sábado, 28 de novembro de 2015

Requiens e expectativas

Imagem de João Tiago Gouveia
1. O governo da coligação PSD-CDS já não existe. Já não temos Passos Coelho como primeiro-ministro nem Paulo Portas como vice-primeiro-ministro. Já não temos em vigor as políticas de injustiça social e de promoção das desigualdades que estes dois líderes protagonizaram. É um momento que merece ser assinalado. Como deve ser assinalado que Passos sai da governação como entrou: a mentir, a enganar. Entrou com as colossais mentiras sobre a inexistência de cortes nos salários, nas pensões, nos subsídios de Natal e de férias e sobre o não aumento de impostos. Sai com a colossal mentira sobre a devolução da sobretaxa do IRS. Sai como merece sair.

2. Cavaco Silva confirmou mais uma vez a vulgaridade que o caracteriza. Vai ficar para história como o presidente que acumula incultura com parcialidade e irresponsabilidade. Ficará para a história como um presidente de facção, como um presidente de birras e como o único presidente que não indigitou um primeiro-ministro, mas que o «indicou». Vai sair como merece.

3. Temos um governo do PS. Não seria novidade nem constituiria motivo de esperança se este governo do PS não tivesse a sustentá-lo acordos com os partidos da esquerda parlamentar. Se fosse exclusivamente um governo do PS, teríamos, com muita probabilidade, mais do mesmo: políticas levemente diferentes das políticas dos governos do PSD. Como de facto seriam, se o PS tivesse tido maioria absoluta e se levasse à prática o programa com que se apresentou nas eleições.
Não sendo possível saber se a opção que António Costa tomou — a de celebrar acordos com a esquerda — foi e é uma escolha genuína e por convicção ou se foi e é meramente circunstancial e táctica (algo que só lá mais para a frente saberemos), resta-nos a expectativa de que a acção do BE, do PCP e do PEV consiga trazer alguma diferença substancial na política governativa. No imediato, já vimos que assim acontecerá com as anunciadas medidas sobre a recuperação de salários e de pensões (se os acordos com os partidos da esquerda não tivessem ocorrido, o que agora vai ser recuperado num ano demoraria dois ou quatro anos, consoante o governo fosse de maioria do PS ou do PSD). 
Nos próximos meses iremos ver que direcção este governo quer na realidade seguir. Uma coisa é certa: se existe alguma (moderada) expectativa, ela só existe porque existem acordos com os partidos da esquerda parlamentar.

4. A opção de incluir neste governo ministros que foram ministros de Sócrates e que estiveram empenhadamente com ele até ao fim não foi um boa opção.

domingo, 22 de novembro de 2015

À espera

Imagem sem autor identificado.
É lamentável, é quase deprimente o comportamento do protagonista que ocupa o mais alto cargo do Estado português. Ao longo dos dez anos que leva de exercício da função, aquilo que tem dito e o que tem feito é próprio de um político errático, sem critério de análise, arrogante, destituído de substância e de escrúpulo político. Ao longo dos últimos dez anos, Cavaco Silva disse tudo e o seu contrário; navegou sem rumo; anunciou princípios que abandonou; definiu regras que esqueceu; acusou sem fundamento; representou mediocremente o país; foi protagonista de situações constrangedoras; foi conivente com inconstitucionalidades; foi conivente com oportunismos; foi oportunista; foi e continua a ser incompetente na defesa dos interesses da maioria dos portugueses. 
E prepara-se para o ser até ao último dia do mandato. À mesquinhez política que o caracteriza junta agora a irresponsabilidade. Pouco lhe parece interessar se o país precisa com urgência de um governo, pouco lhe parece importar se o país necessita de elaborar o orçamento  para o próximo ano, pouco lhe parece importar a indefinição política. As outrora idolatradas estabilidade e previsibilidade tornaram-se repentinamente irrelevantes. Não se saber que governo vamos ter, não se saber que orçamento que nos vai gerir, não se saber que direcção política vamos tomar, não se saber que compromissos o país e cada português podem assumir tornaram-se, de repente, minudências, para aquele que ocupa a Presidência da República. Considera-se, por isso, no direito de demorar o tempo que quiser para decidir o que há muito devia estar decidido.
Contudo, seria sensato que o inquilino do Palácio de Belém não esquecesse que a origem da palavra República (res publica) significa «coisa pública». Presidir a uma República é pois presidir a algo que é de todos, não é presidir a uma coutada. Os humores, as desforras e os desagravos pessoais não têm lugar na presidência da «coisa pública», mas Cavaco Silva parece não saber isso.
Igualmente estranhos são o silêncio e a complacência com que os portugueses estão a suportar esta espera. O exercício da cidadania não pode ser indulgente, frouxo, desmazelado. Se temos um presidente que, por torpor ou incapacidade, não decide, os cidadãos têm o direito e o dever de o compelir a fazer o que tem de ser feito. Em democracia não há figuras sagradas nem intocáveis. 
A espera não pode continuar.

