sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

2011

Olhamos para o ano que agora termina e vemos que foi um mau ano. Olhamos para o ano que amanhã se inicia e temos a perspectiva de que ainda será pior. Depois, perguntamos: porquê? A resposta está, certamente, no facto de todos nós (uns mais do que outros — é verdade...) permitirmos que assim seja. 
Somos nós que permitimos que se continue a viver social e economicamente de um modo profundamente errado. Somos nós que permitimos que a desregulação, a falcatrua, a burla, a fraude sejam a lei. Somos nós que permitimos que os valores da Liberdade, da Solidariedade pessoal e social, da Responsabilidade pessoal e social, da Igualdade de oportunidades, do Trabalho, da Qualidade de Vida sejam destruídos e substituídos pela obscena procura desenfreada do lucro e pelo total desrespeito pelo Outro. Somos nós que permitimos que se viva no faz-de-conta de que sou justo, no faz-de-conta de que avalio, no faz-de-conta de que sei o que faço, no faz-de-conta de que sou corajoso, no faz-de-conta de...
Somos nós que permitimos. Não há determinação extra-humana que constranja a que assim seja, não há nada que obrigue a que assim seja. Por inércia, por comodismo, por conformismo, por medo, ou por qualquer outra menos digna razão permitimos que continue a ser assim. No fundo, no fundo, temos aquilo que, colectivamente, merecemos, porque, colectivamente, o permitimos.
Os europeus, em geral, os portugueses, em particular, cada um de nós, no próximo ano, será confrontado de modo muito directo com as suas responsabilidades políticas, cívicas e profissionais.
2011 será melhor ou pior consoante o que individual e colectivamente quisermos que seja. Se optarmos pelo conformismo e pela resignação, será um péssimo ano. Se optarmos por assumir a indignação e agir em conformidade com essa indignação, 2011 será, certamente, um bom ano.
Desejo, por isso, aos leitores deste blogue, em particular, e a todos, em geral, um bom ano 2011.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

No intervalo dos bacalhaus

No intervalo dos bacalhaus, dos perus, das aletrias, das conversas e das preguiças (e também do trabalho...) folheiam-se livros oferecidos, ouve-se música e põe-se em dia a leitura de jornais e revistas. Nesta considerável pilha de folhas de papel de imprensa (que ao longo destes dias me olhava e em silêncio me questionava: «Então, quando é que te dedicas a mim?») verifico que a tendência para se engalanar as notícias, as entrevistas e as reportagens com fotografias de cada vez maior dimensão virou, actualmente, forma consolidada de fazer jornalismo. Os textos minguam e as imagens crescem. 
Se se tratar apenas de uma moda, o problema fica resolvido, daqui a algum tempo (ainda que dando muito má nota desta geração de jornalistas que produz esta pretensa «informação visual» — a verdade é que, de quase todos os pontos de vista, é falsa a asserção que diz que «uma imagem vale mil palavras»); mas se não for apenas uma fase passageira, se se pretender mesmo substituir a palavra pela foto, então, começa a formar-se uma «imagem» negra sobre o futuro da informação e do exercício reflexivo e crítico que a deve acompanhar.
Vem isto a propósito de uma constatação que, sinceramente, já nem sei se é surpreendente: verifico que emergiu, não há muito tempo, uma classe de indivíduos (não me refiro àquela das revistas de mexericos) que, quando entrevistada, parece fazer questão de ser fotografada em pose. Agora, parece não haver gestor, banqueiro, engenheiro ou empresário dito de sucesso que, por vontade própria ou sugestão alheia, não se plante em frente da câmara fotográfica em posição pretensamente agressiva, pretensamente viril, quase de cowboy. Olham para a câmara com altivez, atiram o corpo para a frente, fazem um olhar desafiante e, presumo eu, julgam revelar, deste modo, a sua verdadeira natureza de vencedores, de homens dinâmicos que enfrentam os desafios do presente e do futuro como o forcado enfrenta o touro.
Depois da época do cabelo empastelado de gel, depois da fase da barba de três dias, estamos, parece-me, a viver o momento cowboy dos designados homens de sucesso. Estes homens são aqueles que, invariavelmente, são designados por «homens dos números», aqueles que trabalham para os resultados, aqueles que atingem os objectivos. Aqueles que nos são apresentados como arquétipos, a quem devemos estar gratos pelos resultados que alcançam, curiosamente, para eles próprios.
É claro que nesta época festiva, em que todos damos as mãos e retiramos da naftalina os nossos melhores e mais puros sentimentos, não serei eu a questionar, desagradavelmente, o valor dos «homens dos números» e das suas inúmeras qualidades. Mas o que julgo já me ser permitido fazer, sem ferir sentimentos natalícios, é mostrar a minha perplexidade pela representação mental que estes homens constroem acerca de si próprios e que os faz sentir a necessidade de se apresentarem ao público como o toureiro se apresenta na praça.
E o pior é que, provavelmente, tudo isto acontece como consequência de um superavit de números e de imagens e de um défice de palavra e de reflexão.

Às quartas

CONTO DE INVERNO

A luz do vento entre os pinheiros, — compreendo
estes sinais de tristeza incandescente?

Um enforcado balança-se na árvore marcada com a cruz
lilás.
Até que conseguiu deslizar fora do meu sonho e 
entrar no meu quarto pela janela, com a cumplicidade
do vento da meia-noite.

Alejandra Pizarnik
(Trad.: José Bento)

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Registos e notas do fim-de-semana (alargado)

Só um por cento das ajudas foi para o emprego
 — Dois terços das ajudas contra a crise foram absorvidas,
em 2009, pelos bancos —

2009: Défice saltou de 2,9 para 9,3% do PIB, mas dessa escalada só 22,4% se devem às ajudas de combate à crise
Público (22/12/10)

Ministros faltam cada vez mais em Bruxelas

BPN gastou 14 milhões com consultores desde que foi nacionalizado
Expresso (23/12/10)

Presidente dos CTT recebia dois ordenados (15 mil + 23 mil euros)
Sol (23/12/10)

Ministério da Justiça usou indevidamente 326 milhões depositados nos tribunais
Público (24/12/10)

Há pessoas que erram desastradamente na escolha da profissão. Sócrates foi/é um deles. Sócrates seria, é sem ironia que o digo, um excelente ilusionista ou um excelente vendedor, fosse qual fosse a qualidade do produto que tivesse em mãos para despachar. Mas ao contrário do que sucede na generalidade das situações, em que são os próprios, e não os outros, os primeiros prejudicados pelo erro na escolha da profissão, o que se passa no caso de Sócrates é o inverso: o erro foi dele, mas quem sofre as consequências são os outros, ou, melhor, somos nós. 
Como acontece com qualquer mau produto, passado algum tempo, a prova da sua má qualidade revela-se inexoravelmente, e quem adquiriu o produto é quem sofre. É o que nos está a acontecer. É no momento em que o produto revela a sua medíocre qualidade que se fica a saber que aquilo que o vendedor afirmou, tão convicta e peremptoriamente, acerca do produto, era uma xixilada mentira.
Foi o que aconteceu, mais uma vez, esta semana: ficamos a saber que, afinal, e ao contrário do que o tal vendedor propalava, só um por cento das ajudas foi para o emprego e que foram os bancos os principais beneficiários das tais ajudas de combate à crise. Como ficámos a saber também que a brutal subida do défice para 9,3% só é justificável em 22,4% pelos gastos com a crise. Os outros 77,6% foram parar onde?

