sábado, 30 de junho de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Rousseau tinha um temperamento difícil: neurótico, narcisista, hipocondríaco, padecia ainda de intensos ataques de mania da perseguição. Autor de uma das obras mais ambiciosas sobre a educação das crianças (Emílio), sentiu-se, contudo, incapaz de se ocupar da educação dos seus próprios filhos, entregando os cinco que nasceram da sua relação com Thérèse Lavasseur aos orfanatos públicos.
Rousseau sofria de depressões que o levavam frequentemente a pensar no suicídio. A este respeito, conta Diderot que, um dia, ao visitá-lo na sua casa de Montmorency, Rousseau lhe confessou, frente ao tanque, que estivera tentado a lançar-se a ele para acabar com a vida.
— E porque não o fizeste? — perguntou Diderot, a provocá-lo.
Rousseau, surpreendido com a falta de sensibilidade do amigo, respondeu:
— Porque meti a mão na água e pareceu-me fria.
Pedro González Calero, A Filosofia com Humor, Planeta (adaptado).

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Exames nacionais - apontamentos (8)

Neste momento está a decorrer o período em que os professores se dedicam a avaliar e a classificar as provas dos exames nacionais. Esta é provavelmente a fase mais crítica de todo o processo que envolve a realização deste tipo de provas e onde a sua fiabilidade/fidelidade deve ser particularmente escrutinada.
Depois de nos textos anteriores ter passado os olhos pela fase de selecção das aprendizagens a avaliar, pela fase de escolha do tipo de perguntas e pela fase de formulação/redacção das perguntas, procurarei agora recordar alguns graves problemas que a fase de classificação das provas suscita. Todos os professores conhecem estes problemas, o estranho é que alguns os esqueçam, quando defendem a superlativa capacidade avaliativa dos exames nacionais e quando pretendem que eles se generalizem a todas as disciplinas e que possuam peso determinante na aprovação do aluno. É estranho, em especial, que seja esquecido este facto: os problemas técnicos de docimologia que são comuns a provas realizadas a nível de turma e a provas realizadas a nível nacional assumem, nestas  últimas, consequências particularmente graves e com carácter irreversível, para o aluno.

As enorme dificuldades e as múltiplas insuficiências de que o acto classificativo de uma prova enferma constituem um rol imenso que a literatura sobre a matéria já há muito elencou — naturalmente que o grau e a natureza das dificuldades e das insuficiências variam consoante a disciplina e o nível de ensino,  por isso, assinalo que estas observações estão focalizadas sobretudo nos exames nacionais do ensino secundário.
O problema das classificações dos exames reside obviamente na sua fidelidade/subjectividade. Saber se uma prova foi bem ou mal classificada é aquilo que legitimamente preocupa alunos e pais. Os professores partilham dessa preocupação e acrescentam uma outra: sabendo, como sabem, que a fidelidade absoluta ou a ausência de subjectividade não são possíveis, interrogam-se sobre o caminho que deve ser seguido e como deve ser seguido.
Como já foi lembrado em textos anteriores, a tentativa de ultrapassar o problema da subjectividade através da formulação de perguntas de resposta de escolha-múltipla esbarra com dois óbices: a) este tipo de pergunta não consegue avaliar várias aprendizagens e competências complexas; b) neste tipo de pergunta, o problema da subjectividade desloca-se do momento classificativo das respostas para o momento da redacção das perguntas e da sua interpretação.
Por estas duas razões, e porque não faria sentido que um exame nacional avaliasse somente aprendizagens e competências básicas, é necessário formular perguntas de resposta longa que obrigam à formulação de juízos avaliativos e classificativos por parte de centenas ou milhares de professores, consoante a dimensão do país. Ora, esta circunstância introduz de modo incontornável o problema da subjectividade/fidelidade avaliativa. 
Relembrando alguns dados que todos conhecemos, mas que alguns aparentemente esquecem:
1. Em milhares de experiências realizadas em todo o mundo, a conclusão é sempre a mesma e é dupla:
a) existe uma enorme divergência nas classificações atribuídas por diferentes professores à mesma prova (com perguntas de resposta longa) — as divergências são muitas vezes assustadoras, há casos para todos os gostos: a mesma prova obter de uns professores a classificação de 7 valores e obter de outros professores a classificação de 11 valores; uma outra prova obter de uns professores a classificação de 12 valores e obter de outros professores a classificação de 19 valores, etc.
b) existe uma significativa divergência entre classificações atribuídas, em momentos diferentes, pelo mesmo professor à mesma prova — uma nova classificação atribuída um ou dois meses depois pode variar entre mais ou menos 4 valores.
Como todos sabemos também, estas discrepâncias registam-se em todas as provas, inclusive nas provas de matemática. Estas conclusões são do conhecimento de todos os professores, os estudos estão publicados em todo o lado.
2. O aprofundamento analítico dos critérios de classificação, quer quanto à forma quer quanto ao conteúdo, não resolve o problema. Em alguns casos melhora a situação, em outros casos agrava-a.
3. Os elementos subjectivos que intervêm na leitura e interpretação de uma resposta e depois na aplicação dos critérios de classificação dessa resposta são múltiplos e não são passíveis de homogeneização. Não o são a nível individual e muito menos entre pares.
4. Nas perguntas de resposta longa, os alunos com mais facilidade na expressão escrita são claramente beneficiados nas classificações, independentemente do conteúdo objectivo da resposta o justificar ou não.

Estes e outros problemas existem e não devem ser escondidos. Em contexto de exame nacional, a sua gravidade aumenta de modo significativo, porque aquilo que pode ser minimizado no processo de ensino-aprendizagem, que ocorre durante um ano lectivo, não o pode ser numa prova nacional única com peso determinante.

(Continua)

quinta-feira, 28 de junho de 2012

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Quinta da música - Tchaikovsky

Trechos - Serge Latouche

«Medidas [que] podem desencadear círculos virtuosos do decrescimento:

1) Retornar a uma pegada ecológica igual ou inferior a um planeta, ou seja, mantendo tudo o mais igual, uma produção material equivalente à dos anos 1960-1970.
Como será possível reduzir a nossa pegada ecológica em cerca de 75% sem regressar à Idade da Pedra? Simplesmente diminuindo de forma maciça os "consumos intermédios", entendidos no sentido amplo (transportes, energias, embalagens, publicidade) sem afectar o consumo final. Para isso contribuirão o retorno ao local e a caça aos "desperdícios".

2) Integrar nos custos de transporte os danos provocados por esta actividade, mediante ecotaxas apropriadas.
Os custos externos [...] não cobertos pelos automobilistas serão [no mínimo] em França de mais de 25 mil milhões de euros por ano, ou seja, mais do que o actual imposto interno sobre os produtos petrolíferos.»
(continua)
Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Às quartas

Amo a as horas sombrias do meu ser
em que os meus sentidos se aprofundam;
nelas encontrei, como em velhas cartas,
o meu dia a dia já vivido,
ultrapassado e vasto como numa lenda.

Elas me ensinam que possuo espaço
p'ra uma intemporal Segunda vida.
E por vezes sou como a árvore
que, madura e rumorosa, sobre uma campa
cumpre o sonho que a criança de outrora
(abraçada por suas cálidas raízes)
perdeu em tristezas e canções.

