segunda-feira, 26 de julho de 2010

Partir de férias

Partimos para férias cansados e indignados por continuarmos a suportar uma política educativa que, paulatinamente, vai destruindo quase tudo em que toca. Seja no domínio dos alunos, seja no domínio dos professores, seja no domínio da gestão, seja no domínio da avaliação do desempenho, seja no domínio do Estatuto da Carreira Docente, seja no domínio dos concursos, seja em que domínio for, os governos de Sócrates acumulam, sem cessar, dislates atrás de dislates. Há cinco anos que vivemos assim. Vivemos no reino da incompetência generalizada, da afronta, do faz-de-conta, da superficialidade, do aventureirismo, da estatística, do facilitismo, do ziguezague e de uma inimaginável irresponsabilidade política.

Estamos cansados da estupidez de tudo isto. De uma estupidez que continuamente se renova, infiltra, alastra, corrói. Da estupidez que pretendia fechar escolas a partir do misticismo de um número, no caso, 21, que se supõe prenhe de significado pedagógico... Cansados da estupidez dos mega-agrupamentos, cujo o único objectivo é o de amontoar alunos, professores e funcionários. Da estupidez da avaliação sem formação. Da estupidez de avaliar a excelência de um professor através da observação de duas aulas. Da estupidez das quotas. Da estupidez de se pretender não pagar o trabalho suplementar — como é o caso de quem vai exercer a função de avaliador. Da estupidez de... e de... e de uma lista sem fim.

Também estamos cansados e fartos de quase todos os directores que, depois de terem visto os seus interesses atingidos pela criação dos mega-agrupamentos, já se indignam, já se movimentam, até já protestam. Até já são capazes de afirmar que esta medida não tem sustentação pedagógica, mas apenas economicista. Estamos cansados desta hipocrisia. Estamos cansados desta falsidade profissional de gente que, até ao momento, sempre apoiou, sem pudor, todas as barbaridades da política educativa de Sócrates, mas que agora grita «Aqui D'El Rei!».
As mudanças radicais que uma ameaça aos quintalinhos de poder pode operar...!


Finalmente, estamos cansados dos dirigentes sindicais. Da teatralidade sindical. Estamos cansados de gente que a nível do discurso opera sistematicamente as maiores e mais radicais revoluções sociais e políticas, e a nível da acção se revela tão cândida e tão inofensiva como aparenta ser o Cordeiro Pascal.

Estamos cansados de tudo isto. Só não estamos cansados de ser professores. É, aliás, o prazer de ser professor e a consciência dos deveres dessa função que geram a capacidade de sobreviver a tanta estultícia, a tanta grosseria, a tanta idiotice. Apesar dos Governos que temos, apesar das ministras que temos, apesar dos sindicatos que temos, conseguimos sobreviver e desempenhar conscienciosamente as nossas funções e cumprir os nossos deveres.

Mas, agora, vamos partir para férias. Vamos descansar. Vamos retemperar.

Por isso, para todos os que as merecem,
aqui ficam lavrados os votos de excelentes férias.
E também fica marcado o nosso reencontro, para Setembro.
Um abraço, e até lá.

A propósito de contradições — A opinião de Paulo Ambrósio

O BE-Açores apresentou há 2 meses o Projecto de Decreto Legislativo Regional nº 9/2010 que previa vinculação excepcional ao fim de três anos de serviço. Pouco tempo antes, o mesmo partido, no continente, "recomendava" ao Governo PS dez anos serviço como "fasquia" para a vinculação excepcional (http://www.sprc.pt/upload/File/PDF/Novidades/BE_pjl199.pdf ). Esta dualidade bloquista é criticável e indefensável, pois, em última análise, potenciaria a desigualdade entre docentes e na prática, para os continentais, agravaria em 7 anos a duração máxima de contratos já prevista - mas nunca implementada - no articulado do nosso reaccionário Código do Trabalho ( http://dre.pt/pdf1sdip/2009/02/03000/0092601029.pdf ).

Por isso, os participantes deste encontro em S. Bento - alegadamente Um grupo de professores contratados, que tem estado na linha da frente na luta pela vinculação (!!!) - perderam uma ocasião de ouro para, também lá, tentarem confrontar os deputados do BE com a realidade da sua proposta de vinculação docente na Região Autónoma dos Açores e seus pressupostos, inquirindo-os acerca do porquê desta insistência do BE na desigualdade de tratamento, entre cidadãos continentais e açorianos, neste caso docentes contratados, em matéria de vinculação.

Este último episódio na novela de incoerência parlamentar bloquista ainda mais reforça a nossa convicção de que não há outra chave para a saída do interminável e torturante carrossel da precariedade - que há demasiadas décadas mói e destrói vidas e gerações de professores contratados - que não seja o retomarmos a luta, unidos em torno da nossa histórica e agregadora reivindicação central: a VINCULAÇÃO DINÂMICA PARA TODOS, SEGUNDO A LEI GERAL DO TRABALHO, aliás, aspiração que conseguimos, ao longo dos anos, inscrever nas próprias resoluções dos Congressos da FENPROF e consagrar como posição de princípio dos seus sindicatos membros. É, portanto, minha inabalável convicção que é neste desafio que todos nos devemos concentrar prioritariamente, também ao nível da nossa acção sindical futura. Longe de quaisquer manobras palacianas, já anteriormente ensaiadas e copiosamente conducentes ao fracasso, ao desânimo e à desmobilização.
Paulo Ambrósio

sábado, 24 de julho de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico


A propósito de sistemas de imortalidade - 2

«Infelizmente, os sistemas de imortalidade levam-nos a comportar-nos mal. Quando nos identificamos com um sistema de imortalidade e lhe conferimos o significado pessoal supremo, deparamos com o desagradável problema de termos de enfrentar outras pessoas com sistemas diferentes. É frequente assistirmos a isto no choque das religiões do mundo, situação que apresenta um problema importante: uma vez que é impossível que os nossos sistemas de imortalidade estejam todos certos, os dos outros só podem estar errados.
Contudo, a civilização também nos concedeu um remédio para o problema: Matem os filhos da mãe! [...]
Um dia, estava a atravessar uma ponte e vi um homem no rebordo, prestes a saltar. Ao ver aquilo, corri e disse:
— Pare! Não faça isso!
— Por que não? — replicou ele.
— Bem, há imensas coisas pelas quais vale a pena viver!
— Como por exemplo?
— Bem... é religiosos?
Ele disse que sim.
— Eu também — continuei eu. — Está a ver? Já temos imensas coisas em comum, por isso vamos conversar. É cristão ou budista?
— Cristão.
— Eu também. É católico ou protestante?
— Protestante.
— Eu também! É episcopaliano ou baptista?
— Baptista.
— Uau! Eu também! É da Igreja Baptista de Deus ou da Igreja Baptista do Senhor?
— Baptista de Deus.
— Eu também! É da Igreja Baptista de Deus original ou da Igreja Baptista de Deus Reformada?
— Igreja Baptista de Deus Reformada!
— Eu também! É da Igreja Baptista de Deus Reformada na reforma de 1879 ou da Igreja Baptista de Deus Reformada na reforma de 1915?
— Igreja Baptista de Deus Reformada, reforma de 1915! respondeu o homem.
— Morre, maldito herege — disse eu, e empurrei-o.»
Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp. 28-31.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Fragmenti veneris diei