Ouve-se dizer com frequência que o Natal deveria ser todos os dias. O nosso Governo concretizou este desejo antigo e decidiu, desde que nacionalizou as fraudes e as dívidas do BPN, distribuir «nataliciamente» 14 milhões de euros, só para consultores. 
Também quem sabe o que é ter um Natal todos os dias é o anterior presidente dos CTT, que recebia alegre e «nataliciamente» dois vencimentos (dos Correios e da PT, onde já não exercia qualquer cargo) no valor total de quase 38 mil euros mensais.
«Natalícia» e alegremente também, o Ministério da Justiça decidiu meter a mão no saco do Pai Natal (isto é, no dinheiro depositado nos tribunais para fins específicos) e não esteve com inibições em gastá-lo, pois o Natal é sempre que o homem quiser.

Uma nota final: se os nossos ministros faltam cada vez mais às reuniões em Bruxelas e se nós já quase não os vemos por cá, por onde é que eles andam?

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Um abraço, com festas para todos

O tempo não está para festas, mas é a época delas, e o calendário, nestas coisas, é quem manda. No meio de uma crise enorme, que, verdadeiramente, vai começar a doer dentro de pouco mais de uma semana, este período de aparente acalmia é uma doce ilusão semelhante à crença infantil no Pai Natal. Mas enquanto o pau vai e vem... 
Tenho a leve impressão de que muitos portugueses ainda não tomaram verdadeira consciência do que aí vem. Tenho a ligeira sensação de que muitos portugueses continuam a viver o seu dia-a-dia como se nada de grave esteja à beira de acontecer. Somos um povo estranho, alternamos entre a euforia e a angústia, mas somos muito regulares na irresponsabilidade. Vemos o pau apontado às nossas costa, vemo-lo em movimento descendente, pressentimo-lo a escassos centímetros da nossa pele, mas mantemos sempre a secreta esperança de que ele nunca nos chegará a atingir. E como a esperança é a última coisa a morrer, vamos fazendo de conta que não está a acontecer ou para acontecer coisa alguma.
Somos assim e parece que gostamos de ser assim.

Mas não foi bem para isto que eu comecei a escrever este post, comecei a escrevê-lo para me dirigir aos leitores deste blogue e para lhes desejar, a eles e a mim, coisas simples, como, por exemplo: aproveitar estes dias para descansar, ler, conversar, ouvir música, passear a pé, namorar, apreciar cores, sabores, odores e o que mais houver para apreciar.
Este blogue e o seu autor vão tentar fazer isso, é por essa razão que só voltarão para a semana.
Um abraço, com festas para todos.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Às quartas

TRISTITIA ANTE

Sobre o urzeiral nevado:
a granja e a pilha de lenha negras
e o abeto escuro, possante, água-forte
sob uma estrela, soprada e impassível.

No charco de aço do luar
bizarras me parecem as plantas,
o machado rombo e o pote quebrado
pelo gelo lúcido-transparente.

De repente o frio morde até aos ossos
e a minha solidão busca o tiro
que estica o horizonte até à eternidade
na minha desafortunada vadiagem

Até que me interno na mata
e encontro a lebre torturada,
inanimada e rígida
no seu sangue sobre a neve.

Só um branco intenso trago
em mim, dessa luz estou prisioneiro;
e nada é tão apertado e tão justo
como o próprio corpo.

Maurice Gilliams
(Trad.: Fernando Venâncio)

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Bonecos de palavra

                                                                                                                                   Bill Waterson
Para ampliar, clicar na imagem.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Registos e notas do fim-de-semana

Governo recusa revelar despesas dos gabinetes
— Juízes avançam com acções em tribunal para obrigar o Executivo a dizer quanto gastam em telefones, subsídios e cartões de crédito —

Face Oculta cheio de ilegalidades
— Erros do PGR e do presidente do STJ podem levar à anulação do processo —
Sol (17/12/10)

Saúde descobre buraco gigante

Governo esconde novas regras para lay-off

Cantinas abertas nas férias para alimentar alunos

Mais de 10 mil crianças almoçam nas escolas

Portugueses são dos que mais acreditam que quem nasce pobre pobre permanecerá
Público (17/12/10)

Sócrates admite ir ainda mais longe para combater a crise

Ana Jorge continua a não revelar valor do défice
Público (18/12/10)

Governo conta com China, Líbia e árabes para fugir ao FMI

BPN paga a quadros que não trabalham
Expresso (18/12/10)

Governo esconde degradação do controlo da despesa pública
Público (18/12/10)

Por que razão esconde o Governo as despesas dos seus gabinetes? Por que razão a ministra da Saúde não divulga os valores reais, já do seu conhecimento, do défice a que chegou o seu sector? Por que razão está envolto em segredo o encerramento das contas públicas deste ano?

Diz a notícia que o BPN paga a quadros que não trabalham. Há um erro nesta informação: não é o BPN quem paga aos quadros que não trabalham, somos nós. Nós, os contribuintes. Somos nós que pagamos aos quadros do BPN que não trabalham. E quem nos retira o dinheiro e o entrega aos quadros do BPN que não trabalham é o Governo de José Sócrates.

Quando lemos que as cantinas de muitas escolas vão ficar abertas durante as férias lectivas, porque há cada vez mais crianças que não têm acesso a outra refeição que não seja aquela que a escola lhes pode dar, ficamos constrangidos e indignados com esta realidade e ficamos revoltados por, recorrentemente, ouvirmos o primeiro responsável por esta situação apresentar-se como corajoso por tomar medidas que conduzem milhões de portugueses à pobreza e à fome. Sócrates é o primeiro culpado por termos chegado ao ponto onde chegámos, e, se a dignidade fosse um valor que ele preservasse, já há muito que teria sentido a obrigação de se demitir e de pedir desculpa ao País.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Pensamentos de domingo

«Deus estava satisfeito com a sua obra, e isso é um erro fatal.»
Samuel Butler

«Deus morreu ao criar-nos, nós somos uma obra póstuma.»
Gesualdo Bugalino

«Deus não existe e, se existe, não é muito confiável.»
Woody Allen

In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

Eddie Daniels & Gary Burton

sábado, 18 de dezembro de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico

Quem me chama?

«[...] Na década de 1870, [o fenómeno do espiritismo pairava no ar]. Madame Blavatsky, uma espampanante americana de origem russa, através do Tibete, fundou a Sociedade Teosófica, em Nova Iorque, em 1875, uma organização que se dedicava ao estudo do espiritismo. As suas sessões eram a grande moda em Inglaterra e na América. [...] 
Filósofos como William James e Henry Sidgwick esgueiravam-se para salas escurecidas para para falarem com outros do Outro Lado.
Ao que parece, o que James tinha em mente era a abertura de espírito. A sua teoria do conhecimento, ao estilo americano, defendia que a verdade não é estática; pelo contrário, está em constante evolução. E os materialistas — filósofos  que vão desde Lucrécio até Thomas Hobbes e acreditam que apenas o mundo material é real — estavam a tentar travar a verdade. Para James, as teorias verdadeiras são teorias úteis; não só estão de acordo com todos os factos conhecidos como abrem caminho para a descoberta de verdades futuras. Se o futuro vier a contradizer as verdades de hoje, não há problema: admitiremos essas contradições e declararemos que as teorias são falsas. Mas, entretanto, se uma hipótese guiar satisfatoriamente as nossas acções, então é suficientemente verdadeira para James lhe chamar "Verdade".
De acordo com a epistemologia de James, negar à partida a possibilidade de um espírito sobreviver ao corpo era materialismo dogmático: fechava a porta à possibilidade de uma verdade recém-revelada.
Mais, James defendia a "vontade de acreditar", especificamente quando estava em causa a religião. Com isso ele queria referir-se ao nosso "direito de acreditar em qualquer coisa que esteja suficientemente viva para tentar a nossa vontade." Apesar de não termos o direito de acreditar numa coisa que seja incompatível com os factos tal como os conhecemos, quando estão em causa questões de crença religiosa ou de crença no livre-arbítrio — em que os factos conhecidos são insuficientes para decidir a questão —, somos livres de escolher o caminho que nos parecer melhor. James mostrou de forma inteligente como isto funcionava quando escreveu no seu diário: "O meu primeiro acto de livre-arbítrio será acreditar no livre-arbítrio."» [...]
Nos debates sobre sessões de espiritismo não há qualquer consideração pelos mortos que respondem à chamada. Porque é que têm de aparecer quando são invocados? Não terão pelo menos o direito de ver a identidade de quem os chama antes de aparecerem?
O empregado de há muitos anos foi chorado pelos clientes quando morreu. Era tão amado que vários clientes habituais organizaram uma sessão de espiritismo no restaurante para tentarem entrar em contacto com ele.
Todos deram as mãos na penumbra à volta da mesa e o médium exclamou:
— Snark Withers! Invoco o espírito de Snark Withers!
Silêncio.
— Snark Withers! — chamou de novo o médium. — Invoco o espírito de Snark Withers!
Silêncio uma vez mais. As pessoas que estavam à volta da mesa começaram a ficar inquietas. Pressentindo um problema o médium gritou:
— Ordeno ao espírito de Snark Withers que apareça!
De repente viu-se uma aparição a flutuar sobre a mesa e todos reconheceram a imagem do amigo perdido.
— É tão bom ver-te! — exclamou um dos clientes habituais. — Mas porque é que demoraste tanto tempo a aparecer?
— O fantasma empinou o nariz, irritado, e respondeu:
— Esta mesa não é minha!»
Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp.174-176 (adaptado).