Rainer Maria Rilke
(Trad.: Ana Hatherley)

Invariavelmente os erros repetem-se

Fomos informados, há dias, pela voz do ministro das Finanças, de que as receitas dos primeiros meses do ano estão muito abaixo do que o governo tinha estimado. Isto é, as receitas do IRC e do IVA ficaram significativamente aquém do que Passos Coelho e Vítor Gaspar tinham prognosticado. De tal modo é a diferença entre o que está orçamentado e o que a realidade revela que a possibilidade de o país não conseguir cumprir a meta estipulada para o défice deste ano voltou a ser o tema de todas as análises económicas.
Este grave erro de previsão junta-se a um outro grave erro de previsão: a taxa de desemprego. Na verdade, o governo tinha previsto um número de desempregados muito inferior ao actualmente registado. O governo não só previu mal, como ainda agora continua sem fazer a mais pequena ideia da evolução desta calamidade social.
Os erros sucedem-se em todos os domínios da economia: também ao nível da despesa, Gaspar e Coelho enganaram-se, a despesa é inferior ao esperado. O curioso é verificar que, para além de objectivamente terem errado, ambos não sabem explicar por que razão a despesa baixou. Põem a hipótese de a causa do fenómeno estar relacionada com o elevado número de reformas ocorrido na Função Pública — o que, segundo alguns economistas, é uma explicação manifestamente insuficiente. Ou seja, a despesa do Estado baixou não por consequência de uma estratégia definida, mas por acaso, porque sim, porque os deuses quiseram...
Somos governados deste modo: com erros, lapsos e dislates a somarem mais que o número de dias que este governo leva de existência. 
Falando de forma apressada ou pausada, este governo é invariavelmente incompetente.

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terça-feira, 26 de junho de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade, Teorema.

Nacos

Canto VI

52
E esses doze protectores de prostitutas,
exaltados violentamente pelos facto
de alguém ter chamado prostitutas
às doze prostitutas suas amigas,
envolveram-se de imediato em longas horas frente
ao espelho,
compondo fato e gravata, cabelo,
e experimentando diversas roupas, de modo
a escolherem, como qualquer assassino elegante,
as que melhor ficariam com o sangue.

53
Eram doze valentes e doze cobardes
que ali iam,
sendo apenas doze homens  no total. E isto porque
cada homem tem, de modo telegráfico, as duas faces:
tem medo e mete medo.
Um homem unilateralmete corajoso não existe,
a não ser que seja unilateralmente pouco inteligente.
É que o raciocínio começa no abc de estar vivo:
quando vês o abismo alto, deves afastar-te cuidadosamente.
Eis tudo. Ou quase.

54
E houve um deles que falou.
Disse que tinha tanta curiosidade
por conhecer países estrangeiros
que, mesmo sem viajar, há mais de dez anos que
não deixava de se obrigar a mudar hábitos alimentares,
móveis de cozinha,
vestimentas, horáriaos de acordar e adormecer
e outras miudezas— como religião,
leis e língua —, de modo a simular,
sem sair do sítio,
as múltiplas viagens que poderia fazer
se para calçar os sapatos
tivesse paciência.

55
Mas não poupemos na brutalidade quando ela elucida
— disse o velho, o contador da história —,
só há um instante em que se tem realmente
os sapatos apertados: é quando o corpo
balança enforcado numa árvore; o resto são
pequenos incómodos. As extremidades
incham, como o próprio nome indica, apenas 
em situações extremas, e uma vida tranquila e 
burguesa não tem, ao longo de setenta anos,
nenhuma extremidade: é feita de centro e esse centro
é feito de nada.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Algumas «descobertas» interessantes

Em vários países da Europa, da América Latina e do Norte de África estão a desenvolver-se auditorias às dívidas públicas dos respectivos Estados. Em Portugal, temos a Iniciativa para a Auditoria Cidadã, que foi constituída e iniciou os seus trabalhos em Dezembro de 2011. Em França, o processo iniciou-se uns meses antes e vai um pouco mais avançado. O economista Jean Gadrey escreve, na último número do Le Monde Diplomatique - edição portuguesa, sobre algumas «descobertas» que essa auditoria tem revelado, e que tem deixado incrédulo quem nela participa. Essas «descobertas» mostram uma realidade  muito diferente daquela que o poder e as elites dominantes publicitam. Alguns exemplos:
«— Como? As despesas do Estado francês, em percentagem da riqueza total produzida, não aumentam desde há vinte anos? Terão até diminuído um pouco, passando de 24% do produto interno bruto (PIB), em meados da década de 1980, para 22%, em meados da década iniciada em 2000? Tem a certeza disto?

— Diz que as receitas do Estado, por seu lado, perderam quatro pontos de PIB, passando de 22% para 18% neste período? Então "eles" fizeram a escolha de privar o Estado de receitas?

— É mesmo verdade que os benefícios fiscais decididos durante a década iniciada em 2000 representam um total de 100 mil milhões de euros por ano em dinheiro não ganho?

— Pelo mundo fora, muitos dos grandes países, como os Estados Unidos e o Reino Unido, têm um banco central que empresta directamente ao Estado a taxas próximas de zero... e nós não temos?

— Se o Banco Central Europeu (BCE) tivesse aceitado emprestar directamente aos países da Zona Euro como fez com os bancos, isto é, a 1%, ninguém estaria hoje confrontado com uma dívida considerada "insuportável", é isso?

— Podemos recusar-nos a pagar uma dívida pública quando já a contraímos? Mas isso já foi feito?»

Estas são algumas das questões (cujas respostas são todas «sim») que estão a passar para o domínio do debate público, em França. 
Em Portugal, a Iniciativa Auditoria Cidadã já tem algum trabalho desenvolvido, que necessita de ser apoiado, aprofundado e divulgado. Também em Portugal parece ser urgente conhecer e debater os verdadeiros meandros da nossa dívida pública. Conhecer, debater e agir.
(Página electrónica da Iniciativa Auditoria Cidadã: http://auditoriacidada.info)

domingo, 24 de junho de 2012

Balanescu Quartet

Pensamentos de domingo

«A glória assemelha-se ao mercado: por vezes, quando nos demoramos, os preços baixam.»
Francis Bacon

«A glória consiste em tornarmo-nos um assunto, ou um substantivo comum, ou um epíteto...
Paul Valéry

«Para mim, a glória é um modesto e efémero absinto.»
Paul Verlaine
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora

sábado, 23 de junho de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Um poema persa diz:
— A noite passada uma voz murmurou ao meu ouvido: "Uma voz que de noite murmura ao teu ouvido não existe."
In Jean- Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Exames nacionais - apontamentos (7)

Pondo de parte o folclore que cada vez mais envolve a realização dos exames nacionais — assunto que abordei no texto da semana passada —, retomo o exercício de recordar alguns problemas graves que fragilizam de modo significativo a fiabilidade avaliativa dos exames nacionais — e que inexplicavelmente são omitidos por quem defende a sua generalização a todas as disciplinas, no fim de cada ciclo de estudos, com peso determinante na aprovação do aluno.
Em contraste com esta exótica omissão, vai-se desenvolvendo, na comunicação social, uma campanha de panegírico aos exames nacionais, sustentada, em muitos casos, numa argumentação de garantido efeito público, mas de muito duvidosa validade e de ainda mais duvidosa veracidade — por analogia, é algo semelhante ao que se passa com a publicidade enganosa. Socorrendo-se de bordões como «exames a sério» e «avaliação a sério» discorre-se sobre a alegada superioridade avaliativa dos exames com uma impressionante superficialidade e irresponsabilidade e, com ou sem inocência, manipula-se a realidade e as mentes.