«Há coisa mais estranhas que a sacrofobia, disse Elvira Campos, sobretudo se tivermos em conta que estamos no México e que aqui a religião foi sempre um problema, de facto, eu diria que todos nós mexicanos sofremos, no fundo, de sacrofobia. Pensa, por exemplo, num medo clássico, gefirofobia. É uma coisa que muitas pessoas têm. O que é a gefirofobia?, perguntou Juan de Dios Martinez. É o medo de atravessar pontes. É verdade, eu conheci um tipo, bom, na realidade era uma criança, que sempre que atravessava uma ponte tinha medo que esta caísse, por isso atravessava-as a correr, o que se tornava muito mais perigoso. É um clássico, disse Elvira Campos. Outro clássico: a claustrofobia. Medo dos espaços abertos fechados. E mais outro: a agorafobia. Medo dos espaços abertos. Esses eu conheço, afirmou Juan de Dios Martinez. Mais outro clássico: a necrofobia. Medo dos mortos, disse Juan de Dios Martinez, conheci gente assim. Se se trabalha como polícia é uma complicação. Também existe a hematofobia, medo do sangue. Bem verdade, disse Juan de Dios Martinez. E a pecatofobia, medo de cometer pecados. Mas depois há outros medos que são mais estranhos. Por exemplo, a clinofobia. Sabe o que é? Não faço ideia, disse Juan de Dios Martinez. Medo das camas. Pode alguém ter medo ou aversão a uma cama? Pois sim, há pessoas que sim. Mas isso pode ser atenuado dormindo no chão e nunca entrando num quarto. E depois existe também a tricofobia, que é medo do cabelo. Um pouco mais complicado, não é verdade? Complicadíssimo. Há casos de tricofobia que acabam em suicídio. E também existe a verbofobia que é o medo das palavras. Nesse caso o melhor é ficar calado, comentou Juan de Dios Martinez. É um pouco mais complicado do que isso, porque as palavras estão em toda a parte, inclusivamente no silêncio, que nunca é silêncio total, não é verdade?»
Roberto Bolaño, 2666, p. 441.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Às quartas

Há seres que são mais imagem que matéria
mais olhar do que corpo

tão imateriais os amamos
que quase não queremos tocá-los com palavras

desde a infância os buscamos
mais no sonho que na carne

e sempre no limiar dos lábios
a luz da manhã parece dizê-los

Homero Aridjis
(Trad.: José Bento)

A propósito dos exames que permitiriam saltar do 8.º para o 10.º ano — A opinião de Marrod

Dos 149 alunos, a frequentar o 8º ano, inscritos, a nível nacional, para "dar o salto" para o 10º ano, através de um Exame de Equivalência à Frequência do 9º Ano, nenhum conseguiu dar o referido salto.
Esta ocorrência é um bom exemplo do que são medidas de espavento do ME. Esta medida avulsa mostra a falta de uma reflexão séria sobre o perfil dos alunos que se podiam inscrever, a ausência de uma auscultação sobre o número de alunos que poderiam ser envolvidos para não dar aso a despesismo e uma enorme falta de respeito pelos alunos e pelas famílias.

Falta de reflexão porque estes alunos para terem a idade exigida, tinham necessariamente que ter repetido anos no Ensino Básico, ou seja, esta medida foi aplicada a alunos com um fraco aproveitamento.
Como é que alunos com este perfil se podiam aventurar a realizar 14 exames (por vezes, dois por dia) com conteúdos de 3 anos do 3º ciclo, com sucesso, a todas as disciplinas, se nem os do próprio ano (8º ano) que tinham acabado de frequentar tinham conseguido?

Falta de respeito pelos alunos e famílias porque se constituiu como uma medida psicologicamente bárbara. Convenceram-se os alunos e as famílias que esta situação era concretizável, com sucesso, com apenas algumas horas de estudo. Nada mais falso. Assisti a uma revolta incontrolável e a uma enorme frustração por parte de alguns destes alunos excluídos pelas, "16 horas gastas a estudar matemática para nada". E ninguém foi capaz de explicar que 16 horas a estudar matemática não são suficientes para colmatar deficiências de anos lectivos anteriores e, ao mesmo tempo, estudar e exercitar conteúdos de um ano inteiro de matemática, que correspondia a um ano que os alunos nunca tinham frequentado (o 9º ano).
Os alunos convenceram-se e foram dia após dia. E elaboraram provas de tudo. E os resultados saíram, mostrando o que todos nós já sabíamos.

Medida despesista porque envolveu, por cada exame realizado, durante cerca de 7 dias, no mínimo 10 pessoas ( 2 professores vigilantes, 2 professores suplentes, 1 professor coadjuvante, 2 professores para a elaboração da matriz, elaboração da prova e a respectiva correcção, 2 professores do Secretariado de Exames e 1 PND de serviço à sala de exame). Se atentarmos à relação preço/resultado, estamos perante uma medida de folclore, muito cara, sem contrapartidas, que se torna ainda mais gravosa pelo período de contenção orçamental que se deveria estar a viver.
Marrod

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Registos do fim-de-semana

Professor de Sócrates põe Arquitectura em pé-de-guerra
— António José Morais, o professor de quatro cadeiras de Sócrates na Universidade Independente, foi admitido no quadro da Faculdade de Arquitectura, depois de, três anos antes, ter sido 'chumbado' por falta de currículo —

Portagens novamente adiadas

Jardim volta à carga contra Lisboa
Sol (16/7/10)

Na Educação "nada de novo", critica a Fenprof
— «Se tivéssemos de dar [...] uma menção, daríamos claramente um 'não satizfaz'» (Mário Nogueira)
Público (16/7/10)

A Justiça não valeu nem um minuto no debate do ano

Adesão em espanhol à CPLP
Expresso (17/7/10)

Remodelação ganha fôlego entre socialistas

Deputado socialista avança com candidatura a Belém para evitar vitória de Cavaco Silva

Personalidades dos oito países da CPLP questionam entrada da Guiné Equatorial

Nenhum aluno conseguiu dar o salto do oitavo para o 10.º ano
Público (17/7/10)

Aquele que foi o principal professor de Sócrates no rocambulesco processo de obtenção da conhecida licenciatura do nosso primeiro-ministro continua a andar nas bocas do mundo, e sempre pelas piores razões...
O segundo adiamento da entrada em vigor das portagens nas SCUT espelha bem a qualidade dos políticos que temos.
O enamoramento de Alberto Jardim com Sócrates parece ter chegado ao fim — não são apenas as SCUT que revelam a ordinária qualidade dos dirigentes
políticos que temos. Ainda que, naquele caso, se mereçam um ao outro.
Nogueira diz que dá um «não satisfaz» a Isabel Alçada. Depois de em Janeiro ter assinado um acordo com aquela ministra, seis meses depois, reprova-a. Já muito pouca gente leva a sério este dirigente sindical. Até quando é que ele vai estar a dirigir a Fenprof?
Portugal é um país medíocre em vários domínios, a Justiça é um desses domínios. Provavelmente, será mesmo a área em que a degradação a que se chegou é mais insuportável. Todavia, no debate sobre o estado da Nação, Governo e Oposição nem um minuto consumiram na análise dos seus graves problemas.
Entretanto, a provável vergonhosa aceitação do pedido de adesão, escrito em castelhano, da Guiné Equatorial à CPLP está a provocar o protesto de múltiplas personalidades. O que já não era sem tempo.
Já se fala em remodelação governamental, ao fim de seis meses de mandato. Mas para quê, se o primeiro responsável político do Governo não for também remodelado?

domingo, 18 de julho de 2010

Pensamentos de domingo

«Evitar os impostos é a única actividade que actualmente contém alguma recompensa.»
John Keynes

«No imposto profissional o justo paga mais e o injusto menos, sobre o mesmo rendimento.»
Platão