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 5

Apontamentos, ainda, sobre a primeira dimensão: Vertente profissional, social e ética.
1. O terceiro descritor do nível «Bom» enuncia: [O professor] «Participa no trabalho colaborativo e nos projectos da escola com alguma regularidade.» 
Presumo que «alguma» esteja, aqui, enquanto quantificador, isto é, enquanto quantificador existencial. Segundo o Dicionário Terminológico, este quantificador é «utilizado para asserir a existência da entidade designada pelo nome com que se combina sem remeter para a totalidade dos elementos do conjunto (i) ou para expressar uma quantidade não precisa (ii) ou relativa a um valor considerado como ponto de referência (iii)» (os sublinhados são meus). Como o nome «regularidade» não é susceptível de se enquadrar num conjunto formado por elementos (i), restam-nos a segunda (ii) e a terceira (iii) hipóteses. A segunda hipótese, certamente, também não será de considerar, porque admitir que «alguma» expressa uma quantidade «não precisa» seria admitir exactamente aquilo que um descritor não deve ser, ou seja: não deve ser impreciso, não nos pode remeter para algo de indeterminado. O descritor tem o objectivo oposto, caso contrário, só atrapalha. Resta-nos a terceira hipótese: «alguma» ser um quantificador que expressa uma quantidade relativa a um valor considerado como ponto de referência. Neste caso, o valor considerado como ponto de referência terá de ser aquilo que se entender por «regularidade». 
E o que é que se pode entender por «regularidade», no contexto específico da «participação no trabalho colaborativo e nos projectos da escola»? Como é medida essa regularidade? Como se mede a regularidade no trabalho colaborativo? Aquele que participa no trabalho colaborativo com «regularidade» é aquele que colabora todos os meses, todas as semanas, todos os dias, ou todas as horas? Todas as horas não é seguramente (penso eu...). Será todos os dias? Não parece ser razoável. Nem razoável nem verificável, a não ser que cada professor avaliado tivesse atrás de si um avaliador, desde o momento em que entrasse até ao que saísse da escola. Não sendo, então, todos os dias, será quando? Algumas vezes por semana? Uma vez por semana? Uma vez por mês? Ou não será nada disto e será apenas quando o professor for solicitado que deve desenvolver trabalho colaborativo? Era uma hipótese, mas também não pode ser, porque o descritor do nível abaixo de «Bom», o nível «Regular» (nível que já tem penalizações), é aquele que enuncia essa possibilidade: «Quando solicitado, o docente desenvolve trabalho colaborativo». Por conseguinte, o professor, se não quiser ser penalizado, não pode desenvolver trabalho colaborativo apenas quando é solicitado, mesmo quando não solicitado tem de desenvolver esse trabalho. 
Excluída a hipótese de «quando solicitado» como critério, voltamos ao início: o que significa participar no trabalho colaborativo com «regularidade»? Como se mensura, enquanto comportamento, ou, enquanto «evidência» (utilizando a palavra rainha dos «cientistas» da Educação), a participação, com regularidade, no trabalho colaborativo?
Como se vê, é enorme a dificuldade (para não dizer impossibilidade) de responder à pergunta: como se define operativamente e como se mede a «regularidade» do trabalho colaborativo? 
Se existe esta objectiva dificuldade (impossibilidade), como será, então, se antepusermos à palavra «regularidade» o quantificador existencial «alguma»? Como é óbvio, tudo fica ainda mais complicado. Se à indeterminação do que se entende por «regularidade», se se junta a indeterminação do que se entende por «alguma», entramos num labirinto sem saída.
O mesmo se tem de dizer relativamente à segunda parte deste descritor, que nos remete para a participação com «alguma regularidade» nos projectos da escola. As mesmas perguntas, as mesmas dificuldades, o mesmo labirinto. Tudo a dobrar.

2. Este erro, utilizar o quantificador existencial «alguma» (que nos remete para uma indeterminação), repete-se nos  dois primeiros descritores do nível «Regular». Mas agora já não aplicado à «regularidade» mas aplicado à «preocupação»: «O docente demonstra alguma preocupação com a qualidade das suas práticas [...]»; «Revela alguma preocupação com as aprendizagens dos alunos [...]». Salvo melhor opinião, parece existir nos autores destes textos a preocupação de tornar tudo isto indecifrável e irrealizável. Introduzir um estado de espírito, no caso, «preocupação», como algo susceptível de ser demonstrado e de ser avaliado significa conduzir avaliados e avaliadores para um pântano de que não é possível sair.
Mas, para além disto, o primeiro descritor do nível «Regular» suscita uma perplexidade incontornável. O enunciado completo é o seguinte: ««O docente demonstra alguma preocupação com a qualidade das suas práticas e procura manter o seu conhecimento profissional actualizado, embora não o faça de forma sistemática e consistente.» A perplexidade a que aludi (ainda há outras, mas vamos fazer de conta que não há) reside no «consistente». Este adjectivo (que já analisei em apontamento anterior) só é utilizado uma única vez no nível mais elevado, isto é, no «Excelente». Nos níveis «Muito Bom» e «Bom», a «consistência» não é sequer mencionada e, de repente, três níveis abaixo, volta a falar-se em «consistência». Neste caso, fala-se em ausência de «consistência» sistemática, o que deveria implicar que a «consistência sistemática» fosse exigida nos dois níveis imediatamente superiores. Mas a «consistência», sistemática ou não sistemática, eclipsou-se desses níveis. A não ser que se possa considerar normal que em um dos níveis inferiores se penalize pela falta de algo que não é exigido em níveis superiores.
Percebe-se isto? Não se percebe.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Apostilhas sindicais

1. Mário Nogueira anunciou que, em Janeiro, vai entregar nos tribunais seis providências cautelares, para suspender a redução salarial. 
A Fenprof está a especializar-se em entregadora de providências cautelares. Providências cautelares que sabe, à partida, estarem destinadas a dar em coisa nenhuma. A lei permite que o Governo, facilmente, ultrapasse grande parte dessas providências. Mário Nogueira sabe disso, a Fenprof sabe disso, mas fazem de conta que não sabem. Acham que marcam um ponto com mais um fogacho televisivo, com mais um ritual cumprido. O Governo sorri da iniciativa, Mário Nogueira sorrirá para as câmaras e teremos mais um episódio sindical passado e as consciências aliviadas.
Entretanto, está a decorrer um vergonhoso processo de avaliação dos professores, ao mesmo tempo que se desenvolvem múltiplas situações, e já se anunciam outras, fortemente lesivas da qualidade da Educação e lesivas das condições de exercício da docência. Tudo isto está a decorrer, desde Setembro, mas contestação a sério e oposição determinada não fazem parte da agenda sindical.