Recordei, no texto de há duas semanas — «Exames nacionais - apontamentos (5)» —, que o primeiro momento em que a falta de fiabilidade avaliativa do exame nacional se começa a desenhar ocorre com a selecção das aprendizagens e das competências que vão ser objecto de avaliação; e que o segundo momento ocorre quando se procede à escolha do tipo de pergunta a formular. 
O terceiro momento, que me proponho agora recordar, é o da redacção das perguntas/questões (ou, se se preferir, em linguagem mais modernaça: dos itens). 
Como todos sabemos, os problemas relacionados com a redacção das perguntas engloba múltiplos aspectos. Relembrando três deles:
1. O nível de linguagem utilizado na formulação da pergunta. Este é um problema que qualquer professor enfrenta quando elabora uma prova para as turmas que lecciona. Todavia, é um problema que normalmente é bem resolvido por esse professor, porque, evidentemente, ele não utiliza no teste um nível de linguagem diferente daquele que utiliza nas aulas e que os alunos conhecem e dominam. Mas, como é óbvio, aquilo que é facilmente resolúvel numa prova realizada em contexto de turma não o é na elaboração de um exame nacional.
Em determinados saberes, e à medida que se avaliam aprendizagens mais complexas, este problema é factual, e não poucas vezes constitui um elemento que deteriora de modo objectivo a fiabilidade avaliativa de muitas perguntas. Uma pergunta que suscite dúvidas ao aluno sobre o que verdadeiramente está a ser solicitado — não por razões de ignorância sua mas pelo nível de linguagem utilizado — é um pergunta que, na realidade, nada vai avaliar e que, pior ainda, vai dar indicações erradas sobre os conhecimentos e/ou competências desse aluno.
2. Ao problema do nível de linguagem junta-se o problema da clareza da pergunta. Um nível de linguagem adequado não garante clareza na formulação da pergunta. É por isso que nos confrontamos recorrentemente com perguntas pouco claras ou mesmo com perguntas cujo sentido é obscuro. Perante uma questão assim elaborada, ao aluno só resta procurar adivinhar o que está a ser pedido. Às vezes adivinha, mas outras vezes não adivinha. Ora, se as perguntas não são claras a sua fiabilidade avaliativa fica irremediavelmente posta em causa.
3. Os dois aspectos acima enunciados são da responsabilidade de quem elabora, mas há um terceiro que é relativo a quem responde: a interpretação da pergunta. A literatura científica sobre esta matéria confirma o que empiricamente se observa: muitas respostas erradas, ou só parcialmente correctas, não têm como causa a ignorância mas sim a interpretação que o aluno fez do conteúdo da pergunta. Em algumas disciplinas, este problema está particularmente presente nas perguntas cuja resposta é de escolha múltipla. Este tipo de perguntas, que permite uma classificação objectiva das respostas, concentra, inversamente, uma elevada subjectividade na sua formulação, o que tem como consequência uma alta probabilidade de interpretações díspares, por parte dos alunos. Isto conduz, com assinalável frequência, a que os melhores alunos, provavelmente porque a sua capacidade interpretativa é menos linear, obtenham piores resultados neste tipo de testes do que nos testes de perguntas de resposta longa. Deste modo, a objectividade alcançada a nível da classificação é largamente prejudicada pela subjectividade a nível da elaboração.

Estes três aspectos não assumem uma relevância significativa em contexto de teste de sala de aula. Mas essa relevância já existe em contexto de exame nacional. A diferença advém de uma única circunstância: no primeiro caso, existe uma mediação entre a prova e o aluno, que é realizada pelo professor — o professor está lá para realizar a mediação que for necessário realizar, quer no domínio da linguagem, quer no domínio da clareza ou da interpretação; no segundo caso, no exame nacional, não existe qualquer mediação, e todas deficiências e insuficiências de linguagem, de clareza e de interpretação se impõem de modo irreversível, deteriorando a fiabilidade avaliativa desse tipo de prova.

(Continua na próxima semana)

quinta-feira, 21 de junho de 2012

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Quinta da música - Antonio Bertali

Trechos - Serge Latouche

«Reduzir. "Reduzir" significa, em primeiro lugar, diminuir o impacto na biosfera das nossas maneiras de produzir e de consumir. Trata-se desde logo de limitar o excesso de consumo e o desperdício incrível a que estamos habituados: 80% dos bens colocados nos mercados só são utilizados uma vez até serem atirados directamente para o lixo! Hoje em dia, os países ricos produzem 4 mil milhões de toneladas de lixo por ano. A produção de lixo doméstico nos Estados Unidos é de 760 kg por habitante, por ano, em França de 380 kg e na maior parte dos países do sul de 200 kg. Há outras reduções desejáveis, desde os riscos para a saúde às horas de trabalho. A redução dos riscos para a saúde deveria implicar a "precauvenção" (prevenção/precaução), para retomar o neologismo do professor Belpomme, e não tanto o tratamento. [...]
Outra redução necessária: o turismo de massa. A idade de ouro do consumismo quilométrico está ultrapassada. [...] O desejo de viajar e o gosto pela aventura, que estão, sem dúvida, inscritos no coração do homem, são uma fonte de enriquecimento que não deve ser estancada, mas a curiosidade legítima e a investigação educativa foram transformadas pela indústria turística em consumo mercantil destruidor do ambiente, da cultura e do tecido social dos países-alvo. [...] Segundo os Artisans du Monde, numa viagem de 1000 euros com tudo incluído, apenas menos de 200 euros, em média, são destinados ao país de acolhimento. [...]
Por último, reduzir o tempo de trabalho é um elemento essencial, que voltaremos a encontrar a propósito da política de luta contra o desemprego. Trata-se, é claro, de partilhar o trabalho para que todos os que o desejem possam ter um emprego. [...]
Não seremos capazes de edificar uma sociedade serena de decrescimento se não recuperarmos as dimensões recalcadas da vida: o tempo de cumprir o dever de cidadão, o prazer das actividades de fabricação livre, artística ou artesanal, a sensação de voltar a dispor de tempo para o jogo, a contemplação, a meditação, a conversa ou até mesmo apenas o prazer de estar vivo.»
Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Uma verdadeira reforma estrutural

Parece que Miguel Cadilhe propôs um imposto, que designou de «tributo solidário», de 4% sobre a riqueza líquida. Este imposto deveria ser cobrado uma só vez e deveria ser utilizado exclusivamente na amortização da dívida pública. Terá esclarecido este ex-ministro das Finanças que as famílias de menores rendimentos e aquelas que têm casa própria e que vivem exclusivamente do rendimento salarial não seriam atingidas.
Apercebi-me que esta ideia levantou um coro de protestos explícitos e um coro de protestos implícitos que surgiram disfarçados de dúvidas. Alguns destes protestos disfarçados de dúvidas detinham-se na dificuldade ou numa alegada impossibilidade técnica de concretizar tal tributação.
Decerto que não foi inocentemente que alguns preferiram discutir a parte técnica em detrimento da parte política da ideia. Mas a ideia de uma tributação especial a partir de um determinado nível de riqueza tem de ser discutida politicamente, por muito que isso desagrade a alguns. Esta discussão é necessária e é urgente. Do mesmo modo, há uma outra discussão que deve ser introduzida na agenda, e que também não é nova: a definição de um salário máximo nacional e/ou de um rendimento máximo nacional.
Até agora, curiosamente, só têm sido objecto de discussão os «direitos adquiridos» dos assalariados, todavia, há um conjunto de outros «direitos» (relativos à especulação financeira, às regras de funcionamento dos mercados, às mais-valias, às heranças, à propriedade privada, ao sistema de impostos, etc.) que, inexplicavelmente, surgem como indiscutíveis e, por consequência, como intocáveis.
Ora, se se argumenta que não há verdades estabelecidas sobre nada, então, tudo, mas tudo mesmo, tem de ser objecto de escrutínio; tudo, mas tudo mesmo, tem de ser repensado. Isto é, aquelas reformas estruturais que a elite dominante não se cansa de mencionar, terão de ser pensadas e aplicadas a tudo, mas a tudo mesmo.