«Os solteiros ricos deviam pagar o dobro de impostos. Não é justo que alguns homens sejam mais felizes do que outros.»
Oscar Wilde
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

Anouar Brahem

sábado, 17 de julho de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico


A propósito de sistemas de imortalidade

«A via de ganhar dinheiro oferece mais uma forma popular para simular a imortalidade: fazer uma doação a uma instituição imortal, com sorte uma que que exalte o nome do benemérito na fachada de um edifício, ou esquecer o intermediário e construir um monumento para si próprio.
Porém, antes de presumires que o teu voto de pobreza (ou pelo menos de um salário médio) te livrará, pensa melhor, diz Becker. Provavelmente, continuarás à procura de um objectivo material que te leve a acreditar que andas cá para todo o sempre. Digamos que te esforças por "estar na moda", "ser santo" ou "definir tendências" — é a mesma coisa. Continuas a ter a Grande Ilusão de que estás a ser mais esperto do que o Anjo da Morte, ao adoptar um papel que transcende a tua individualidade insignificante e assustada e te torna "maior que a vida"... e a morte.
Segundo Becker, defendemos estas diferentes ilusões simplesmente porque somos civilizados. Praticamente todas as civilizações desenvolveram um sistema partilhado de imortalidade. Na verdade, esses sistemas são a função básica de uma cultura. Sem eles, ficaríamos doidos com a angústia existencial da morte e a nossa civilização não continuaria a desenvolver-se. Voltaríamos à lei da selva. A negação da morte é a estratégia de sobrevivência da civilização!
É mais fácil manter uma ilusão se a partilharmos com outros na nossa cultura, ou, melhor ainda, dentro da nossa própria casa. Repara na ilusão partilhada por Clara e o marido.
Clara foi a um psiquiatra e disse:
— Doutor, tem de fazer alguma coisa em relação ao meu marido... ele pensa que é um frigorífico!
— Se fosse a si, não me preocupava muito — replicou o médico — Muitas pessoas têm ilusões inofensivas. Vai passar.
— O doutor não está a perceber — insistiu Clara. — Ele dorme com a boca aberta e a luzinha não me deixa dormir.»
Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp.26-28.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Fragmenti veneris diei

«Em Junho morreu Emilia Mena Mena. O seu corpo foi encontrado na lixeira clandestina próxima da Rua Yucatecos, para os lados da fábrica de tijolos Hermanos Corinto. No relatório forense é dito que ela foi violada, esfaqueada e queimada, sem especificar se foram as facadas ou as queimaduras a causa da morte, e também sem especificar se no momento das queimaduras Emilia Mena Mena já estava morta. Na lixeira onde foi encontrada ocorriam constantes incêndios, a maior parte deles voluntários, outros fortuitos, por isso não se podia descartar que as calcinações do corpo fossem devidas a um fogo desse género e não à vontade do homicida. A lixeira não tem nome oficial, porque é clandestina, mas tem, isso sim, um nome popular: chama-se El Chile. Durante o dia não se vê vivalma em El Chile nem nos baldios circundantes que a lixeira não tardará a engolir. De noite aparecem os que nada ou menos de nada têm. Na Cidade do México chamam-lhes teporochos, mas um teporocho é um menino rico bon vivant, um cínico reflexivo e humorista, comparado com os seres humanos que pululam, solitários ou aos pares, por El Chile. Não são muitos. Falam um jargão difícil de perceber. A polícia fez uma rusga na noite seguinte à descoberta do cadáver de Emilia Mena Mena e só conseguiu prender três crianças que andavam no lixo a remexer nos cartões. Os habitantes nocturnos de El Chile são muito poucos. A sua esperança de vida, curta. Morrem, no máximo, sete meses depois de terem começado a andar na lixeira. Os seus hábitos alimentares e a sua vida sexual são um mistério. É provável que se tenham esquecido de comer e de foder. Ou que a comida e o sexo já sejam para eles outra coisa, inalcançável, inexprimível, algo que fica fora da acção e da verbalização. Todos, sem excepção, estão doentes. Tirar a roupa a um cadáver de El Chile equivale a esfolá-lo. A população permanece estável: nunca são menos de três, nunca são mais de vinte.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 430-431.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O folclore avaliativo vai recomeçar

Neste momento, as escolas estão a designar os professores relatores (os professores que vão exercer a função de avaliadores dos colegas), para dar cumprimento à nova legislação sobre a avaliação do desempenho docente — a legislação que recebeu o acordo formal por parte de vários sindicatos, onde se incluem a FENPROF e a FNE.
Milagrosamente, a reivindicação de uma formação prévia para todos os professores avaliadores desapareceu. Aquilo que era mais do que uma reivindicação, pois tratava-se de uma exigência deontológica, evaporou-se, sumiu. Aquilo que era um verdadeiro imperativo ético, deixou de o ser. Aquilo que até há bem pouco tempo era óbvio já não é. Aquilo que até há bem pouco tempo era considerado inaceitável — permitir que professores sem qualificação para serem avaliadores exercessem essa função — passou a ser pacificamente aceite.
Afinal, parece que Lurdes Rodrigues tinha razão. Dizia ela que os professores naturalmente saberiam avaliar os seus colegas, porque todos os dias avaliavam alunos. Esta afirmação, que além de ser falsa é estúpida, foi, na altura, justamente contestada e foi justamente considerada um vergonhoso dislate. O próprio Conselho Científico para a Avaliação de Professores, órgão criado por aquela ex-ministra, recomendou explicitamente que os professores avaliadores deveriam ter uma formação prévia de média ou longa duração, ministrada por instituições do ensino superior.
Para todos, esta era uma condição sine qua non, era uma condição necessária para que houvesse a possibilidade de ser atribuída alguma credibilidade ao processo da avaliação do desempenho docente. Mas a FENPROF e a FNE, para além de terem validado a vergonhosa e escandalosa avaliação que foi feita no ano lectivo anterior, aceitaram que a condição fundamental e inegociável fosse atirada às malvas e, deste modo, também validaram o folclore avaliativo que durante o próximo ano lectivo vai ocorrer.
Se, até aqui, o folclore avaliativo tinha, pelo menos teoricamente, a oposição dos sindicatos, neste momento, o folclore avaliativo passou a ter o apoio e a assinatura de Mário Nogueira e de João Dias da Silva, representantes daquelas duas federações de sindicatos de professores. Isabel Alçada sorri, e com razão.
Por outro lado, Isabel Alçada sorri, ao mesmo tempo que mente. Mente porque diz, no decreto regulamentar que assinou, que a avaliação do desempenho visa, entre outras coisas, reconhecer o mérito e promover a excelência, mas não o fará. Não o fará porque, em primeiro lugar, a avaliação não vai ser credível — sem formação dos avaliadores não há credibilidade — e porque, ao contrário do que afirma, em muitas situações, não vai reconhecer o mérito nem promover a excelência. Em muitas situações, vai, de facto, penalizar e castigar o mérito e a excelência. Aqueles professores que forem classificados de excelentes (e supondo que o são...), mas que ultrapassem as quotas determinadas, não verão o seu mérito reconhecido nem a sua excelência promovida, pelo contrário, serão penalizados, serão castigados com uma classificação inferior. É um modo sui generis de premiar os melhores. Um professor que obtém a classificação máxima e que depois vê a sua classificação descer para um nível abaixo sentirá que foi premiado ou penalizado? Sentirá que o seu mérito foi reconhecido e a sua excelência recompensada?
Recordo que as quotas também eram, até há bem pouco tempo, algo de absoluta e irreversivelmente inaceitável, por parte da FENPROF e da FNE...
Mas Isabel Alçada continua a sorrir quando se lembra que estas duas federações sindicais subscreveram um acordo que permite que um professor avaliador tenha apenas um tempo lectivo de redução por cada três professores que tem de acompanhar e avaliar, durante dois anos (ficamos agora a saber que até esse tempo lectivo de redução, afinal, nem é para todos, é só para os professores mais novos...).
Para além daqueles que assinaram o Acordo de Princípios, há mais alguém neste País, na Europa ou no Mundo que considere e sustente ser possível exercer com seriedade a função de acompanhar e avaliar três professores, consumindo apenas uma hora por semana?

