, serem ou muito prejudicados ou muito beneficiados era elevadíssima. 
Ora esta é a realidade que não constitui novidade para ninguém, mas que é sistematicamente omitida, por alguns. Como também não é novidade para ninguém dizer que, num processo de avaliação contínua, os lapsos (termo agora em moda) ocorridos na classificação de um teste são estatisticamente pouco significativos, porque se diluem no conjunto dos diversos instrumentos de avaliação utilizados durante um ano lectivo. Já o mesmo não se pode dizer de um exame nacional com peso determinante na aprovação de um aluno. 
Conclusão: com uma fiabilidade/fidelidade classificativa baixa e com o instrumento «recurso» fragilizado, pelos circunstancialismos acima referidos, deveríamos falar de exames com muita parcimónia e humildade. E, sobretudo, não deveríamos transmitir para o público uma imagem dos exames que nada tem que ver com a realidade. Enganamos o público, enganamos os alunos e enganamo-nos a nós, professores.

(Continua).

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Quinta da música - Shostakovitch

Trechos - Serge Latouche

«Medidas [que] podem desencadear círculos virtuosos do decrescimento:
[...]

4) Restaurar a agricultura camponesa, ou seja, encorajar uma produção o mais local, sazonal, natural e tradicional que for possível. [...]

5) Transformar os ganhos de produtividade em redução do tempo de trabalho e em criação de empregos, enquanto persistir o desemprego. [...]

6) Impulsionar a "produção" de bens relacionais [...]

7) Reduzir o desperdício de energia a um quarto [...]

8) Penalizar fortemente as despesas em publicidade [...]

9) Decretar uma moratória no domínio das inovações tecnocientíficas, fazer um balanço sério e reorientar a investigação científica e técnica em função de novas aspirações.

Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

Para clicar

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Às quartas

CANTILENA PARA UM TOCADOR DE FLAUTA CEGO

Flauta da noite que se cerra,
Presença líquida de um pranto,
Todos os silêncios da terra
São as pétalas do teu canto.

Espalha teu pólen na alfombra
Do catre que por fim te acoite
Mel de uma boca de sombra
Como um beijo na boca da noite

E pois que as escalas que cansas
Nos dizem que o dia acabou,
Faz-nos crer que os céus dançam
Porque um cego cantou

Marguerite Yourcenar
(Trad.: Mário Cesariny)

Não me admiraria

Imagino que ninguém tenha ficado espantado com a notícia de que Miguel Relvas fez uma licenciatura de três anos em doze meses. Os portugueses já não se admiram com nada.
Parece que através de um processo tipo RVCC, uma Universidade privada descobriu que Relvas possuía competências que o isentavam da maçada de frequentar durante três anos um curso. Foi bom para ambos: a Universidade intuiu que ali estava um potencial ministro, que lhe daria fama e proveito, e o futuro ministro não teve o aborrecimento de assistir a aulas e de fazer os exames referentes a dois terços das cadeiras. 
No fundo, tratou-se de aplicar o princípio da Iniciativa Novas Oportunidades ao ensino superior. Depois de uma outra conhecida licenciatura ter sido concluída com testes enviados por faxe e lançamento de notas realizado ao domingo, tudo se tornou possível e normal.
Um amigo meu — que também tem uma licenciatura, um mestrado, duas pós-graduações, que foi militante de uma juventude partidária e vendedor de automóveis — já me disse que vai ver se lhe reconhecem, validam e certificam as dezenas de competências que aquilo tudo deve dar, de modo a poder fazer um doutoramento em uma ou duas semanas.
Não me admiraria se daqui a uns dias ele me aparecesse doutorado.

Actualização em 7/7/12: Onde se lê: «o futuro ministro não teve o aborrecimento de assistir a aulas e de fazer os exames referentes a dois terços das cadeiras», deve ler-se: o futuro ministro não teve o aborrecimento de assistir a aulas e de fazer os exames referentes a sete oitavos das cadeiras, ou seja, não teve o aborrecimento de fazer quase 90% das disciplinas.