domingo, 15 de novembro de 2015

A democracia pouco vale e o país pode esperar

Imagem de Pixel Eye.
Estamos a pagar a factura da qualidade medíocre dos políticos e dos patrões que têm dominado o poder político e o poder económico no nosso país. A semana finda foi ilustrativa dessa realidade.
Da parte do governo derrubado e da minoria de deputados que o apoiava, o que foi dito e escrito gerou uma enorme náusea. À desonestidade intelectual que evidenciaram juntaram uma terminologia rasteira. Valeu dizer tudo: valeu o insulto, valeu a acusação moral, valeu a desqualificação, valeu a mentira, valeu a analogia estúpida, valeu tudo o que emergiu a cabeças desaustinadas. Passos Coelho, Paulo Portas e os deputados do PSD e CDS mostraram o pouco que valem, quer na substância do que pensam e dizem quer na falta de dignidade que demonstram ter no exercício dos cargos que ocupam.
Da parte da casta patronal, o que foi dito serviu para confirmar o que há muito é conhecido: quando estes protagonistas falam em «interesse nacional» estão na realidade a falar, apenas e só, em interesses particulares. As diferentes confederações e associações patronais que foram opinar a Belém disseram todas o mesmo: não querem um governo apoiado pela esquerda parlamentar. Não o querem porque a esquerda parlamentar não dá garantias de salvaguardar os interesses e os privilégios da casta patronal. As medidas previstas nos acordos assinados entre o PS e os partidos da esquerda parlamentar, medidas que estabelecem alguma redistribuição de riqueza, são inaceitáveis para a casta patronal. Regras que obriguem a qualquer diminuição das desigualdades sociais, ainda que pequena, são imediatamente atacadas, e quem as defender imediatamente vilipendiado.
PSD, CDS e entidades patronais formam um conjunto coerente, coeso e duradoiro. Sobre isso não existem dúvidas. Essa coerência, essa coesão e essa durabilidade interessam a Cavaco Silva, mas não interessam à esmagadora maioria dos portugueses. Não interessam aos desempregados, aos que tiveram que emigrar, aos pensionistas e reformados e aos trabalhadores que recebem salários vergonhosos ou medianos. Para o PSD e CDS e para as entidades patronais, a defesa dos interesses instalados constitui a primeira e única prioridade. A estes interesses hipotecam, com evidente à vontade, as regras da própria democracia. Por isso sugerem que os deputados do PS, do BE, do PCP e do PEV deveriam atraiçoar os compromissos que estabeleceram com os seus eleitores e deveriam permitir que PSD e CDS governassem. Na verdade, PSD e CDS têm tido essa prática. Passos Coelho foi e é um exemplo paradigmático dessa forma de estar na política. Ninguém se esquece das desvergonhadas promessas eleitorais que fez em 2011 e do modo como governou durante os quatro anos seguintes. Era esse modelo de comportamento que PSD, CDS e entidades patronais queriam que os deputados do PS e dos partidos da esquerda parlamentar seguissem, de modo a permitirem que aqueles dois partidos continuassem a governar o país.
Entretanto, Cavaco Silva hesita entre, contra vontade, terminar o mandato nomeando um governo do PS, apoiado pela esquerda, ou terminar como um déspota, que desrespeita as regras da democracia e impõe um governo de gestão. 
Enquanto hesita, vai dois dias à Madeira, porque o país pode esperar.

domingo, 8 de novembro de 2015

E, de repente, chegou a ética

Imagem de Bárbara Corvo.
E, de repente, chegou a ética. Não tenho memória de, em tão curto espaço de tempo, ouvir no discurso político tanta evocação à ética. À ética e à tradição. 
A tradição é invocada sempre que os argumentos se esgotam, quando não têm solidez ou nem sequer validade. Neste casos, vem a tradição como último recurso, como derradeira tentativa de se sustentar uma posição para a qual já não se encontra mais nenhuma sustentação. É o apelo à autoridade do Tempo, que supostamente dispensaria o exercício crítico. Teríamos de aceitar o que tem sido como aquilo que tem de ser e há-de continuar a ser. No caso concreto (diz o CDS, o PSD e os protagonistas da ala direita do PS): como é da tradição o PS não fazer alianças com o BE nem com o PCP, agora também não o pode fazer. 
Deste modo, o presente e o futuro nunca seriam mais do que simples projecções do passado. Se sempre assim foi, sempre assim será. Ora, como não é possível encontrar seriedade intelectual em afirmações desta natureza, um esboço de sorriso será certamente uma boa resposta.