Às quartas

A CAMINHO DO MANICÓMIO
Em ruidosas linhas as gordas carripanas
Passam por casas que parecem sepulturas.
Acocoram-se às esquinas carroças de bananas.
Um pouco de esterco alegra crianças duras.
Bestas humanas vão passando, alienadas,
No cenário de miséria da rua viva e baça,
Brotam trabalhadores de portas arruinadas.
Calmo, um homem cansado atravessa uma praça. 

Arrasta-se um caixão atrás de uma parelha,
Mole como verme, rua abaixo sem ruído.
E a cobrir tudo isto, farrapagem velha —
O céu... de ar paganizado e sem sentido.

Alfred Lichtenstein
(Trad.: João Barrento)

terça-feira, 19 de junho de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!, Teorema.

Nacos

Canto V

65
Desceu em Londres, mais tarde saltou para Paris;
queria conhecer a parte mística da Europa.
Mas a Europa não tem parte mística: foi
já toda vendida a uns homens das Américas
que falavam inglês que funciona.
De não totalmente compreensível ou racional
a Europa ficou apenas com a noite, que é escura,
e não permite ver totalmente as coisas que nela existem.
Mas uma noite não basta
para iluminar um continente.

66
Tentou encontrar sábios na cidade de
Londres, e mais tarde em Paris. Procurou
na lista telefónica: encontrou páginas de canalizadores,
advogados, restaurantes, empresas do imobiliário,
canalizadores, mas nem uma única referência a um sábio.
Não prova que não existem, mas apenas
que não querem ser contactados — pensou.
E de novo voltou às ruas.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Manter o «statu quo»

A maioria dos gregos optou por manter no poder a elite política que conduziu a Grécia ao descalabro a que chegou. Foi, evidentemente, uma opção legítima, mas que apenas trará mais do mesmo. 
É verdade que não é fácil romper com o statu quo. É verdade que uma ruptura comporta riscos e incertezas. Todavia, quando a certeza é manter no poder a elite responsável pelo caminho da miserabilização, torna-se pertinente questionar se procurar um novo caminho — ainda que com riscos e incertezas — não é uma atitude mais razoável do que manter a certeza do desemprego, a certeza da pobreza e a certeza da fome.
O medo do diferente é um sentimento comum ao ser humano, mas a história demonstra à exaustão que os saltos qualitativos que a humanidade tem dado acontecem quando esse medo é superado e quando o diferente é procurado. 
Não deixa de ser curioso observar que os conceitos «inovação» e «mudança», dois conceitos muito utilizados pela elites dominantes, sejam repentinamente esquecidos quando se trata de «inovar» no campo da política e quando se trata de «mudar» de elites. Para estas elites é adquirido que só há um caminho, que nada há a inovar e nada há a mudar: o poder deve ser mantido pelos mesmos, independentemente da objectiva incompetência que revelam para governar na defesa dos interesse da maioria.

domingo, 17 de junho de 2012

Eleni Karaindrou

Espanha - livro censurado

Livro censurado de Vicenç Navarro, Juan Torres López y Alberto Garzóne (prefácio de Noam Chomsky)

     «O conhecido pesquisador espanhol das área de saúde pública, Vicenç Navarro  (que trabalhou 40 anos na John Hopkins University), e dois colegas seus, Juan Torres López e Alberto Garzón, viram um seu livro censurado. Este livro continha duras críticas à actual situação económico-social da Espanha e da própria Comunidade Europeia. Estava tudo pronto para o lançamento da obra, mas a editora decidiu cancelá-la. Navarro e seus colegas decidiram então dirigir uma carta-denúncia pública ao mundo e divulgar, via Internet, o livro gratuitamente, em PDF.»
............................ 

         «Hay Aternativas, el libro de Vicenç Navarro, Juan Torres López y Alberto Garzón, con prólogo de Noam Chomsky, que sus autores ponen en libre circulación porque la editorial Aguilar (España) se echó atrás en el último momento. Si te gusta, ¡Pásalo!

 Dice cosas como:
- que la crisis mundial es lo que ya sabemos todos: terrorismo financiero.
- que España es el único país de la OCDE en donde los salarios reales no han crecido en los últimos 15 años.
 Y que no hemos vivido por encima de nuestras posibilidades, sino que los salarios han estado por debajo de nuestras necesidades.
- que hace 20 años, la diferencia salariales entre Directivos y asalariados era de 10-20 veces superior y ahora es hasta 100-200 veces superior.
- que los paises que están soportando bien la crisis son los países del norte de Europa, donde los servicios sociales ocupan un 25% y en España solo un 9%, y estos servicios sociales se financian, por ejemplo, con la política fiscal de Suecia.
-que por lo tanto, cuando nos dicen que hay que reducir el gasto público, y reducir los sueldospara generar riqueza y empleo, es todo lo contrario, y eso lo explica con todo lujo de detalles el libro.
- que la diferencia entre Suecia y España es que allí los ricos pagan los impuestos, y aquí solo pagan los trabajadores con nómina, pero que las grandes empresas españolas, la gran mayoría solo declara un 10% de sus ganancias, y que las grandes fortunas, solo un 1%, si acaso. Y para eso utilizan los paraísos fiscales y otras tretas, que hasta los bancos, sus compinches, les ayudan a desviar.
- que en otros países de Europa, las grandes empresas no despidieron a sus empleados, solo redujeron la jornada de trabajo. Por lo tanto no se generó paro.
- que los planes de austeridad que nos imponen solo dirigen las economías hacia el desastre.
 Y que todo esto viene de la economía NEOLIBERAL que impusieron al mundo R. Reagan y Thatcher. (esto lo explica muy bien Naomi watts. en su libro y documental: la doctrina del shock).
- que en España, con los 40 años de dictadura, donde el poder de la banca y los empresarios estaba muy unida a la política, todavía sigue esa tendencia: el poder de clase. (ver pag. 109-110)
- que no dejés de leer el capítulo V, sobre todo páginas 107 a119, las páginas que se ven arriba con las flechitas.
- que en el cap.VII habla sobre los bancos, y la forma en que trabajan, como ya sabemos todos, al ser dirigidos por Wall Street y la City de Londres. Y que habría que nacionalizar las Cajas de Ahorros, para que sea un dinero que realmente sirva al pueblo, y a las pequeñas y medianas empresas. Ahora se está haciendo todo lo contrario.
- que el 0,66% de la población mundial tiene el 66% de los ingresos mundiales anuales.
 También dice que en España no hay ninguna razón para que estemos mal económicamente, solo que, se han montado de tal forma las cosas, que ahora los bancos y los ricos no paran de ganar dinero, y sin embargo, la población es cada día más pobre y está más estrangulada.
Hace un par de meses, la Editorial Aguilar, mostró su interés en publicar nuestro libro: HAY ALTERNATIVAS. Propuestas para crear empleo y bienestar en España, que nos prologó Noam Chomsky.
Cuando ya se había concretado como fecha de publicación el libro el 19 de octubre y se había comenzado su promoción en la web de Aguilar y en librerías, los editores nos comunicaron que la empresa deseaba retrasarla sin otra explicación de por medio, lo que nos obligó lamentablemente a desestimar su publicación en esa editorial. Se confirmaba así lo difícil que resulta difundir en España, en los momentos en que son más necesarias que nunca, como ahora, ideas alternativas al pensamiento único que predomina en el debate político y social.
Para solventar esta situación los autores hemos optado por ofrecer nuestra obra gratuitamente en formato pdf a través de la red y en una nueva edición impresa en Ediciones Sequitur que, con la colaboración de ATTAC España, se ha arriesgado a publicar rápidamente este libro que estará en librerías al precio de 10 euros a partir del 31de octubre.
Tenemos la firme convicción de que solo haciendo que la ciudadanía sepa lo que de verdad está sucediendo en nuestra economía y divulgando las alternativas que existen a esta aguda crisis del capitalismo podremos salir de ella con más empleo y bienestar social, como demostramos en este libro.
Por eso llamamos a divulgar esta versión en pdf, a estudiarla y difundir sus propuestas y pedimos a todos los lectores que se conviertan en distribuidores del libro una vez que se encuentre impreso. Contra la censura de los grandes oligopolios y el pensamiento único que imponen los poderes económicos, financieros y mediáticos defendamos la pluralidad y la libertad de pensamiento conociendo y difundiendo el pensamiento crítico.
Pedimos vuestra colaboración para demostrar a quienes han intentado silenciar este texto que su tiempo se está terminando. Difundid todo lo posible este libro que ahora enviamos.»
Vicenç Navarro
Juan Torres López
Alberto Garzón
Ver o livro em PDF
  O agradecimento ao António Magueija