É este folclore avaliativo que, neste momento, está a ser preparado em todas as escolas.

Às quartas

Sei, a Pureza

Sei, a pureza não dá fruto,
Virgens a filhos não dão vida,
É a grande lei da sujidade
Para existir, paga devida.

Da borboleta azul — lagarta,
Da flor, em volta cresce o fruto,
A neve sem tocar é branca,
O quente chão é impuro e bruto

Imaculado o éter dorme,
Micróbios trazem vida ao ar,
Bem podes não nascer, se queres,
Porém se és, vais a enterrar.

Feliz é a voz do pensamento,
Dita — o ouvido a difama
P'ra qual dos pratos me inclino —
O sonho mudo ou a fama?

Entre o silêncio e o pecado,
Manada ou lótus — que escolher?
Ai, drama de morrer em branco
Ou mesmo assim morte vencer...

Ana Blandiana
(Trad.: Doina Zugravescu)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Registos do fim-de-semana

Presidente do PE 'puxa orelhas' a Sócrates

Governo recua nas SCUT

Velha guarda do PS cerca Sócrates

Sócrates igual ao pior de Guterres
Sol (9/7/10)

Português com notas abaixo da Matemática nos exames nacionais

Meio milhão de euros terá sido pago em luvas no Freeport

Casa ilegal da mulher do secretário de Estado da Justiça [José Magalhães] demolida ontem na Arrábida
Público (9/7/10)

Sócrates tentou acordo com Portas em casa de Basílio

Socialistas criticam António Mendonça

Mais €1061 euros em impostos até 2013

Assis perfila-se para sucessão do PS

Sócrates perdeu todos os processos contra jornalistas
Expresso (10/7/10)

CPLP prepara-se para aceitar a entrada de uma ditadura onde não se fala Português
— Guiné Equatorial tem um longo historial de violações dos direitos humanos mas é dos maiores produtores de petróleo de África. Adesão prevista para dia 23, em Luanda —

Bons alunos foram penalizados no exame de Português
Público (10/7/10)

Sócrates é repreendido por Bruxelas, volta atrás nas SCUT, ouve críticas dos históricos do PS, iguala Guterres em improdutividade governativa, no período imediatamente anterior à sua fuga, e, até hoje, ainda não venceu nenhum dos processos, dos muitos processos, com que tentou atemorizar vários jornalistas.
Mas a vida não corre mal apenas a Sócrates, decorridos 8 anos após uma ordem judicial transitada em julgado, a casa ilegal da mulher de José Magalhães, na Arrábida, foi, finalmente, demolida. Naturalmente que é uma mera coincidência a casa ser de quem é e a sentença ter demorado quase uma década a ser executada. Mas foi executada. Magalhães e Sócrates podem chorar no ombro um do outro.
A Guiné Equatorial, que tem como primeira língua oficial o castelhano e como segunda língua oficial o francês, parece que vai aderir à CPLP, sigla que, por acidente, significa Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Mas ser ou não de língua portuguesa interessa pouco, ser ou não ser uma ditadura ainda menos importa, o que interessa mesmo é o muito petróleo da Guiné Equatorial e que, para tentar fazer esquecer tudo isto, haja a promessa de tornar a nossa língua a terceira oficial daquele país. Tudo pormenores que não fazem Sócrates pestanejar, homem de férreos e inabaláveis princípios.
Mas o Português não é maltratado apenas na CPLP também foi e é maltratado nas provas de exame nacional do 12.º ano. Desta vez, não só foi escolhida como obra Os Lusíadas, obra marginal do programa e da leccionação da disciplina,, naquele ano de escolaridade, como de Os Lusíadas foi seleccionado o tema do «Regresso» dos portugueses, quando o programa está centrado na «Partida» e na Expansão. Mas tudo isto são, certamente, irrelevantes minudências que não ferem minimamente a credibilidade dos responsáveis pelos exames nacionais.
Aliás, neste país, nada fere minimamente a credibilidade seja de que responsável for.

domingo, 11 de julho de 2010

Pensamentos de domingo

«O tédio nasceu um dia da uniformidade.»
Antoine Motte

«O acaso é uma palavra inventada pela ignorância.»
François-Joachim-Pierre de Bernis

«Nem sempre sou da minha opinião.»
Paul Valéry
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

Miguel Zenón Quartet

sábado, 10 de julho de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico


Que fazer em relação à morte?
«O motivo porque desejamos negar a nossa mortalidade é bastante óbvio: a perspectiva da morte é aterradora: provoca a angústia existencial suprema. Ficamos perturbados ao encarar o facto de só cá andarmos durante um curto período de tempo e de, quando desaparecermos, ser para toda a eternidade. Como podemos aproveitar a vida se o tiquetaque do relógio soa tão alto nos nossos ouvidos?
Segundo Becker, a única forma que a grande maioria de nós tem para lidar com esta situação é a ilusão — na verdade, a Grande Ilusão. A G.I. é o instinto humano básico — muito mais básico que o instinto sexual, diz ele — e dá origem a «sistemas de imortalidade», estruturas de crença não racionais que nos proporcionam uma forma de acreditar que somos imortais. Há a estratégia sempre popular de nos identificarmos com uma tribo, raça ou nação que continua a viver no futuro indefinido, da qual fazemos parte de alguma forma. Depois, temos o sistema da imortalidade através da arte, no qual o artista imagina a sua obra a perdurar para todo o sempre e, consequentemente, prevê a sua própria imortalidade no panteão dos Grandes Artistas ou, no mínimo dos mínimos, na assinatura no fundo de uma paisagem ao pôr-do-sol pendurada no canto do sótão da casa dos netos.
Depois , temos os sofisticados sistemas de mortalidade enraizados nas religiões do mundo, que vão desde continuar a viver como parte da energia cósmica, no Oriente, até partir para ficar com Jesus, no Ocidente. A um nível menos místico, temos o sistema de imortalidade através da riqueza. Este proporciona-nos um objectivo de vida fantástico para acordar todas as manhãs: arranjar mais dinheiro. Dessa forma, não teremos de pensar no objectivo final.
A riqueza também nos admite numa tribo que continuará a viver: o clube exclusivo das pessoas influentes. Existe até um bónus — podemos transmitir um pedaço de nós, o nosso dinheiro à geração seguinte.
Mas caveat emptor! (Ou, se não forem da Roma Antiga, "O comprador que se acautele!")
Quando descobriu que ia herdar uma fortuna depois de o pai doente falecer, Bob decidiu que precisava de uma mulher para o ajudar a aproveitar o dinheiro. Por isso, uma noite foi a um bar de solteiros, onde avistou a mulher mais bela que tinha visto em toda a sua vida. A sua beleza natural arrebatou-o.
— Posso parecer um homem banal — disse ele, ao aproximar-se dela —, mas dentro de uma ou duas semanas o meu pai vai morrer e eu herdarei 20 milhões de dólares.
Impressionada, a mulher foi com ele para casa nessa mesma noite. Três dias depois, tornou-se sua madrasta.»
Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp.24-26.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Fragmenti veneris diei