2. Mário Nogueira anunciou também que está a estudar a hipótese de serem realizadas greves durante o período de correcção de exames. Informou igualmente que irá promover uma «grande iniciativa nacional», de rua, no final de Março, com professores, alunos, pais e autarquias, em defesa de uma Escola Pública de qualidade. Ficamos todos muito mais descansados ao sabermos destas iniciativas: uma no fim de Março e outra no fim de Junho.
Em Março, um desfile, provavelmente, pela Escola Pública. Unanimidade assegurada, mais um momento televisivo, e que mais? O que haverá antes e imediatamente depois disso?
No fim de Junho, isto é, após a conclusão do ano lectivo, se a Fenprof decidir, repito, se a Fenprof decidir avançar com a greve (no que eu não acredito), que pretende alcançar exactamente? Que seja revogado o despacho que determinou o não pagamento da correcção das provas de exame? É apenas esse o objectivo?
Entretanto, até Março, até Junho, desde Setembro, que está a decorrer um escandaloso processo de avaliação dos professores, ao mesmo tempo que se desenvolvem múltiplas situações, e outras vêm a caminho, fortemente lesivas da qualidade da Educação e lesivas das condições de exercício da docência. Tudo isto está a decorrer, desde Setembro, mas contestação a sério e oposição determinada não fazem parte da agenda sindical.

3. Foi hoje tornado público (aqui e aqui) que um conhecido dirigente do SPGL e da Fenprof deixou o sindicato para ir trabalhar para o Ministério da Educação, ocupando um alto cargo. Não é o primeiro e, certamente, não será o último.
A confirmar-se, e como se vê, os comportamentos politicamente obscenos não são um exclusivo dos governantes.

Às quartas

ODE BÁQUICA

Tua dor eu adivinho
Alguém te foi maldizer?
Esquece, amigo, o desalinho,
A taça - enche-a de vinho
             E a beber!

O vinho é no rir fecundo,
E faz esquecer a dor
Julgas que ao criar o mundo
Estava desperto, no fundo,
             O Senhor?

Em divina borracheira
Quando o mundo concebeu,
«Fiat lux!» de boca cheia
Disse, e logo a candeia
              Acendeu...

Daí tem o vinho amena
Dádiva celestial
De pôr a vista serena
E aliviar na alma a pena
              Mais brutal!

Da Escritura bem percebe
Até o último cristão
Que na Páscoa só se bebe
Vinho quando se recebe
              Comunhão!

Não foi por divina ideia
- Fariseus, calem de vez! -
Que da água o rei da Judeia,
Cristo, em Caná Galileia
              Vinho fez?

Mesmo o poeta decente
Bêbedo, não escreve bem?
Em luz real, cruamente
Como em sonhos, de repente
               Tudo vem...

Sarmento de vide enquanto
Pelo esteio for trepar,
Meus irmãos, copos ao alto!...
Venham diabos dar assalto
                Por milhar!

Stefan Octavian Iosif
(Trad.: Doina Zugravescu)

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Bonecos de palavra

                                                                                                                  © 1993, by Bill Waterson
Para ampliar, clicar na imagem.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Registos e notas do fim-de-semana

PISA: Docentes desvalorizam relatório da OCDE
Sol (10/12/10)

Ex-governantes e críticos do actual sistema avaliam consequências do PISA
Público (11/12/10)
PISA: Justa celebração

Mariano Gago trava acesso das Novas Oportunidades ao ensino superior
Expresso (11/12/10)
Portugal descobriu o PISA. Se um ET tivesse chegado ao nosso planeta, e se tivesse (para infelicidade sua) aterrado em Portugal, e se o dia da aterragem tivesse sido na passada terça-feira, e se se tivesse mantido por cá até ao fim-de-semana, e se «arranhasse» a nossa língua, e se tivesse tido oportunidade de ler as «gordas» dos jornais, e se tivesse assistido ao debate da passada sexta-feira no Parlamento, certamente que teria ficado convencido de duas coisas:  de que Pisa não fica na Itália, fica em Portugal, e de que tinha aterrado no país com os melhores alunos do mundo, com os melhores ministros da Educação do mundo e com o primeiro-ministro mais risonho do mundo.
Mas, do mesmo modo que se pergunta à hiena de que ri ela, devemos perguntar ao primeiro-ministro: o senhor ri de quê?
Um político, de um país cujos resultados do PISA ficaram um pouco acima da média dos alcançados pelos países da OCDE, tirou esta conclusão: «Estar na média não ajudará os nossos estudantes a conseguirem os empregos de amanhã.» Em Portugal, cujos resultados ficaram abaixo dessa média, o primeiro-ministro ri.
Em Portugal, sobe-se do «medíocre menos» para o «medíocre» e o primeiro-ministro ri. E a actual ministra da Educação ri, a anterior ministra ri, tudo que é político ri. Se não ligarmos ao circo político, e se nos ativermos apenas à realidade, deveremos questionar-nos se um aluno que passa de uma nota de 5 para 8 (numa escala de zero a vinte) tem motivos para ficar feliz. Não tem. Nesta situação, nenhum aluno ri. Um professor que vê um aluno seu passar de 5 para 8 fica feliz? Não fica.  Nesta situação, nenhum professor ri. Um pai que vê o seu filho passar de uma nota de 5 para 8 fica feliz? Não fica. Nesta situação, nenhum pai  ri. Todos eles têm motivos para ficar menos tristes, mas todos têm fundados motivos para estar tristes. Porém, em Portugal, os nossos políticos ficam felizes por passarmos do 5 para o 8. Nem sequer ao 10 chegámos, mas o nosso primeiro-ministro ri. Ficámos abaixo do meio da tabela, ficámos aquém da média, que em 2009 até baixou, mas o nosso primeiro-ministro ri.

Se a OCDE prosseguir no caminho que tem prosseguido nos últimos anos, tornar-se-á, a médio prazo, uma organização irrelevante, do ponto de vista da credibilidade técnica dos seus relatórios. Recordo o relatório sobre o modelo de avaliação de Lurdes Rodrigues; recordo a rocambolesca história de um outro relatório que era da OCDE, mas que depois já não  era da OCDE, mas que afinal tinha o seu informal beneplácito; recordo o relatório económico de Portugal apresentado no passado mês de Setembro e o recente relatório do PISA 2009. Todos eles têm um traço comum: são mais políticos do que técnicos e, o que é mais grave, pretendem esconder as suas avaliações políticas por detrás de uma capa técnica.