Pensamentos de domingo

«Eu beijei a primeira rapariga e fumei o primeiro cigarro no mesmo dia. Nunca mais tive tempo para fumar.»
Arturo Toscanini

«Eu desconfio dos camelos. E de todos aqueles que conseguem aguentar uma semana sem beber.»
 Joe E. Lewis

«Se ao menos Deus me desse um sinal forte. Por exemplo, abrir uma conta razoável em meu nome num banco suíço.»
Woody Allen
In José Manuel Veiga, Manual para Cínicos, Fragmentos

sábado, 16 de junho de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Um eremita, vestido de andrajos, os pés ensanguentados pelos rochedos e pelos espinhos, a cabeça a arder de sol, corria sem destino pela areia e gritava a todos os ecos do deserto:
— Tenho uma resposta ! Tenho uma resposta! Quem tem uma pergunta?
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Exames Nacionais - Apontamentos (6)

A «memória descritiva» que, nos textos anteriores, tenho tentado fazer sobre algumas das razões que, no meu entendimento, põem em causa a alegada superlativa fiabilidade dos exames nacionais e, por consequência, a defesa da sua universalização e do seu carácter decisivo na aprovação do aluno, vai hoje ser brevemente interrompida. A razão é esta: não consigo resistir a comentar o imenso folclore que mais uma vez envolve a realização dos nossos exames nacionais, cujo ínicio está marcado para a próxima segunda-feira. Refiro-me ao folclore em torno das normas que regulam a vigilância dos exames.

1. Aproximadamente há cerca de uma década, não sei precisar, a realização destas provas passou a ser pretexto para um imenso populário que, pretendendo transformar os exames nacionais num momento de sacralidade extrema, acaba por fazer deles um momento quase burlesco. Na verdade, foi perdida a noção do ridículo, porque a substância e o sentido das coisas foram perdidos. Quando assim acontece, o extravagante, o picaresco substitui a substância, e esta troca tem sempre consequências terríveis — em particular, quando o conteúdo cede o lugar à forma, e a forma é somente uma aparência pimba.
Com efeito, nos últimos anos, tem-se desenvolvido um distúrbio mental dirigido à Escola portuguesa — naturalmente, que este distúrbio é reflexo de um distúrbio mais global de que o país tem sofrido e continua a sofrer, mas o facto é que a Escola parece ter sido escolhida como alvo prioritário a contaminar. Quem hoje está por dentro da parafernália de regras e de determinações que provêm do Júri Nacional de Exames, e que depois são ampliadas, interpretadas e executadas pelos agrupamentos e pelas escolas, pode legitimamente interrogar-se como é que há vinte, trinta ou quarenta anos era possível realizar exames sem a esquizofrenia normativa que agora existe. Se compararmos os procedimentos e as práticas desse tempo com o actual pergunta-se de que moléstia padecem as cabeças que hoje têm como entretenimento inventar normativos, determinar comportamentos e, sem contexto nem equilíbrio, fabular incomensuráveis responsabilidades e potenciais sentimentos de culpa nos professores vigilantes.
Nos guias de instruções para a realização de exames nacionais encontram-se passagens como esta: «A função de vigilante de provas de exame é uma das mais importantes e de maior responsabilidade de todo o processo das provas finais de ciclo e dos exames finais nacionais, já que um lapso por parte dos professores vigilantes numa única sala poderá pôr em causa toda uma prova a nível nacional» (o negrito é meu). Para além da delícia linguística da expressão «toda uma prova», o que ressalta deste excerto é a desequilibrada necessidade de atemorizar e o desequilibrado peso de responsabilidade atribuído a uma função que apenas precisa de ser feita com seriedade profissional e nada mais. Contudo, quem lê este parágrafo fica com a impressão de que estamos perante uma responsabilidade idêntica à da manutenção de um segredo de Estado, cuja violação coloca em perigo a segurança da nação.

2. A existência de telemóveis tem constituído um afrodisíaco para as mentes normativas dos exames nacionais. Ano após ano observa-se que a fruição do desejo e do prazer de procurar a forma perfeita de impedir a interferência do telemóvel na realização das provas é inibida ou frustrada pela impotência objectiva de o conseguir de forma simples. Deste problema de desejo não concretizado resultam regras assim enunciadas: «Qualquer telemóvel ou outro meio de comunicação móvel que seja detetado na posse de um examinando, quer esteja ligado ou desligado, determina a anulação da prova pelo diretor do estabelecimento de ensino» (o negrito é meu). As mentes normativas, em lugar de prescreverem de modo claro que é proibida a entrada de telemóveis ou de outros meios de comunicação móvel na sala em que decorre o exame, optam por expressões que as mentes interpretativas depois questionam e da qual resultam análises e hermenêuticas do maior interesse: «na posse» significa o quê? Significa que o telemóvel se encontra num bolso do vestuário do aluno? E se o telemóvel estiver na mochila e a mochila for depositada junto da secretária do professor (conforme manda o normativo) continua a considerar-se que ainda está na «posse» ou já não está «na posse» do aluno? E se, nesta circunstância (dentro da mochila, junto à secretária do professor), o telemóvel tocar durante a realização do exame, o aluno proprietário do telemóvel fica com a prova anulada? Ou não fica, porque o telemóvel não está na sua «posse»?
Não estou a inventar exegéses, estou a transcrever objectivamente partes de um agradável debate que, nos agrupamento de exames e nas escolas, tem ocorrido.

3. Este ano foi introduzida uma novidade: no cabeçalho da folha de resposta do aluno, para além de ser obrigatório indicar o número de páginas utilizadas (como já era), é necessário indicar também o número de folhas utilizadas, sendo que, neste caso, uma folha tem a particularidade de ser composta por quatro páginas... Não se vislumbra, e também ninguém explica, a razão de ser de mais esta norma — que previsivelmente irá introduzir mais perturbações «interpretativas» e mais ruído na fiabilidade dos dados recolhidos — mas o facto é que houve alguém que a considerou muito pertinente.
Não será arriscado tentar adivinhar que, no próximo ano, esta novidade desaparecerá...