«O ataque às igrejas de San Rafael e de San Tadeo teve mais eco na imprensa local do que as mulheres assassinadas nos meses anteriores. No dia seguinte, Juan de Dios Martínez, juntamente com dois polícias, percorreu o bairro Kino e o bairro La Preciada, mostrando às pessoas o retrato robôt do agressor. Ninguém o reconheceu. À hora do almoço os polícias foram ao centro e Juan de Dios Martínez ligou à directora do manicómio. A directora não tinha lido os jornais e nada sabia do que havia acontecido na noite anterior. Juan de Dios convidou-a para almoçar. A directora, contra o que ele estava à espera, aceitou o convite e marcaram o encontro num restaurante vegetariano na Rua Río Usumacinta, no bairro Podestá. Ele não conhecia o restaurante e quando chegou pediu uma mesa para dois e um whisky enquanto a esperava, mas ali não serviam bebidas alcoólicas. O empregado de mesa que o atendeu tinha uma camisa axadrezada e sandálias, e olhou-o como se ele estivesse doente ou se tivesse enganado de restaurante. O sítio pareceu-lhe agradável. As pessoas que ocupavam as outras mesas falavam em voz baixa e ouvia-se uma música como se fosse de água, o barulho da água a deslizar por umas lajes. A directora viu-o logo que entrou, mas não o cumprimentou e pôs-se a falar com o empregado que estava do outro lado do balcão a preparar uns sumos naturais. Após trocar uma palavras com ele, aproximou-se da mesa. Estava vestida com umas calças cinzentas e uma camisola de lã decotada cor de pérola. Juan de Dios Martínez levantou-se quando ela chegou junto dele e agradeceu-lhe ter aceitado o seu convite. A directora sorriu: tinha dentes pequenos e regulares, muito brancos e afiados, o que dava ao sorriso um ar carnívoro que destoava da especialidade do restaurante.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 423-424.

Reclamar contra quem?