Mas antes de chegarem aqui, à tradição, os mesmos protagonistas (CDS, PSD e ala direita do PS) passam antes por uma argumentação que alegadamente seria de uma outra natureza, mais respeitável, isto é, uma argumentação de natureza ética. No seu dizer, o que eticamente seria correcto era a coligação de direita governar, porque foi ela que venceu as eleições, mesmo não tendo representação parlamentar suficiente para o exercício da governação. 
Deste ponto de vista, as eleições deixariam de ser, assim, um verdadeiro acto democrático, em que o povo elege os seus representantes, e em que estes são eleitos para representar a vontade de quem os elegeu. Deste ponto de vista, as eleições legislativas passariam a ter uma natureza semelhante à de um concurso de beleza. A mais bela ou o mais belo é aquela ou aquele que recolhe mais votos, e todas as outras ou todos os outros são simples damas ou cavalheiros de honor. Sentam-se à volta da eleita ou do eleito, adornam, sorriem para a fotografia e proferem umas frases giras e inofensivas sobre os problemas do mundo.
No dizer do CDS, do PSD e da ala direita do PS, os representantes do povo deveriam, para eticamente serem correctos, comportar-se de modo semelhante: adornavam o governo, sorriam para a fotografia e diziam umas frases giras e inofensivas sobre os problemas do país. De um modo mais objectivo: verdadeiramente ético seria, para o CDS, PSD e ala direita do PS, os representantes eleitos demitirem-se de representar a vontade de quem os elegeu. Apesar da maioria dos deputados ter sido eleita em nome da rejeição clara das políticas do governo anterior, essa maioria deveria prescindir do dever de respeitar os compromissos pelos quais foi eleita e tornar-se num ornamento parlamentar, digna do louvor ético do CDS, do PSD e da ala direita do PS.

O direito ao disparate faz evidentemente parte dos direitos democráticos, mas será razoável pedir que não se insista muito nesse direito; caso contrário, o abuso e o conspurcamento de termos nobres, como é o caso da palavra «ética», vão-nos retirar referenciais fundamentais para o exercício da cidadania e da própria democracia.

domingo, 1 de novembro de 2015

A propósito de ilegitimidades e do que nos espera

Imagem de Nei Lima
É uma delícia ler e ouvir aqueles que hoje escrevem e falam sobre uma alegada ilegitimidade de um eventual governo do PS sustentado pelo apoio dos partidos da esquerda parlamentar. O delicioso argumento que sustenta esta tese é uma tremenda embrulhada de afirmações que, articuladas entre si, conduzem a conclusão nenhuma. Mas é desse amontoado argumentativo — que mistura eleições, tradições, campanhas eleitorais, arcos da governação e da não governação, tratados orçamentais, euros, NATOS, estabilidades, credibilidades e conformidades — que há quem retire, em desespero e sem pudor, a ideia de que um governo daquela natureza não é legítimo. Dizem: quem venceu as eleições foi a coligação de direita, logo, deve governar; é da tradição que quem tem mais votos forme governo; na campanha eleitoral ninguém falou em governo de esquerda, logo, não pode formar-se; BE e PCP não fazem parte do arco da governação, logo, não podem governar nem apoiar um governo; BE e PCP são contra o Tratado Orçamental e contra a NATO e dizem que devemos estudar a necessidade de uma eventual saída do euro, logo, não podem governar nem apoiar um governo; BE e PCP não asseguram estabilidade, não asseguram credibilidade nem durabilidade a um governo, logo, não podem governar nem apoiar um governo. 

Quando tudo isto é enumerado de uma vez só, para além do cansaço que gera em quem o ouve ou o lê, gera também a ideia de que o mundo vai acabar e que a argumentação é séria. Mas nem o mundo vai acabar nem a argumentação é séria. Podemos confirmar:
— é verdade que a coligação de direita teve mais votos do que cada um dos outros partidos? É verdade, mas o PS, o BE e o PCP coligados têm mais votos do que a coligação de direita. Para além disso formam uma maioria parlamentar, e a coligação de direita não forma. Por outro lado, convém recordar que as coligações podem ser pré ou pós-eleitorais. A coligação PSD-CDS, em 2011, foi pós-eleitoral, como esta que agora se desenha entre o PS, o BE e o PCP. De onde vem então o queixume?;
— é da tradição que quem tem mais votos forme governo? É, mas ainda que nenhuma tradição tenha valor só porque é tradição; neste caso, a tradição também foi cumprida: a coligação de direita já foi constituída como governo. De onde vem o queixume?;
— é verdade que na campanha eleitoral ninguém falou na formação de um governo de esquerda? Não é verdade. Todos assistimos, em directo e a cores, à interpelação de Catarina Martins a António Costa, no debate entre ambos, sobre as três condições que colocava para o estabelecimento de um acordo pós-eleitoral. O próprio António Costa repetiu várias vezes que se opunha à ideia da existência de um muro que supostamente excluísse o BE e o PCP de responsabilidades governativas. Também Jerónimo de Sousa disse várias vezes, durante a campanha eleitoral, que não havia nenhuma impossibilidade intransponível para um acordo com outros partidos, tudo dependia das políticas a acordar. De onde vem o queixume?;
— é verdade que o BE e PCP são contra o Tratado Orçamental e contra a NATO e dizem que devemos estudar a necessidade de uma eventual saída do euro? É verdade. E então? Em 1976, o CDS votou contra a Constituição da República Portuguesa e não foi por isso que se sentiu inibido, nem ninguém o inibiu, de se coligar com o PS, de Mário Soares, e de ter ministros no governo. Paulo Portas é contra a República, defende a monarquia, e não é por isso que se sente inibido, nem ninguém o inibiu, de ser vice-primeiro-ministro de um governo republicano. O CDS, de Manuel Monteiro e de Paulo Portas, foi, durante vários anos, anti-europeísta a raiar as teses nacionalistas, e não foi por isso que foi excluído do arco da governação. De onde vem o queixume?;
— é verdade que o BE e o PCP não asseguram estabilidade, credibilidade e conformidade a um governo? A pergunta é insidiosa, porque ela nunca foi feita em situações anteriores de governos de coligação. E havia fortes razões para ter sido feita quando eram outros os protagonistas. A propósito: a demissão irrevogável de Paulo Portas foi um momento de estabilidade? A revogabilidade da demissão irrevogável foi um momento de credibilidade? O comportamento de Passos Coelho, ao prometer que não aumentaria os impostos nem cortaria nos vencimentos e depois, no governo, ter feito o oposto, foi um exemplo de credibilidade? Os permanente conflitos, nos primeiros dois anos da governação anterior, entre Passos e Portas, entre este e Gaspar, entre Gaspar e Álvaro Pereira, entre este e o CDS, foram casos de conformidade governativa?

A argumentação para sustentar a tese da ilegitimidade de um governo do PS apoiado pelos partidos da esquerda parlamentar é, pois, frouxa e denota ausência de seriedade intelectual. Na verdade, é o pânico a falar, é o império dos interesses instalados a tremer, é o sonho de mais quatro anos de domínio absoluto a desfazer-se, é o pesadelo da perda de mordomias e de vassalagens, é o terror de que venha a provar-se que, afinal, existia e existe uma alternativa à política que tem sido seguida. São demasiadas coisas que estão em jogo, e o desnorte destes protagonistas é enorme.
Mas agora o que mais importa é o que realmente vão fazer o PS, o BE e o PCP. Se o PS, ao contrário da política que tem seguido desde 1974, conseguir vencer a sua ala direita (que só em irrelevâncias se distingue do PSD) e se se dispuser a construir verdadeiras políticas alternativas que valorizem o trabalho e combatam as desigualdades, é possível esperar por melhores dias. Mas é preciso ver para crer, pois a história do PS e a história de muitos dos seus protagonistas não inspira confiança.
Ao BE e ao PCP cabe exigir agora e cumprir depois. O que for acordado, se o for, é para ser respeitado por todas as partes. Se um governo do PS, sustentado num acordo com a esquerda parlamentar, vier a concretizar-se, já sabemos que terá de enfrentar o terreno minado que o governo da coligação de direita lhe vai deixar e o acinte de muitos governos europeus, a começar pelo alemão, assim como do BCE e da Comissão Europeia. A esquerda portuguesa tem, todavia, uma oportunidade rara de mostrar o que vale.