4. Mais folclórico do que isto é a «norma» (transmitida apenas oralmente, que a ausência de pudor ainda não chegou a tal ponto...) que estipula que as professoras não devem vigiar exames com sapatos de salto alto, porque o barulho dos passos com tais tacões é susceptível de distrair os alunos, e que esta circunstância (salto alto) pode ser um justificado motivo de reclamação.
Mais folclórico e muito mais grave do que isto é uma outra «norma» (também ainda só transmitida oralmente) que «sugere», a quem vai vigiar, sentido de discrição na escolha da indumentária, de modo a que os alunos não se distraiam ou venham a queixar-se que se distraíram por ausência dessa discrição.
Prosseguindo este caminho, certamente que não teremos de aguardar muito pelo dia em que surja regulamentado o comprimento mínimo das saias, a largura mínima das calças, a área e a profundidade máximas dos decotes, o grau de transparência das roupas...

(Continua na próxima semana, mas sem referência ao folclore)

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Quinta da música - Felix Mendelssohn

Trechos - Serge Latouche

«Reavaliar. Vivemos em sociedades que se baseiam em velhos valores "burgueses": a honestidade, o serviço do Estado, a transmissão do saber, o trabalho bem feito, etc. Todavia, "estes valores, como é óbvio, tornaram-se irrisórios [...] apenas conta a quantidade de dinheiro que se tiver embolsado, pouco importando como, ou o número de vezes que se apareceu na televisão" [Cornelius Castoriadis]. 
Podemos dizê-lo doutro modo, de acordo com Dominique Belpomme: a "parte mais baixa" do sistema revela "uma megalomania individualista, uma recusa da moral, um gosto pelo conforto, um egoísmo"... De imediato reconhecemos os valores a que se deve dar prioridade relativamente aos valores (ou ausência de valores) dominantes actuais. O altruísmo, a cooperação, o prazer do lazer e o ethos do jogo, a importância da vida social, o local, a autonomia, o gosto pela obra bela, o razoável e o relacional, por exemplo, deveriam substituir, respectivamente, o egoísmo, a competição desenfreada, a obsessão pelo trabalho, o consumo ilimitado, o global, a heteronomia, a eficiência produtivista, o racional e o material. "Preocupação com a verdade, sentido de justiça, responsabilidade, respeito pela democracia, elogio da diferença, dever de solidariedade, vida do espírito: eis os valores que é necessário reconquistar custe o que custar, porque constituem a base do nosso desenvolvimento e a nossa salvaguarda para o futuro [Dominique Belpomme].»
Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

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quarta-feira, 13 de junho de 2012

Que se há-de fazer?

Passos Coelho foi considerado, no jornal espanhol El País, como o «campeão da austeridade e das teses alemãs». O New York Times classificou os portugueses com um povo resignado que, perante a crise, «simplesmente encolhe os ombros».
Desgraçadamente ambas as afirmações são verdadeiras e, apesar de terem sido escritas em contextos diferentes, estão relacionadas. Dizer que Passos Coelho é o campeão da austeridade e das teses alemãs é o mesmo que dizer que Passo Coelho é um político resignado e subserviente. Na verdade, o nosso primeiro-ministro limita-se a cumprir um guião, e fá-lo sem um rasgo de inteligência, de autonomia ou de dignidade. Passo Coelho sempre que fala, seja cá dentro ou lá fora, diz o que o guião diz, no tom e com os movimentos que o guião prevê. Não temos um primeiro-ministro, temos um repetidor de um texto pensado e escrito por outros. Fazer este papel é mau, fazê-lo voluntariamente é ainda pior.
Ao mesmo tempo, o português fadista lamenta-se com a má sorte que misticamente nos caiu em cima. Lamento triste, sofredor, mas sobretudo resignado: «como éramos pobres antes da crise, não faz assim tanta diferença agora», disse um trabalhador ao repórter do jornal nova-iorquino. No fundo, é um destino que se cumpre: o nosso estado natural é sermos pobres, às vezes mais, às vezes menos, mas sempre pobres. Pobres, todavia, honrados, que contra o destino nada mais pode ser feito. 
Até o rapaz da cabeça alagada em gel, orgulho da nação, e que é «você cá você lá» com a Presidência da República, já não acerta na baliza, mesmo quando ela se encontra praticamente desabitada. 
É a desgraça a que temos direito. Que se há-de fazer?

Às quartas

O SEIO DA NOITE

O seio da noite
Cantas os frutos que não conheces
Ainda as aves consagradas
Aos filhos da terra. Asas
Apodrecidas
Em tensa erosão. Cantas
O jardim onde as rosas
Vão arder o suicído
Adiado a cova na montanha a chuva
Que repousa
Na língua dos lobos. Cantas
António cantas comigo
Porque não sabemos ainda.

Casimiro de Brito

terça-feira, 12 de junho de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!, Teorema.

Nacos

Canto V

40
De qualquer maneira, ninguém está assim tão vivo.
O inexplicável não é, muitas vezes, o reduzido número de paixões
por dia, mas sim a razão por que não nos atiramos todos, 
um a um, a intervalos regulares, de um prédio alto.
Não há duas pessoas que estejam ao mesmo tempo
no mesmo lugar: uma pessoa foge das
outras. No autocarro, lê-se o jornal para não se olhar para o lado.
O frio deixou de entrar pela janela — entra pelas notícias.
Fecha-se o jornal; já podes levantar os olhos: felizmente, estás sozinho.

41
Os homens estão desolados e com insónias.
Tomam comprimidos e dizem
versos belíssimos, mas esquecem de regar
as plantas. Todos os seres vivos morrerão
se passares dia e noite a recitar versos,
a corrigir pequenos problemas de dicção,
a organizar, por fora, a História da beleza.
É feio e ficou, eis o Homem.
 42
Pagas para ver ruínas e dizes: que belo!
Da janela admiras o exercício explícito do cio
nos animais: nos cães abundam
as semelhanças com a nossa espécie,
mas ficas chocado. Quase fechas a janela.
Não têm pudor, nem quartos baratos
em pensões indecisas: os cães têm que o fazer na rua,
como fazem todas as espécies
não civilizadas. Os cães não tiveram
os Gregos como antepassado, e isso nota-se.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Espanha, Espanha, Espanha

Pouco tempo depois de tomar posse do seu primeiro mandato de chefe de governo, Sócrates fez questão de enfatizar que a sua primeira visita a um país estrangeiro seria a Espanha. 
Durante essa visita, Sócrates afirmou — com o aparato próprio de quem pensa que sempre que diz algo profere uma declaração histórica —: «A nossa 1.ª prioridade é Espanha; a 2.ª prioridade é Espanha; e a 3.ª prioridade é Espanha.» A justificação de tal obsessão era: «A economia espanhola está a crescer a bom ritmo, acima da média europeia, e isso interessa a Portugal
Nunca compreendi como é que um primeiro-ministro de um país independente pode pensar desenvolver uma relação de dependência económica com um outro país. Nunca compreendi que um primeiro-ministro de um país independente pudesse pensar isso e muito menos imaginei que o pudesse dizer — do ponto vista económico, é uma estultícia; e, do ponto de vista político, é uma proclamação de subserviência. Mas Sócrates disse-o, com o à-vontade e com a convicção com que disse e fez os incontáveis dislates que desgraçadamente conhecemos.
Contudo, Sócrates não estava sozinho neste discurso, a nossa elite económica, financeira e empresarial pensava o mesmo. Foram inúmeros os economistas, os financeiros e os empresários que insistentemente disseram, repetiram, voltaram a dizer e a repetir que devíamos olhar e aprender com os nossos vizinhos espanhóis, porque eles tinham sabido desenvolver-se de modo sustentado; que os espanhóis tinham um modelo económico estruturado, sólido e duradoiro; que os espanhóis tinham feito as reformas que nós não éramos capazes de fazer; que os espanhóis isto, aquilo e aqueloutro e que tudo o que era espanhol era deslumbrante.
Agora é a altura de perguntar: onde está esta elite política, económica, financeira e empresarial, que de modo lesto, sábio e peremptório propalou ser a Espanha o modelo que deveríamos seguir? Precisamente o modelo que neste momento tem 25% de desempregados e só para a banca teve de pedir um resgate no valor de 100 mil milhões de euros. E este é o modelo de uma procissão que ainda não saiu do adro... Mas foi precisamente este modelo que as nossas elites quiseram mimetizar. 
Enquanto não mudarmos de elites, continuaremos medíocres.