POSIÇÃO DA APEDE


«A FENPROF veio defender que os professores ultrapassados no concurso, por via da contabilização dos resultados da ADD nas listas graduadas, devem reclamar dessa situação e colocou mesmo, on-line, uma minuta específica para o efeito. O prazo da reclamação parece já ter terminado, embora, na nossa opinião, talvez nem tanto…
Perante tal indicação da FENPROF, há uma pergunta pertinente a colocar: os professores, agora ultrapassados nas listas graduadas, devem reclamar exactamente contra quem?
- Contra José Sócrates? Se sim, por que motivos? Por ter imposto aos negociadores (dos 2 lados da mesa) a aplicação da legislação em vigor sobre concursos (embora iníqua, geradora de injustiças e profundamente perversa) que apenas se conseguiu protelar e nunca revogar?
- Contra os responsáveis do ME que se limitaram a ir sorrindo e adiando, perante o beneplácito e anomia total dos representantes sindicais no que a este assunto diz respeito? Porquê só agora e com base em que compromissos factualmente assumidos e não cumpridos?
- Contra aqueles professores que, aproveitando as quotas deixadas livres pelos que decidiram não pactuar com o modelo de avaliação, exploraram as hipóteses abertas pela legislação de concursos, cuja revogação ficou por conseguir? Será que estes colegas violaram a lei? Muitos deles terão agido de forma oportunista, é um facto, mas não sabíamos todos que isso poderia acontecer?
- Ou… contra aqueles que defraudaram as expectativas de milhares e milhares de professores, rematando a noite da “capitulação” com um lamentável número de “ilusionismo” afirmando, publicamente, que tinha ficado garantido que a avaliação não iria contar nos concursos e que esse era, precisamente, um dos ganhos do “Acordo”? Essa afirmação irresponsável (e sem qualquer suporte nas actas negociais, pré 8 de Janeiro) teve, para além do mais, uma consequência grave: a necessária e imediata contestação foi totalmente esvaziada pois os professores só perceberam que afinal nada estava garantido após a abertura do aviso de concurso. Meses desperdiçados, facto consumado, milhares de professores prejudicados.
Perante isto, contra quem deverão então reclamar os professores?
Mas há mais. E mais grave: ao terem apelado fortemente, num momento chave da luta, à recusa da entrega de OI, os dirigentes sindicais sabiam perfeitamente que, com isso, estavam a retirar a todos aqueles que adoptassem essa forma de luta, a possibilidade de solicitarem aulas assistidas tendo em vista a obtenção das classificações ditas de “mérito”. Todos se recordarão dos lamentos sindicais perante o relativo fracasso dessa forma de luta e das acusações implícitas de falta de firmeza e solidariedade na luta aos que correram a entregar OI. Sendo assim, como será possível aceitarmos, sem indignação e repúdio, que os mesmos dirigentes sindicais que apelaram à não entrega de OI, venham a abandonar todos esses colegas, que resistiram e lutaram, permitindo que lhes puxassem o tapete, de forma perversa e vingativa, não tendo mais para lhes oferecer, neste momento, do que uma mera minuta de reclamação? Como se sentirão esses colegas? Traídos na luta? Já o afirmaram, alto e bom som, muitos deles. Como podem esses mesmos dirigentes sindicais continuar a ignorar as suas falhas e graves erros na condução da luta, “assobiando para o lado” e, sem qualquer pudor, terem ainda sido capazes de afirmar que as actas negociais demonstravam o seu enorme empenho na defesa dos interesses da classe? Não ficou ali absoluta e inequivocamente demonstrado que não conseguiram garantir rigorosamente nada quanto a esta questão, nem sequer um novo adiamento da aplicação da norma legal, que confere a bonificação às classificações ditas de “mérito”, até que os professores pudessem voltar a reagir? Aberto o precedente… será muito mais complicado reverter todo este imbróglio.
Da nossa parte, não podemos deixar de considerar que esta é uma das páginas mais negras da história do sindicalismo docente, pelas gravíssimas consequências que irá ter para a vida de milhares de professores, com danos irreversíveis nas suas carreiras. A nossa solidariedade vai inteira e activa para todos aqueles que acreditaram, confiaram, lutaram, e agora são abandonados à sua sorte, ultrapassados nas listas graduadas, acabando muito naturalmente por chegar à triste conclusão que talvez tivessem feito melhor entregando OI e solicitando avaliação completa. E não colhe argumentar-se que num processo de luta há ganhos e perdas, que nada pode ficar garantido à partida, e que todos estavam conscientes dos riscos das opções que tomaram, porque o que está aqui verdadeiramente em causa é uma falha gravíssima dos “generais” que pouco ou nada fizeram para defender os “soldados” e não souberam, minimamente, controlar as perdas e danos neste “combate” particular. Aquilo que deveria ter sido feito, na nossa opinião, era eleger esta questão como um pré-requisito fundamental, inegociável e inadiável, a salvaguardar, preto no branco, antes do arranque de qualquer tipo de negociações com vista a um eventual “Acordo” com o ME. Foi exactamente isso que a APEDE sempre defendeu, desde o início, publicamente, e diversas vezes na presença dos dirigentes da FENPROF e FNE.
Voltando às reclamações, avancemos agora para um outro ângulo da questão: parece pois, caros dirigentes da FENPROF, que a solução que encontraram para camuflar a vossa incompetência, e total falta de respeito por quem lutou (correspondendo ao vosso apelo de recusa de OI), é a entrega de uma minuta de reclamação, correcto? Colocar colegas contra colegas, em litigâncias judiciais, por mais oportunistas que os donos dos “asteriscos” possam ter sido? É isso?
Não nos espanta o dislate! Sabemos muito bem que esse é um dos recursos da velha cartilha sindical, não mais do que uma tentativa de “atirar areia para os olhos” (com expectativas de eficácia que nos escusamos sequer a comentar, embora aguardemos com muito interesse os respectivos resultados) e um estratagema que já foi, bem recordamos, vergonhosamente usado no passado, nomeadamente, contra os licenciados dos ramos integrados, com estágio pedagógico, que foram também alvo de acções judiciais de reclamação, como muitos se recordarão ainda. Um “circo” absolutamente desprezível e lamentável, agora de novo ensaiado, que não pode passar sem a nossa manifestação de profundo repúdio. Porque isto tem de ser dito, e tem de ser dito sem tibiezas: quem verdadeiramente errou, quem verdadeiramente defraudou expectativas legítimas de luta e mobilização, perante tantos milhares que foram à luta e a assumiram até ao fim, foram aqueles que permitiram que fosse concluído o 1º ciclo avaliativo com a atribuição de classificações e que, não satisfeitos, vieram a assinar, em Janeiro, um “Acordo de Princípios” que não limpava de todo essa “nódoa”, nem impediu as nefastas consequências que agora se apresentam em sede de concursos.
Desde sempre, nos movimentos independentes, alertámos para esta questão e para os potenciais riscos que dela decorriam, pois sabíamos muitíssimo bem que poderia vir a acontecer, exactamente, aquilo com que agora nos confrontamos. Mas, infelizmente, os “donos” da luta não quiseram dar-nos ouvidos. Acusavam-nos de propormos formas de luta irresponsáveis (greve rotativa de uma semana, em Abril/Maio do ano passado) que podiam conduzir os professores para becos sem saída. Pelos vistos, e como este lamentável e gravíssimo problema bem demonstra, os “experts” da luta, os experimentados e sagazes negociadores sindicais, com a tarimba de décadas de luta, foram por outros caminhos, certamente mais seguros e com saídas largas para os professores. Preferiram confiar no destino, talvez na sorte ou, quiçá, em eventuais promessas de bastidores feitas por uma dupla de “fantoches”, sem qualquer poder decisório autónomo, integrantes de um governo sem escrúpulos e sem palavra. Preferiram, em sede negocial, passar o tempo, em reuniões a fio, a discutir índices remuneratórios e regimes de transição (garantindo quase tudo para uns e quase nada, ou menos que nada, para outros), em vez de defenderem e garantirem a justiça, a equidade e a verdade nos concursos de professores. Quando foram acordados para o problema, já a “casa ardia” e, mesmo assim, com o “cheiro a fumo” que alastrava pela blogosfera docente ainda tiveram o desplante de escrever, no seu site, que o “fumo não era fumo” nem o “fogo era fogo” afirmando, no próprio dia de publicação em Diário da República do aviso de abertura do concurso, que a ADD não era considerada. Foi apenas mais um episódio lamentável, mais um exemplo da leviandade com que esta questão foi encarada, num processo de negociação que deveria envergonhar quem o assinou em nome dos professores.
Talvez seja pois chegada a altura, passado todo este tempo de luta, dos professores se interrogarem, muito a sério, se consideram que estão a ser bem representados e bem defendidos nas negociações com o ME e o governo, se entendem que fomos bem sucedidos nesta luta (dela retirando os resultados que exigíamos), e se pretendem continuar a ser representados deste modo. Depois disso, feito o diagnóstico e o balanço do passado recente, é ainda fundamental que avaliem o que estão ou não dispostos a fazer para alterar o “status quo”. Nesse processo, é importante manter presente que, enquanto os estatutos dos sindicatos que temos continuarem blindados, e a limitação de mandatos dos seus dirigentes não passar de uma promessa, eternamente adiada, os recorrentes “soundbites”- “só por dentro é que podemos mudar os sindicatos e melhorá-los” e “os sindicatos são o que os sócios quiserem e fizerem deles”- não passam de “slogans” demagógicos e artificiais e de uma “cortina de fumo” com o objectivo claro de travar a mudança e impedir uma reforma profunda das organizações sindicais. A verdade é que estamos, cada vez mais, necessitados dessa reforma. Ou de um outro caminho. O tempo urge…
NOTA- No passado dia 16 de Junho, durante a audiência da APEDE na Comissão de Educação e Ciência da A.R., esta questão foi apresentada e assumida como um dos problemas mais sérios para a classe, tendo a APEDE apelado para uma intervenção parlamentar no sentido de evitar a repetição desta situação em próximos concursos. A deputada Ana Drago teve ocasião de nos anunciar que o BE irá avançar com uma iniciativa legislativa no sentido de alterar a legislação de concursos, para impedir que as classificações da ADD tenham influência nas listas de graduação. Afirmou ainda, dirigindo-se à deputada do PSD presente, que esperava uma postura diferente deste partido comparativamente ao que sucedeu na votação da suspensão da ADD. Naturalmente, a APEDE subscreve esta preocupação e faz questão de lembrar que foi ontem publicada, em D.R., a Resolução nº 61/2010, aprovada na A.R., com votos favoráveis de toda a oposição, que recomenda ao governo a não consideração da ADD para efeitos de concurso. Recomendação que o governo ignora, fiel ao seu autismo e arrogância de sempre, mas que terá de respeitar se se vier a aprovar, no hemiciclo, uma posição vinculativa. A APEDE manterá sobre esta questão uma atenção permanente e continuará a empenhar-se na alteração da realidade actual.»

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Um belo retrato...

A direcção do jornal Público não resistiu ao facilitismo de «falar pela rama» e acabou a fazer o papel do ingénuo útil. Neste caso, útil à propaganda governamental e à política de faz-de-conta.
A direcção editorial daquele jornal considerou pertinente tecer elogios— e considerou-se avalizada para os fazer — ao programa Novas Oportunidades, que se resumem nesta frase categórica: «dificilmente se poderá deixar de concluir que o Novas Oportunidades deu um belo retrato da sociedade portuguesa.» Os editorialistas fundamentaram esta frase assim: «é óbvio que o simples facto de o Novas Oportunidades mostrar que há 1,2 milhões de pessoas dispostas a perder tempo no regresso à escola é um facto que merece ser enaltecido.»
Mas a realidade não é fácil de torcer e os mesmos que escreveram esta frase conclusiva também escreveram uma outra, no mesmo texto: «Houve, claro, muitos, talvez até uma grande parte, que o fizeram com displicência, na tentativa de obter um grau académico sem esforço nem conteúdo; mas houve também dezenas de milhares de pessoas que encararam o desafio com seriedade [...].» (o negrito é meu).
Vamos admitir que, segundo os cálculos destes jornalistas (que não explicam, em nenhuma parte, como os realizaram), essas dezenas de milhares foram dez, atingindo o pleno de cem mil. — se fossem mais de dez dezenas, certamente que os autores do texto teriam utilizado a expressão «centena de milhar» ou «centenas de milhar». Admitamos, então, que foram cem mil aqueles que se dedicaram com seriedade ao estudo. Sobra 1,1 milhão, a tal «grande parte», de pessoas que se inscreveram para «obter um grau académico sem esforço nem conteúdo».
Portanto, 1,1 milhão de portugueses — ou que seja mesmo um milhão, para a coisa ficar arredondada por defeito, — inscreve-se nas Novas Oportunidades para obter uma falcatrua, que tem o beneplácito do Governo, e os jornalistas da direcção do Público consideram que isto dá um belo retrato da sociedade portuguesa!
Há qualquer coisa neste país que, definitivamente, está a fazer com que se instale o delírio colectivo.