Este fim-de-semana, assisti, na televisão, a um momento politicamente obsceno. Vi o primeiro-ministro dirigir a palavra a alunos do Programa Novas Oportunidades, a quem tinha acabado de entregar diplomas, dizendo-lhes: «Ainda há quem considere que há facilitismo nos cursos das Novas Oportunidades! Vejam bem, dizem que há facilitismo, quando olho para vós e vejo pessoas que durante o dia trabalham e que, à noite, decidiram vir estudar. Isto é facilitismo?!»
Há limites que nunca deveriam ser ultrapassados. Este discurso repugna, porque manipula, sem pudor, pessoas que decidiram voltar à escola. Porque trata estas pessoas como marionetas do jogo político rasteiro. É inadmissível, é intolerável. Sócrates sabe que o facilitismo não está nem poderia estar no facto de as pessoas trabalharem de dia e irem estudar à noite. Mas di-lo, o que é obsceno. Sócrates sabe que o facilitismo reside no facto destes alunos concluírem o ensino secundário em ano e meio, enquanto os outros estudantes concluem-no em três anos. O facilitismo está no facto de estes cursos equivalerem formalmente ao 12.º ano. O facilitismo está em dizer a estes alunos que o seu curso de ensino secundário, pelas Novas Oportunidades, tem o mesmo valor  do que um curso do ensino secundário regular. O facilitismo está em permitir que alunos que têm baixíssimos níveis de literacia fiquem certificados com o 12.º ano. O facilitismo está em oferecer a estes alunos regras muito mais fáceis de acesso ao ensino superior do que aos outros alunos. O facilitismo reside nisto. Sócrates sabe, mas não o diz, esconde-o. E isso é obsceno.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Pensamentos de domingo

«O mundo inteiro é um palco, e todos os homens e todas as mulheres são apenas actores.»
William Shakespeare

«O mundo pode ser um palco. Mas o elenco é um horror.»
Oscar Wilde

«Tudo acaba em canções.»
Pierre Beaumarchais
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

Ray Brown Trio e Regina Carter

sábado, 11 de dezembro de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico

A Visão do Túnel

«A loucura [do fenómeno da experiência de quase-morte, isto é,] da EQM surgiu com a publicação, em 1975, de Vida depois da Vida: investigação de um fenómeno — a sobrevivência à morte física, de Raymond Moody. Centenas de pessoas que não se conheciam umas às outras e que foram entrevistadas por Moody contaram todas, ou pelo menos algumas, das experiências [de quase-morte por que passaram]. O livro foi um sucesso de vendas. Fez -se um filme baseado nele. Foram relatadas cada vez mais EQM e, com o advento da Net, as pessoas que viveram este tipo de episódios entraram em contacto umas com as outras para comparar experiências.
As EQM pareciam provar não só que afinal de contas existe uma vida depois da morte mas também que todo o pacote da religião se baseia em experiência genuínas. O que tínhamos aqui era nada menos do que a prova empírica do Céu, Inferno, Deus, Satanás, telepatia e cães-anjo.
Mas, quem diria, precisamente quando as pessoas que viveram esta experiência pensavam que tinham o assunto encerrado, vieram uns tipos da ciência e da filosofia desempenhar o seu papel de sempre, o de desmancha-prazeres. Esses cépticos começam  normalmente por admitir que não podem contestar a existência de uma vida depois da morte, nem sequer de uma amostra dela durante a "morte clínica", mas por outro lado as evidências apresentadas — relatos subjectivos de experiência de QM — também não provam a existência de uma vida depois da morte. Relativamente a quaisquer experiências paranormais — por exemplo, ver bules voadores a circular à volta da cabeça da sua mulher —, não há um teste objectivo para validar a experiência da pessoa. A questão principal relativamente à EQM é se a experiência tem alguma relação com a nossa realidade empírica "regular" (o "mundo real") [...].
Choques repentinos nas sinapses são a explicação alternativa dos cépticos para as experiências de quase-morte — são uma forma invulgar de actividade cerebral, provavelmente accionadas pelo trauma de esticar o pernil. O neurocirurgião  Philip Carter diz: "O cérebro é o computador supremo. Quando se desliga e reinicia, volta com muita actividade que pode provocar mudanças." Ele sugere que quer a experiência quer a memória da EQM são o resultado de um cérebro alterado pelo episódio, tal como os epilépticos que relatam memórias de experiências transcendentais durante ataques tiveram episódios cerebrais invulgares que podem ser registados num EEG.
O monitor confirmou paragem cardíaca quando um velhote perdeu repentinamente a consciência. Passados cerca de 20 segundos de reanimação, ele voltou a si. O médico explicou-lhe que o seu coração tinha parado momentaneamente e perguntou-lhe se se recordava de alguma coisa invulgar durante esse tempo.
— Vi uma luz brilhante — disse ele — e à minha frente estava um homem vestido de branco.
Entusiasmado, o médico perguntou se ele conseguia descrever a figura.
— Claro, doutor — respondeu ele. — Era o senhor.»
Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp.169-170.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 4

Prosseguindo, ainda, na primeira dimensão: Vertente profissional, social e ética.
Os segundos descritores dos níveis «Excelente» e «Muito Bom» são iguais, ambos enunciam: [O professor] «Revela um profundo comprometimento na promoção do desenvolvimento integral do aluno e investe na qualidade das suas aprendizagens.»
O segundo descritor do nível Bom é o seguinte: [O professor] «Revela comprometimento na promoção do desenvolvimento integral do aluno e na qualidade das suas aprendizagens.» Isto é, aqui desaparecem as palavras «profundo» e «investe».

Observações:
1. Entre um profundo comprometimento e um comprometimento que não é profundo como se mede a diferença? Que comportamentos configuram um profundo comprometimento, e que comportamentos configuram um comprometimento que não é profundo, ou seja, um comprometimento que é apenas comprometimento?
À segunda pergunta nunca obtive resposta, à primeira já obtive, ainda que tímida e insegura: «mede-se a diferença comparando».
Ao problema da ausência de resposta à segunda questão, junta-se o problema da manifesta insuficiência da resposta à primeira.
Na verdade, o método comparativo poderá servir para fazer distinções relativas, mas não serve para atribuir classificações ou níveis absolutos, que é aquilo que o modelo de avaliação exige. Com o método comparativo — aceitando como hipótese de trabalho que ele é fiável (o que, como se sabe, não é pacífico)— apenas poderei saber que A é melhor que B, mas apenas poderei saber isso, pois o método comparativo não me elucida relativamente ao nível em que devo colocar A, ou ao nível em que devo colocar B. Se existem, por exemplo, cinco níveis, o método comparativo apenas me diz que A está, pelo menos, um nível acima de B, mas não me diz em que nível se encontra A nem em que nível se encontra B. Se não possuir um instrumento de medida, fico sem saber onde insiro A e onde insiro B.
Para possuirmos um instrumento de medida, temos que, em primeiro lugar, definir um padrão que sirva de referência absoluta (não de referência relativa), para, a partir dele, podermos estabelecer graduações de aproximação ou de afastamento a esse padrão. Ora, é aqui que reside um das partes do problema: há realidades onde é possível, ainda que provisoriamente (como é o caso do conhecimento científico), definir padrões de referência absoluta; e há realidades onde isso não é possível (como é o caso, entre muitos outros, da quase totalidade das vertentes sobre as quais recai a designada avaliação do desempenho docente, nos termos em que está definida).
Admitindo, como  exemplo, que «profundo comprometimento» é a designação do padrão que se quer como referência absoluta, teríamos, agora, de saber a que realidade nos reporta essa designação, teríamos de saber o que, exactamente, isso é: o que isso é, em termos comportamentais, ou seja, o que isso é, em termos observáveis. Isto exigiria duas coisas: a) a definição do conceito «comprometimento», em contexto da actividade docente, e o modo como se revela, em termos comportamentais, esse «comprometimento»; b) a definição do conceito «profundo» e modo como se revela, em termos comportamentais, essa «profundidade», aplicada ao comprometimento. Não seria necessário definir até «onde vai» a «profundidade» de um comprometimento, mas seria obrigatório definir a «partir de onde», em termos comportamentais, ou «a partir de quais» comportamentos, é que se entende que começa a «profundidade» de um comprometimento. Isto é possível? Duvido, mas se as definições existem, elas têm de ser mostradas. Se não existem, mas se houver quem as saiba formular, que as formule e que depois as revele e submeta a escrutínio, porque só após escrutínio poderão ser validadas. 
Enquanto isto não acontecer, ou enquanto não se mudar radicalmente de modelo, não vejo possibilidade de seriedade no trabalho avaliativo. Enquanto isto não acontecer, estaremos sempre a trabalhar a nível do «olhómetro», do «palpite», do «bitaite». E, como parece ser óbvio, a vida profissional de um professor não pode estar dependente disto.