Encontro de Professores Contratados e Desempregados


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domingo, 10 de junho de 2012

Anouar Brahem

Pensamentos de domingo

«Bancos: são estabelecimentos que nos emprestam um guarda-chuva em dia de sol e que pedem-no de volta quando começa a chover.»
Robert Frost

«A maneira como os bancos ganham dinheiro é tão simples que é repugnante.»
John Galbraith
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

«O futebol é um jogo excelente para raparigas grandes e fortes, mas não para rapazes fracos e sensíveis.»
Oscar Wilde
In José Manuel veiga, Manual para Cínicos, Fragmentos.

sábado, 9 de junho de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Uma história indiana contemporânea.
Um homem viaja de comboio. O vagão é agitado por um súbito safanão e o homem perde uma das sandálias, que cai para fora.
Pega imediatamente na segunda sandália e deita-a fora.
Um outro homem, ao lado daquele, estranha o gesto. O outro responde:
— Não tenho uso a dar a uma sandália. E a alguém que encontre aquela que caiu, também não servirá de nada. Mas se encontrar as duas...
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Exames Nacionais - Apontamentos (5)

Recordando alguns problemas graves que fragilizam severamente a fiabilidade avaliativa de um exame nacional — e que estranhamente são desvalorizados ou mesmo omitidos por quem defende a sua generalização a todas as disciplinas no fim de cada ciclo de estudos e com peso determinante na aprovação de cada aluno:

1. Como muita literatura científica afirma e muita da nossa experiência profissional confirma, o primeiro momento em que a falta de fiabilidade avaliativa do exame nacional começa a desenhar-se ocorre com a selecção das aprendizagens e das competências (ou, noutra terminologia, dos objectivos) que vão ser objecto de avaliação. Tratando-se de uma prova desvinculada dos processo concretos de ensino-aprendizagem, que se desenvolvem nas milhares de turmas das escolas do país, a selecção das aprendizagens e das competências objecto de avaliação incorre inevitavelmente em desadequações em relação a esses processos. Aquilo que para o professor da turma não constitui um problema (porque sabe como se desenvolveu o processo de ensino-aprendizagem com os seus alunos, e elabora os testes em consonância e em coerência com esse processo) é  um problema para quem elabora uma prova nacional (porque não pode conhecer nem corresponder a esses múltiplos processos de ensino-aprendizagem), cuja resolução é sempre inadequada ou pouco adequada para um número significativo de alunos e, em alguns casos, para a maioria dos alunos que vão ser submetidos a essa prova.
A este propósito é pertinente recordar que não existe nenhuma verdade pré-determinada sobre as aprendizagens e as competências que devem ser objecto de avaliação num exame nacional. É pertinente recordar que as equipas que elaboram os exames são, elas próprias, produtoras de uma interpretação sobre o que é mais e menos relevante no programa curricular, a partir do qual a prova vai ser elaborada. Evidentemente que não sugiro que este processo decorre no meio da subjectividade absoluta e sem a mínima solidez. A solidez mínima existe, é o programa de cada disciplina que a corporiza, todavia, como sabemos, essa solidez é manifestamente insuficiente para impedir escolhas desadequadas de aprendizagens e competências a testar no exame nacional. Todos temos tropeçado com uma frequência inaudita em enunciados de exames, de diversas disciplinas, cuja pertinência das perguntas formuladas, no contexto do programa a que se reportam, é fundamentadamente contestável. Contestável não apenas por leituras diferentes das prioridades estabelecidas no programa da disciplina — leituras que conduzem a processos de ensino-aprendizagem divergentes, convém não esquecer —, mas contestável também porque o conteúdo desses enunciados se afasta ou mesmo ignora indicações e sugestões de aplicação do programa dadas pelos os autores do mesmo e recebidas pelas escolas com a chancela do Ministério da Educação.
Já todos pudemos verificar a existência de provas com perguntas que incidiam sobre aspectos do programa tidos por marginais e sem perguntas sobre partes do programa considerados como essenciais. Ora, avaliar aprendizagens ou competências marginais retira obviamente validade à prova, os resultados que daí se obtêm não possuem fiabilidade, porque não nos informam sobre aquilo que os alunos de verdadeiramente importante sabem ou não sabem, são ou não são capazes de fazer.
O problema é que tudo isto não ocorre acidentalmente. O problema da selecção das aprendizagens e das competências a avaliar no exame nacional ocorre inevitavelmente, pelas razões acima apontadas, e que são de todos conhecidas.

2. A escolha dos tipos de perguntas a formular constitui, como sabemos, uma dificuldade comum na elaboração de provas de avaliação, seja de que natureza forem, mas constitui uma dificuldade muitíssimo maior na elaboração de uma prova de exame nacional. 
Se é verdade que não existe nenhum tipo de pergunta que não possua limitações/insuficiências avaliativas, também é verdade que essas limitações/insuficiências são ultrapassadas pela diversidade/complementaridade de instrumentos de avaliação que podem ser utilizados, durante o ano lectivo, no desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. Contudo, a superação das limitações/insuficiências não é possível de realizar numa prova de exame nacional com peso determinante na aprovação do aluno, como alguns pretendem que venha a acontecer. Se a prova tem um peso determinante, todos os elementos de avaliação obtidos pelos professores durante o ano lectivo são desvalorizados ou anulados.
Sabendo-se, como se sabe, que todos os tipos de perguntas (sejam de resposta curta: completação, verdadeiro-falso, associação, escolha múltipla; sejam de resposta longa: livre ou orientada) ou induzem grande subjectividade na elaboração das questões; ou induzem grande subjectividade na avaliação/classificação das respostas; ou só avaliam com fiabilidade aprendizagens e competências mais simples e descuram as mais complexas; ou permitem que o factor «sorte» possa intervir com elevada probabilidade; ou só permitem avaliar elementos restritos das aprendizagens, ou etc.; não se compreende que, mesmo assim, sabendo-se tudo isto, ainda se defenda a universalização dos exames nacionais e se defenda que lhes seja atribuído um peso decisivo na passagem de ano dos alunos.
Sabendo-se, como se sabe, que apenas as perguntas de escolha múltipla e as perguntas de resposta longa podem avaliar aprendizagens e competências mais complexas, mas que as primeiras não conseguem avaliar aprendizagens que exijam a organização e o desenvolvimento de ideias ou o exercício da argumentação nem conseguem avaliar competências como a expressão verbal, a reflexão, o espírito crítico, etc., (para além de permitirem a introdução de relevantes elementos subjectivos na redacção das perguntas); e que as segundas, avaliando essas aprendizagens e competências, introduzem elementos de elevadíssima subjectividade na avaliação e classificação das respostas; não se compreende que, mesmo assim, sabendo-se tudo isto, ainda se defenda a universalização dos exames nacionais e se defenda que lhes sejas atribuído um peso decisivo na passagem de ano dos alunos.