Às quartas

Fumo

Ligeiro fumo alado! Ó ave de Ícaro,
Fundindo as asas na ascensão da fuga,
Pássaro mudo, anúncio da alvorada,
Sobre as aldeias como em torno a um ninho;
Ou sonho a despedir-se, impura forma
De nocturna visão, erguendo a túnica;
Pela noite, as estrelas encobrindo,
E pelo dia denegrindo o sol;
Vai tu, incenso meu, suplica aos deuses
Que nos perdoem tão formosa chama.

Henry Thoreau
(Trad.: Jorge de Sena)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Registos do fim-de-semana

Deputados das ilhas mantêm voos em executiva

'Goldens Share' isola Sócrates

35% das PME portuguesas não vão pagar subsídio de férias

Mais isenções que portagens nas SCUT

Sócrates enfrenta intranquilidade no PS

Contas sem controlo
— Governo apresentou Conta Geral do Estado: fundações sem fiscalização regular receberam 167 milhões de euros —
Sol (2/7/10)

Negociações dos chips: Bancada do PS não poupa o Governo
— PS critica a desorientação do Governo. No PSD também há críticos, mas Passos Coelho responde-lhes que todos têm de pagar —

«A complexidade do ensino parecia-me tão grande que, para dizer a verdade, nunca me interessei, nem ocupei muito dessas questões» (Mário Soares)

Taxa de desemprego sobe para 10,9%
Expresso (3/7/10)
Ao que parece, os custos da insularidade também se compensam através de voos em executiva. A crise continua a ser apenas para alguns, há quem se ache isento da necessidade de sacrifícios.
Não são apenas os portugueses que não ligam patavina ao que Sócrates diz ou não diz, agora os espanhóis, está visto, também não lhe ligam, como ficou demonstrado pelo comportamento da Telefónica. Sócrates fez o número das Goldens Share, contrariando todos os discursos que fez durante os dois primeiros anos de mandato do Governo anterior. Nessa altura, para Sócrates, o mercado era rei, e quem defendia uma maior intervenção do Estado ou era estalinista, ou era arcaico, ou tinha perdido o comboio da modernidade. A coerência de Sócrates sempre foi um dos seus pontos fortes, e continua a ser...
A trapalhada das SCUT também continua.
E dinheiro para Fundações continua, igualmente, a não faltar.
O país que foi o último a entrar em crise e o primeiro a sair dela, curiosamente, é dos poucos, na Europa, onde o desemprego cresce a olhos vistos. Ainda bem que fomos os primeiros a sair da crise...
Mário Soares diz que não percebe nada de Educação e diz que não leu o livro de Lurdes Rodrigues. Contudo sentiu-se autorizado a tecer rasgados elogios à ex-ministra. Mário Soares já há muito que perdeu a noção do ridículo. Agora, foi apenas mais uma confirmação — o que, no caso em apreço, tem um lado positivo: descredibiliza o elogiante e o elogiado, ou, melhor, a elogiada.

domingo, 4 de julho de 2010

Pensamentos de domingo

«Quem não tem vergonha não tem consciência.»
Thomas Fuller

«Quem não sabe limitar-se nunca soube escrever.»
Nicolas Boileau

«Antes de escrever, aprendei a pensar.»
Nicolas Boileau
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações.

Hank Mobley

sábado, 3 de julho de 2010

Ao sábado: momento quase filosófico


A propósito da Vida e da Morte

«Somos as únicas criaturas que percebem que vão morrer e também somos as únicas criaturas que se imaginam a viver eternamente. É essa combinação que nos enlouquece. A morte assusta-nos imenso. E uma vida que não tem um destino claro — excepto um precipício — parece desprovida de sentido. É indubitavelmente por isso que a mortalidade humana está ligada às questões fundamentais da filosofia.
Questões como: qual o sentido da vida — especialmente se vai tudo terminar um dia? Em que medida é que a consciência que temos da morte deveria afectar a forma como vivemos as nossas vidas? A vida teria uma importância radicalmente diferente se vivêssemos eternamente? Após um milénio ou dois seríamos subjugados pelo tédio existencial e desejaríamos um fim para tudo?
Temos almas? E, se sim, elas sobrevivem aos nossos corpos? De que são feitas? A tua é melhor que a minha?
Existe outra dimensão do tempo que elimina o ciclo da vida e da morte? É possível "viver eternamente" se vivermos sempre no momento presente? O céu é um lugar no tempo e no espaço? Se não, onde e quando é? E quais são as probabilidades de chegarmos lá?
Foram questões deste género que nos levaram a inscrever-nos nos nossos primeiros cursos de filosofia há cerca de cinquenta anos. [...]
Entretanto, o tempo continuou a passar e nós vamos morrer à mesma. Acabámos por voltar a essas Grandes Questões em cursos de metafísica e teologia, ética e existencialismo.
Porém, surgiu imediatamente outro obstáculo: considerar honestamente a hipótese da nossa própria morte assustou-nos de morte. Não conseguíamos olhar a Morte nos olhos sem, bem, sem medo e sem tremores. Mas também não conseguíamos desviar os olhos. Morte: é impossível viver com ela, mas é impossível viver sem ela.
O que é que podemos fazer?
Que tal contar uma piada? Mal não fará.
Millie acompanhou o marido, Maurice, ao consultório do médico. Depois de fazer um exame completo a Maurice, o médico pediu para falar a sós com Millie.
— O senhor Maurice sofre de uma doença grave causada por stress extremo — disse ele. — Se não fizer o que vou dizer-lhe, o seu marido morrerá. Acorde-o todas as manhãs com um grande beijo e depois prepare-lhe um pequeno almoço saudável. Seja sempre agradável e certifique-se de que ele está sempre bem-disposto. Cozinhe apenas os pratos que ele prefere e deixe-o descansar depois das refeições. Não o sobrecarregue com tarefas e não discuta os seus problema com ele; isso só contribuirá para o agravamento do problema. Não discuta com ele, mesmo que ele a critique ou goze consigo. Tente descontraí-lo à noite fazendo-lhe massagens. Convença-o a ver todos os desportos que ele puder na televisão, mesmo que isso implique perder os seus programas preferidos. E, mais importante, todas as noites, depois do jantar, faça o que for preciso para satisfazer todos os desejos dele. Se fizer tudo isto nos próximos seis meses, penso que o senhor Maurice poderá recuperar completamente a saúde.
A caminho de casa, Maurice perguntou a Millie:
— Que é que o médico disse?
— Disse que vais morrer.»
Thomas Cathcart, Daniel Klein, Heidegger e um Hipopótamo Chegam às Portas do Paraíso, pp.12-14.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Fragmenti veneris diei

«Um mês depois, um amolador que percorria a Rua El Arroyo, nos limites entre o bairro Ciudad Nueva e o bairro Morelos, viu uma mulher que se agarrava a um poste de madeira como se estivesse bêbeda. Perto do amolador passou um Peregrino preto com os vidros fumados. Na outra ponta da rua, viu aproximar-se, coberto de moscas, o vendedor de doces. Os dois convergiram no poste de madeira, mas a mulher tinha escorregado ou já não tinha força para se segurar. A cara da mulher, semioculta pelo antebraço, era uma massa disforme de carne vermelha e roxa. O amolador disse que era preciso chamar uma ambulância. O vendedor de doces olhou para a mulher e disse que até parecia que ela tinha combatido quinze rounds com o Torito Ramírez. O amolador apercebeu-se de que o vendedor de doces não ia arredar pé e disse-lhe para tomar conta do seu carrito, que ele voltava já. Quando atravessou a rua de terra voltou-se para se certificar de que o vendedor de doces lhe obedecia, e viu todas as moscas, que antes rodeavam este, em volta da cabeça ferida da mulher. Nas janelas do passeio em frente, umas mulheres observavam-nos à janela. Temos que chamar uma ambulância, disse o amolador. Esta mulher está a morrer. Ao fim de um bocado chegou uma ambulância do hospital e os enfermeiros quiseram saber quem tomava a responsabilidade do transporte. O amolador explicou que ele e o vendedor de doces a haviam encontrado deitada no chão. Já sei, disse o enfermeiro, mas agora o que interessa é saber quem se responsabiliza por ela. Como é que quer que eu me responsabilize por esta mulher se nem sequer sei como se chama?, disse o amolador. Mas alguém tem de se responsabilizar, insistiu o enfermeiro. Mas estás surdo ou quê, pá?, exclamou o amolador enquanto tirava de uma gaveta do seu carrito uma enorme faca de trinchar. Bem, bem, bem, disse o enfermeiro. Bora lá, metam-na na ambulância, disse o amolador. O outro enfermeiro, que se tinha agachado para observar a mulher caída espantando as moscas com as mãos, disse que era inútil tratarem-se mal, pois a mulher já estava morta. Os olhos do amolador ficaram tão pequenos que até pareciam duas linhas desenhadas a carvão. Seu cabrão de merda, foi por tua culpa, disse, e desatou a correr atrás do enfermeiro. O outro enfermeiro quis intervir mas depois de ver a faca na mão do amolador decidiu fechar-se dentro da ambulância, de onde participou à polícia. Durante um bocado o amolador perseguiu o enfermeiro até que a raiva, a fúria ou o rancor diminuíram, ou até que se cansou. E quando isto aconteceu, parou, pegou no carrinho e afastou-se pela Rua El Arroyo até que os curiosos que se tinham juntado em volta da ambulância o perderam de vista.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 413-414.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Uma obscenidade política

A política portuguesa teve hoje mais um episódio obsceno. Lamentavelmente já não causa admiração. Foi apenas mais um a somar a tantos outros.
Hoje foi publicado, com ruído mediático, um livro intitulado A Escola Pública Pode Fazer a Diferença. A autora é Lurdes Rodrigues, a anterior ministra da Educação de José Sócrates.
Dificilmente se encontrarão palavras adequadas que possam, com propriedade e objectividade, caracterizar este acto. Todavia, há, neste episódio, três fenómenos que não posso deixar de referir.

1. Uma ministra política e tecnicamente incompetente, cuja incompetência não tem paralelo na história portuguesa dos últimos 36 anos, considerou razoável, aceitável e normal escrever e publicar um livro sobre a sua desastrada e desastrosa obra à frente do Ministério da Educação.
Este acto de escrever e publicar um livro para tentar desenodoar a sua degradada e humilhada imagem confirma, pela enésima vez, que uma de duas situações é infelizmente verdadeira: Lurdes Rodrigues ou sofre de absoluta inconsciência política ou sofre de total falta de pudor, isto é, em linguagem chã, como ela tanto apreciava utilizar: ou não sabe o que fez ou não tem vergonha do que fez. Ou, uma última hipótese, tem vergonha, mas, seguindo o exemplo do seu ex-chefe de governo, comporta-se como as personagens mais púrrias do jet set nacional: um comportamento quanto mais censurável for mais exposição e mais espavento social exige para poder ser ultrapassado.

2. Os elogios dirigidos à autora, pelos intervenientes neste evento, mostram como muitos dos nossos políticos são medíocres. Em Portugal, faz-se política à base do «bitaite», isto é, à base do palpite, à base de umas ideias gerais, muito gerais, muitíssimos gerais a partir das quais se acha possível poder opinar substantivamente. Em Portugal, faz-se política considerando-se que não é preciso saber do que se está a falar. O paradigma desta forma de fazer política foi, e ainda é, Mário Soares, que nunca estudou qualquer dossiê, mas que se considera, e sempre considerou, preparado para falar de tudo e sobre tudo — por isso, ele estava lá, e falou e elogiou...
Esta é a forma mais cómoda e fácil de fazer política, porque não obriga ao estudo rigoroso de nada, e até permite que se elaborem discursos belíssimos ainda que repletos de gravíssimos dislates ou de absolutas inutilidades. É a forma mais fácil e mais cómoda de fazer política, mas também é a mais irresponsável.
Algum dos políticos que falou, ou que esteve presente, na cerimónia, a que se juntou, lamentavelmente, o prof. Sobrinho Simões, se deu ao trabalho de ler a legislação produzida por Lurdes Rodrigues?
Algum deles leu, por exemplo, as enormidades técnicas existentes na primeira versão do Estatuto do Aluno, de tal forma que teve de ser revisto à pressa e a um domingo?
Algum deles se deu ao trabalho de ler a monstruosidade técnica do sistema de avaliação do desempenho docente, que, quando foi publicado, previa ser aplicado em 15 dias?
Algum deles leu a vergonha técnica que é a legislação sobre o modelo de gestão de Lurdes Rodrigues? Onde, por exemplo, se faz coexistir um processo concursal e um processo eleitoral na escolha do director, processos objectivamente de natureza incompatível? Onde, por exemplo, se plasmam situações de clara incompatibilidade: como é possível efectivar-se o livre exercício da crítica ao director, por parte, por exemplo, do representante dos funcionários, no Conselho Geral, se esse funcionário sabe que, no dia seguinte, pode sofrer retaliações desse mesmo director, que é seu superior hierárquico? Alguém leu isto?
Alguém dos elogiantes leu a vergonhosa e incompetente legislação sobre a avaliação do desempenho dos membros dos Conselho Executivos, no ano lectivo anterior, que não avaliou nenhum desempenho, mas apenas, e absurdamente, currículos?
Algum dos presentes se deu ao trabalho de ler os despachos que saíam num dia e que, semanas depois, eram corrigidos por circulares?
Repare-se que estou a referir-me apenas à objectiva incompetência de Lurdes Rodrigues, que nem capaz era de sustentar tecnicamente as barbaridades políticas que defendia.

3. Alguém se informou, estudou ou leu o que quer seja sobre a verdadeira obra realizada por Lurdes Rodrigues?
Por exemplo, alguém se deu ao trabalho de saber, junto dos professores, a que corresponde, de facto, o famoso programa das Novas Oportunidades? Alguém se deu ao trabalho de saber o que significa um aluno com o 6.º ano de escolaridade obter em três meses o certificado do 9.º ano?
Alguém se preocupou em saber o que isso representa? Não perguntem aos alunos, que esses, ilusoriamente, ficam felizes e contentes; perguntem aos professores que, depois, os recebem no 10.º ano. E recebem muitos destes alunos sem que estes saibam ler nem escrever, nem sequer ao nível de um mediano aluno que tenha somente o 4.º ano. Querem saber situações reais, querem dados concretos? Perguntem aos professores. Perguntem-me, que eu dou-vos de imediato uma lista de situações reais. E depois de terdes conhecimento dos factos, perguntar-vos-ei se ainda considerais uma maravilha o programa das Novas Oportunidades.

Esta é apenas uma parte da horribilis realidade criada por Lurdes Rodrigues. Aquela que agora escreveu um livro para tentar branquear o crime de quase ter destruído a Educação em Portugal.
A política está cada vez mais obscena.

Quinta da Clássica - Ferrucio Busoni