2. Quanto à supressão do verbo «investir», ela parece-me incompreensível. Não descortino em que é que a ausência ou a presença deste verbo, no contexto da frase («Revela comprometimento na promoção do desenvolvimento integral do aluno e [investe] na qualidade das suas aprendizagens.»), altera, do ponto de vista semântico, o que quer que seja. E, do ponto de vista sintáctico, a sua supressão até me parece desastrosa.

Ao ler-se estes documentos, fica-se muitas vezes com a sensação de que tudo isto foi feito em cima do joelho, para desenrascar e para dar a aparência de que existe uma avaliação. A esta sensação junta-se outra: as pessoas que escreveram as diferentes partes dos documentos terão reunido poucas vezes.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Quinta da Clássica - Philip Glass

O presidente do CE e o sr. Joaquim

Confesso que só ontem li a entrevista que o Expresso fez ao presidente do Conselho de Escolas (CE). Não sei se por saturação de más notícias sobre Educação (ou de menos más e logo tidas como superlativas, fantásticas e excelentes, como é o caso dos comentários sobre os últimos resultados do PISA), ou se por ter achado que uma fotografia tão grande para tão pouco texto seria sinal de que a jornalista que fez a entrevista não tinha conseguido aproveitar grande coisa das palavras do presidente do CE, o facto é que ainda não tinha lido.
Agora que li, acho que consigo compreender as dificuldades que a jornalista deve ter sentido para conseguir preencher uma página de entrevista. Ela deve ter pensado o mesmo que eu pensei quando cheguei ao fim da leitura: mas onde está a diferença entre ter entrevistado este homem ou ter entrevistado o sr. Joaquim, da mercearia do bairro, cujo contacto com a escola ficou limitado aos primeiros quatros anos do ensino básico?
Presumo que o argumento que a jornalista encontrou para justificar perante o seu director a publicação da entrevista terá sido isso mesmo: considerar como verdadeiro motivo de notícia o facto de presidente do CE falar sobre a Educação e sobre a Escola como falaria o sr. Joaquim, que já  há mais de meio século não pisa solo escolar. Deste ponto de vista, percebo e corroboro a decisão de publicarem aquelas (poucas) linhas e aquela (enorme) fotografia.
Não tenho dúvidas de que o presidente do CE conseguiu responder de modo muito semelhante àquele que responderia o sr. Joaquim, se, por exemplo, fosse questionado acerca da competência de quem faz a avaliação dos professores. Isto é, o sr. Joaquim, se não tivesse o bom senso de ficar calado, só poderia, como é natural, dizer dislates e asnices. Ora, foi exactamente isso o que o presidente do CE fez: respondeu dislates e asnices inimagináveis. Disse o sr. presidente: «As pessoas que avaliam são praticamente as mesmas que foram eleitas pelos professores para desempenhar as funções de coordenadores de disciplina. Sendo assim, não lhes reconhecem competência para avaliar?» 
O que me causa mesmo perplexidade é a capacidade de se dizer tanta sandice em tão poucas palavras. Sem ironia, julgo que este caso deveria ser objecto de um estudo qualquer. Não é normal isto acontecer.
Vejamos, os factos são estes:
1. Há escolas em que os professores coordenadores de disciplina foram eleitos e outras em que não foram eleitos, foram nomeados;
2. Na maioria das escolas os professores avaliadores são em muito maior número que os professores coordenadores de disciplina. Em muitas escolas, em particular, escolas secundárias, existem cerca de treze ou catorze coordenadores de disciplina e o número de professores avaliadores oscila entre os vinte e cinco e os trinta e cinco.
3. Há casos de professores coordenadores de disciplina que não são avaliadores;
4. Os professores coordenadores de disciplina que foram eleitos foram-no para coordenar o trabalho do seu grupo disciplinar, não foram eleitos para avaliar os colegas;
5. O exercício das funções de coordenador de disciplina não tem nada que ver com o exercício das funções de avaliador;
6. A capacitação para avaliar não se adquire por eleição, adquire-se por formação. Formação de média e longa duração, ministrada por instituições do ensino superior, conforme o assinalou o Conselho Científico para a Avaliação dos Professores.
7. Até hoje, esta formação foi igual a zero. Mais de 90% dos avaliadores não tem qualquer formação deste nível nem de qualquer outro minimamente credível.

Um homem que, em duas frases, diz sete asneiras merece ser estudado.
O resto da (curta) entrevista, com uma (grande) fotografia, é do mesmo nível.
Quando voltar à mercearia, vou perguntar ao sr. Joaquim se não quer pensar na hipótese de se candidatar, na próxima eleição, a presidente do Conselho de Escolas.
Se for eleito, é seguro que não fará pior figura do que o seu antecessor e, sendo eleito, segundo  o critério do actual detentor do cargo, fica logo capacitado para a função...

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Às quartas

Desmaio de doçura,
sonho, calma.
De canto inábil,
de moroso tédio.
Amo os galos bordados na toalha
E a fuligem dos ícones austeros.

Quente zunir de moscas,
Vão-se os dias
Na devoção submissa da certeza.
Sob o telhado,
a codorniz cicia,
Há um aroma festivo de framboesas.

Mas pesa à noite a penugem de gansos,
O lampião vacila, cansativo,
E na toalha,
o galo ergue o seu canto
Monótono, pescoço distendido.

Senhor, nada perturba este silente
Recanto que me deste e onde me asilas.
Espesso, feito um mel,
em gotas lentas,
Escorre da colher o fio dos dias.

Eduard Bagrítsi
(Trad.: Haroldo de Campos)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Registos e notas do fim-de-semana

Austeridade?
1 km de estrada em Braga vai custar 8 milhões; RAVE não tem ordem para parar TGV; Açores fogem a cortar 5% aos funcionários

PT e Rui Pedro Soares: em 2002, recebia 20 mil euros; em 2007 passou para 1 milhão de euros; em 2009 para 1 milhão e meio de euros

Socialistas em clima de guerra interna

Maiores hospitais do SNS têm tratamento especial no plano de cortes das empresas públicas

Viagens de Natal e fim de ano não descem apesar da crise
Sol (3/12/10)

Bancada do PS fractura-se com dividendos
Público (3/12/10)

 Sócrates travou tributação de dividendos

Médicos pedem licenças para ganhar o triplo dentro do SNS
Expresso (4/12/10)

Somos, em muitos aspectos, um país sui generis e seria estranho que naquilo que respeita à anunciada austeridade não o fossemos também. Pelo  meio da balbúrdia instalada, o mais interessante é observar que aqueles que mais reclamaram pelos apertos e, em particular, pelos cortes nos vencimentos sejam aqueles que ou não são abrangidos pelos mesmos ou, se o são, exigem ser tratados de modo especial, de modo excepcional, porque há sempre uma razão, um motivo, uma justificação que os deve isentar da regra. E o nosso forte, audaz e corajoso primeiro-ministro, torna-se, repentinamente, débil, medroso, fugidio e surpreendentemente tolerante, compreensivo e amigo das excepções.
Todavia, foi com orgulho que ouvi este mesmo primeiro-ministro dar um grandessíssimo açoite aos controladores aéreos espanhóis. Foi vê-lo indignado, talvez mesmo um tudo nada exaltado. Foi uma repremenda e pêras! É motivo de vaidade ter um primeiro-ministro assim: corajoso, audaz, forte. Com uns controladores aéreos estrangeiros. Mas não só. Recordo-me bem como este nosso primeiro-ministro foi assim forte, corajoso e audaz com os camionistas portugueses, há uns três anos. E, recentemente, com os mercados, e com a chanceler alemã Angela Merkel, e agora com  o Carlos César, presidente do Governo Regional dos Açores, e com outros que hão-de vir...

Ainda dentro deste lado sui generis que nos caracteriza, foi sem admiração que pudemos observar o que se passou, esta semana, no Parlamento, relativamente à questão de taxar a distribuição antecipada de dividendos. Depois de o nosso primeiro-ministro ter assegurado em entrevista à TVI, há cerca de um mês, que estava absolutamente seguro de que a PT não anteciparia a distribuição de dividendos e de que nem seria necessário tomar qualquer medida nesse sentido; e depois do ministro das Finanças desafiar publicamente os deputados do PS para legislarem de modo a impedir essa antecipação; depois desta enorme encenação discursiva, os deputados do Partido Socialista não só não apresentaram nenhuma proposta como fizeram reprovar a proposta de quem a apresentou. Tudo isto por ordem do mesmo primeiro-ministro que pregou os açoites aos controladores aéreos espanhóis.


Li no Expresso desta semana um artigo, assinado pelo seu director, em que,  taxativamente, se afirma: «Subordinar a economia a decisões políticas é um erro. É, aliás, comum a todas as doutrinas totalitárias de direita e de esquerda.» 
Sem ironia, teria muito interesse em saber como é que não se subordina a economia à política. Como é que se sustenta a possibilidade de existirem escolhas económicas sem estarem vinculadas a escolhas políticas. Mas, lamentavelmente, o autor não justificou o que disse. E acabou a concluir que estamos a viver um momento em que a política se deve impor à economia.
Pensamentos assim são sempre deliciosos.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Pensamentos de domingo

«Até mesmo o acaso não é impenetrável, tem as suas próprias regras.»
Friedrich Novalis

«Existem coisas em que se tem de ser especialista para as não compreender.»
Hjalmar Soderberg

«Um homem deve ter pelo menos dois vícios. Um só é demasiado.»
Bertolt Brecht
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

Dexter Gordon

sábado, 4 de dezembro de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico

O Céu em filme

«Foi a Outra Vida retratada no cinema que deu ao Céu os seus pormenores mais sumarentos. Pensemos em Fausto, o clássico alemão do cinema mudo de 1926, a preto e branco. Se bem que o filme não se centre no Céu quotidiano, a imagem de Fausto a velejar pelo espaço-tempo contínuo com o diabo a seu lado oferece um vislumbre da paisagem do Céu: raios de luz forte a espreitar por entre a neblina e edifícios gregos clássicos aparentemente abandonados antes de estarem totalmente construídos. Uma grande parte da imagística provém de artistas rabugentos como Dürer e Bruegel, por isso o Céu de Fausto parece lúgubre e misterioso como o inferno e não é um lugar feliz para passar a eternidade.
A neblina tornou-se obrigatória em filmes posteriores. Na comédia, de 1941, Here Comes Mr. Jordan, vemos o que ficou conhecido no departamento de efeitos especiais de Hollywood como o Céu de "gelo seco" — um amontoado de material fino e fumarento sobre o qual os defuntos podem caminhar.
O Céu não passa de um cenário de passeio no musical, de 1943, Cabin in the Sky, com um elenco composto exclusivamente por afro-americanos, mas vale a pena referir que eles continuam a caminhar sobre nuvens.[...]
Apenas alguns anos depois de Jordan e Cabin, surgiu um Céu surpreendentemente sofisticado no filme britânico A Matter of Life and Death. Visualmente, o seu conceito mais inteligente é que o Céu é a preto e branco, enquanto que a vida na Terra tem cores fortes. (Um habitante do Céu que vem tratar de um assunto à Terra comenta: "Lá em cima estamos sequiosos de cor.") O Céu é terrivelmente austero e profissional; actualizar os registos de quando e quem morreu exactamente mantém os escriturários ocupados o dia inteiro. O aspecto é futurista para a década de 1940 — tapetes rolantes com as pessoas que faleceram recentemente, pares de asas em prateleiras de roupa de grandes armazéns, uma máquina automática de bebidas.
O enredo de A Matter of Life and Death é estritamente de "conceito superior", mas coloca algumas questões filosóficas relevantes: O Céu será apenas uma alucinação, o resultado de lesões cerebrais que podem ser tratadas através de cirurgia? Será a disponibilidade para morrer por um ente querido o teste máximo ao amor verdadeiro? Será melhor viver a preto e branco do que a cores?
Esta última questão sugere que o Céu em si é um filme, ou pelo menos um bom cenário para um filme.
Quando o grande produtor e realizador de Hollywood, Otto Preminger, chegou ao Céu, São Pedro foi recebê-lo às Portas do Paraíso e explicou-lhe que Deus gostaria que ele realizasse mais um filme.
Preminger fez uma careta.
— Mas eu reformei-me anos antes de morrer. Estou cansado de todas as confusões que surgem quando se faz um filme.
— Escute — explicou São Pedro —, nós convencemos o Ludwig van Beethoven a compor uma banda sonora original para o filme...
— O senhor é que não me está a escutar — protestou Preminger. — Eu não quero fazer mais filmes.
— Mas temos o Leonardo da Vinci para criar os cenários — exclamou São Pedro.
— Eu não quero fazer mais filmes! — insistiu o realizador.
— Dê uma vista de olhos a este argumento — insistiu São Pedro. — Foi o William Shakespeare que o escreveu para si!
— Bem — disse Preminger —, uma banda sonora do Beethoven, cenários do Leonardo, argumento de Shakespeare... Como é que posso falhar? Eu faço-o!
— Fantástico! — exclamou São Pedro. — Só queria pedir-lhe um pequeno favor... Tenho uma namorada que canta...»
Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp.159-161.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Apontamentos sobre o desnorte de uma avaliação - 3

Ainda dentro da primeira dimensão da avaliação do desempenho — «Vertente profissional, social e ética» — encontramos três descritores para cada um dos cinco níveis de desempenho. Aparentemente, temos um total de quinze descritores, mas, na realidade, eles são vinte e seis, porque, misteriosamente, grande parte daqueles quinze resultam da concentração de descritores autónomos. Digo misteriosamente, porque, do ponto de vista teórico, um descritor deverá ser simples, objectivo e conciso, de modo a que possa ser classificado de «evidência» — termo muito querido pelos denominados cientistas da educação —, ora unir descritores é caminhar no sentido inverso, é criar ruído, e zonas de indefinição. Mas eles lá saberão...

Um dos descritores do nível de «Excelência» diz: «O docente demonstra claramente que reflecte e se envolve consistentemente na construção do conhecimento profissional e no seu uso na melhoria das práticas.»
O descritor equivalente para o nível abaixo, o «Muito Bom», diz: «O docente demonstra que reflecte e procura activamente manter actualizado o seu conhecimento profissional, que mobiliza na melhoria das práticas.»
Deste modo, a diferença entre um e outro descritor está: no «claramente», que desaparece no segundo descritor; no «envolve» do primeiro descritor que é substituído pelo «procura» no segundo; no «consistentemente» do primeiro que é substituído por «activamente» no segundo; e, ao que parece, na ideia de que um professor (o excelente) «constrói» o seu conhecimento profissional e o segundo (o muito bom) «actualiza» o seu conhecimento profissional.
Vamos lá ver. Quando se considera que alguém demonstra que sabe algo, que demonstra que conhece algo, que demonstra que reflecte sobre algo, etc. significa que o revela de modo inequívoco, de modo claro. Não é possível demonstrar de modo duvidoso, se é de forma duvidosa, já não é uma demonstração. O Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, na entrada lexical «Demonstrar» dá a seguinte informação semântica, aplicável a este contexto: «Dar a conhecer, tornando claro e evidente». O Dicionário Houaiss também não deixa equívocos quanto ao significado de «Demonstrar»: «Tornar evidente através de provas». Assim, se o demonstrar implica necessariamente clareza e evidência, exigir «demonstrar claramente que reflecte» é exigir o quê? É exigir que o professor revele claramente com clareza que reflecte?
O Ministério da Educação e os denominados cientistas da Educação, que ocupam as secretárias da 24 de Julho, quando escrevinham estas coisas deveriam atribuir a si próprios a obrigação, que dirigem aos outros, de «demonstrar claramente» o que pretendem.

A outra diferença entre o nível de «Excelente» e de «Muito Bom» parece residir na diferença entre «envolvência consistente na construção» e «procura activa na actualização». Um professor «envolve-se consistentemente em construir», o outro «procura activamente actualizar-se».
Vamos ver se aqui não acontece o que acontecia a Santo Agostinho sempre que lhe perguntavam o que era o «Tempo». Dizia ele: «Se ninguém mo perguntar o que é, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.» Passo então à fase das perguntas: o que é uma «envolvência consistente»? Rigorosamente, em que é que isso se traduz? Enquanto não se definir rigorosamente o conceito, de modo verificável, não se pode aquilatar da sua existência na realidade. Toda a gente sabe o que é uma «envolvência consistente»? Só eu é que não sei? Está bem, passo às pergunta seguintes: como se verifica/avalia a «envolvência»? Chamo a atenção de que não se trata de uma simples constatação/verificação, trata-se, na verdade, de avaliar se determinada realidade (no caso, o comportamento de «envolvência» de um professor) se configura com o que se definiu ser «envolvência». Que instrumentos existem para avaliar se há «envolvência»? Onde reside a fronteira operativa entre a «envolvência» e a «não envolvência»? Segundo que critérios se encontra essa fronteira? Através de um novo descritor que vai descrever o descritor que se pretende verificar/avaliar?
O que agora se perguntou relativamente à «envolvência» pergunta-se, nos mesmos termos, relativamente à «consistência». E pergunta-se relativamente ao que se entende por «construção» do conhecimento. Isto é, pergunta-se pela definição verificável de cada um destes conceitos, pergunta-se pelos critérios e pelos instrumentos de avaliação. Quais são, onde estão, cadê eles? Sem isto, não é possível distinguir o nível «Excelente» do nível «Muito Bom».
Para se elaborar um modelo de avaliação não chega debitar uma meia dúzia de frases giras e utilizar uma terminologia aparentemente técnica, como «descritores», «indicadores», «domínios» e por aí fora. A realidade não se encobre com palavras.
A procissão ainda vai no adro. Para a semana, manter-nos-emos ainda na primeira dimensão da avaliação do desempenho.

Finalmente, uma boa notícia

A organização do campeonato do mundo de futebol de 2018 foi atribuída à Rússia. Não foi atribuída à candidatura conjunta de Espanha e Portugal.
Finalmente, uma boa notícia!
Declaração de interesses: não sou anti-espanhol e gosto de futebol. Por conseguinte, não tenho nada contra parcerias com Espanha nem contra o desporto chamado futebol. É verdade que não entendo como é possível falar sobre futebol mais que dez minutos seguidos, como é que se pagam milhões de euros por um jogador, como é que todos os dias há notícias sobre futebol, como é que há fóruns na rádio sobre futebol, como é que há programas televisivos, que duram horas, a debater futebol; mas tudo isto, como diz um amigo meu, são outros quinhentos.
Adiante.
A não atribuição da organização do evento à candidatura de Espanha e de Portugal foi uma boa notícia, uma excelente notícia. No mínimo, por duas razões.
1. Uma delas liga-se ao «Euromilhões». A publicidade deste jogo anuncia: «Euromilhões: todas as semanas a fazer excêntricos». Compreendo agora a quem, durante estes anos, tem saído a massa. Nós somos governados, na política, no futebol e em tantas outras coisas, por excêntricos. Geograficamente, sempre fomos, mas, neste momento, somos excêntricos em quase tudo. O tal anúncio do «Euromilhões» fala de um tipo de Montalegre, a quem saiu o primeiro prémio, que decidiu comprar uma estação de televisão e ordenou que esta passasse a transmitir apenas folclore transmontano. Acontece o mesmo, em Portugal: fomos tomados por uns excêntricos que querem fazer deste país um palco de folclore de europeus e de mundiais de futebol, a que se junta o folclore das autoestradas, dos aeroportos, dos TGVs, das pontes, dos campos de golfe, etc.
Somos um país a ser invadido pela pobreza e a ser governado por aventureiros, por autênticos excêntricos, que, todavia, e ao contrário do indivíduo de Montalegre, não pagam as excentricidades que cometem, porque quem as paga somos nós.
Mas os deuses estavam connosco, entregaram o campeonato à Rússia. 
Foi uma boa notícia.

2. Contudo, mesmo que não estivéssemos a atravessar uma gravíssima crise, a notícia da não entrega do «Mundial» à candidatura conjunta de Espanha e Portugal teria sido sempre uma boa notícia, uma excelente notícia.
Afirmar que uma candidatura é «conjunta» deveria significar que ambas as partes repartiriam irmãmente os deveres e os direitos, as responsabilidades e os benefícios dessa organização. Mas, em Portugal, não se entende assim, ou, melhor, o nosso primeiro-ministro e o presidente da Federação Portuguesa de Futebol e muita gente do pontapé na bola não entenderam assim. Entenderam que candidatura «conjunta» significava que a Espanha poderia organizar dois terços do campeonato e Portugal um terço. Entenderam que uma candidatura «conjunta» de dois países significava que um desses países (por acaso, Espanha) poderia ficar com os dois momentos mais importantes de todo o campeonato: a cerimónia e o jogo de abertura e a cerimónia e o jogo de encerramento, e que o outro parceiro da candidatura conjunta (por acaso, Portugal) poderia ficar com algumas das sobras. Isto é, um país (Espanha) organizava e o outro (Portugal) dava uma ajuda. 
Aceitar uma parceria nestas condições deveria envergonhar qualquer um, quanto mais um primeiro-ministro de um país com novecentos anos de história. Deveria envergonhar quem teve a ideia, quem aceitou a ideia, quem apoiou a ideia e quem a quis concretizar. Mas a mentalidade que nos governa é esta: interessa aparecer na fotografia, não interessa em que condições e a que custo; interessa a luz dos holofotes e a presença dos microfones, não interessa a respeitabilidade da nação que se representa. 
Somos medíocres, porque pensamos medíocre, porque aceitamos ser medíocres.
Mas a organização do campeonato foi entregue à Rússia.
Foi uma boa notícia.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Para relembrar — a propósito de queixumes de alguns dos nossos deputados

Às quartas

SE AMANHÃ ACORDO

De súbito respira-se melhor e o ar da primavera
chega ao fundo. Mas foi somente um prazo
que o sofrimento concede para dizermos a palavra.
Ganhei um dia; tive o tempo
na minha boca como um vinho.
Costumo procurar-me
na cidade que passa como um barco de loucos pela noite.
Encontro um rosto apenas: homem velho e sem dentes
a quem a dinastia, o poder, a riqueza, o génio,
tudo lhe deram afinal, excepto a morte.
É um inimigo mais temível que Deus,
o sonho que posso ser se amanhã acordo
e sei que vivo.
Mas de súbito a alvorada
cai-me entre as mãos como uma laranja rubra.

Jorge Gaitán Durán
(Trad.: José Bento)