(Continua na próxima semana)

quinta-feira, 7 de junho de 2012

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Quinta da música - Jordi Savall & Andrew Lawrence-King

Trechos - Serge Latouche

«Hoje em dia, mais do que nunca, o desenvolvimento sacrifica as populações e o seu bem-estar concreto e local no altar de um bem-estar abstracto e desterritorializado. É claro que este sacrifício em honra dum povo mítico e desencarnado é feito para benefício dos "empresários" do desenvolvimento" (as empresas multinacionais, os responsáveis políticos, os tecnocratas e as máfias). O crescimento actual só é rentável na condição de fazer recair o seu peso e os eu preço sobre a natureza, as gerações futuras, a saúde dos consumidores, as condições de trabalho dos assalariados e, ainda mais, sobre os países do Sul. É por isso que se torna necessária uma ruptura. Todos, ou quase todos, concordam, mas ninguém ousa dar o primeiro passo. Todos os regimes modernos foram produtivistas: repúblicas, ditaduras e sistemas totalitários, quer os seus governos fossem de direita ou de esquerda, liberais, socialistas, populistas, sociais-liberais, sociais-democratas, centristas, radicais ou comunistas. Todos consideraram o crescimento uma pedra angular do seu sistema inquestionável. A indispensável mudança de objectivo não se inclui entre aquelas que uma mera mudança eleitoral possa resolver instalando um novo governo ou votando a favor de uma nova maioria. O que é necessário é muito mais radical: nem mais nem menos do que uma revolução cultural, que deverá desembocar numa refundação da dimensão política.»
Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Crato e o caracol

A sabedoria popular diz que se apanha mais depressa um mentiroso do que um coxo. A acção deste governo confirma o adágio e amplia-o. Se nos inspirarmos na acção política de vários dos seus ministros, não seremos muito atrevidos se dissermos que, nestes casos, se apanha mais depressa um mentiroso do que um caracol. O comportamento político de Nuno Crato é um desses exemplos. Ainda o caracol está a iniciar o seu amolentado movimento e já Nuno Crato foi apanhado.
Uma das mais recentes mentiras políticas do ministro da Educação está plasmada na matriz dos cursos científico-humanísticos do ensino recorrente. De modo objectivo:
1. Nuno Crato anunciou (e bem) que ia apostar fortemente no relançamento do ensino recorrente, de forma a possibilitar que todos os adultos (e em particular os trabalhadores-estudantes) que pretendam prosseguir os seus estudos tenham a preparação adequada que os capacite para esse objectivo. Os cursos EFA não dão, como se sabe, essa capacitação.
2. Nuno Crato anunciou que as regras de acesso ao ensino superior devem ser iguais para os alunos dos cursos do ensino recorrente e para os alunos dos cursos do ensino regular (vamos admitir que o princípio é correcto — ainda que aqui entrem factores que podem complexificar a análise do problema, mas adiante). 
3. Como consequência de 1 e 2, dever-se-ia esperar que a matriz dos cursos científico-humanísticos do ensino recorrente fosse semelhante à matriz dos cursos científico-humanísticos do ensino regular (exceptuando naturalmente as disciplinas de Educação Física e de Educação Moral e Religiosa, que não existem nos cursos nocturnos). Se os alunos do ensino recorrente e os alunos do ensino regular são submetidos às mesmas provas de acesso ao ensino superior, se os programas curriculares são os mesmos, se a preparação e a exigência devem ser do mesmo nível, não se compreende que possa existir disparidade entre as matrizes de um curso e de outro. Poder-se-iam admitir pequenas adaptações, mas de forma alguma o quadro que agora foi definido, para os 10.º e 11.º anos:
                                               
                                                    Carga horária semanal (em minutos)

Ensino Recorrente
Ensino Regular
Português
135
180
Líng. Estr. I, II, ou III
90
180
Filosofia
135
180
Trienal
180
270
Bienal 1
180
270
Bienal 2
180
270
Total
900
1270


Como se observa, as diferenças são (incompreensivelmente) enormes: por ano lectivo, os alunos do ensino recorrente têm, aproximadamente, menos 200 horas de aulas do que os seus colegas do ensino diurno.
Chegados ao 12.º ano, os alunos do ensino recorrente têm uma pequena recuperação de tempo lectivo na disciplina de Português (ainda que isso não possibilite superar o défice acumulado nos dois anos anteriores), mas vêem o seu défice aumentar desmesuradamente nas disciplinas de opção: inexplicavelmente, os alunos do recorrente só têm uma disciplina de opção, enquanto que os seus colegas do regular têm duas; e mesmo essa disciplina de opção, no recorrente, terá uma carga horária semanal de 135 minutos e, no ensino regular, de 180 minutos. Porquê esta tremenda divergência, se aos alunos de ambos os cursos vão ser exigidas as mesmas aprendizagens e as mesmas competências?

Conclusão: o caracol fugiu e Nuno Crato mais uma vez foi apanhado. 
Na verdade, não se pode ter um discurso, como é o caso deste ministro, repleto de termos como rigor, exigência, seriedade e depois agir assim: com falta de exigência consigo próprio e com falta de rigor e de seriedade com os outros.

Às quartas

A UM MIRTO

Nascido antes de Cristo
uma vez mais floriu
o velho e agora jovem mirto.

Junto ao poço as suas fundas raízes
e o mesmo vivo, sempre generoso
aroma das folhas; o tronco
torturado por nodosas chagas,
cavernas, golpeado de musgo e cobre,
mas com baixos, com tenazes rebentos.

Quantos aqui perdeste, quantos
se amaram à tua sombra?
Alguém como eu acaso te beijou?
Quantos passos à volta? Quanta chuva
desejou o Romano que para aqui te trouxe?
E a quantas exalações da vida assististe
como muda testemunha, ó corpo mediterrâneo
sobrevivente a tantos tantos deuses mortos?

António Osório

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terça-feira, 5 de junho de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!, Teorema

Nacos

Canto III

128
Homens há que usam o arrependimento
como se usa uma técnica de carpinteiro
sobre as madeiras, mas o sentimentos
são inúteis no mundo que existe, onde apenas
se registam os actos. O arrependimento,
enquanto torção leve do coração, é um acto íntimo, interior;
é nada, portanto.

129
O meu pai, John Bloom, arrependeu-se?
Que sei eu do que não se vê?
O certo é que três homens
mataram uma mulher que eu julgava ser
inseparável dos dias.
Tudo o resto é íntimo e nada.

130
Uma mulher bela de nome Mary foi morta.
Todos os humanos são incompletos,
mas vê-la tornava-os inteiros.
(como se ter olhos fosse bem melhor
do que sempre se julgara
— era isto que se dizia.)

131
Já todos espreitámos a náusea
pelo que resta da porta entreaberta. Sabemos
que o sol não limpa uma mesa suja.
Porém, o sol faz mais forte uma mesa
de madeira vazia. Porque o sol
gosta dos objectos puros,
e o vento também.
E até a poeira vinda de cima se aproxima primeiro
do que está limpo.

132
Mary morreu e Bloom amava-a,
caro Jean M.
O mundo é isto: combate-se. Atacamos, defendemos.
Há milénios atrás, em certos locais,
as flores foram indícios da futura fábrica.
Vejo e percebo: do jardim
vem um fumo que já não cheira a delicadezas.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho