domingo, 29 de abril de 2012

Charlie Rouse Quartet

Pensamentos de domingo

«A expressão "político honesto" não é assim tão evidente.»
Bertrand Russel

«Se o voto mudasse alguma coisa tornavam-no ilegal.»
Grafiti, Londres, 1979

«Quem é a Virgínia?»
(Quando lhe perguntaram porque é que a nora Joan vivia em Boston enquanto o filho Edward Kennedy vivia na Virgínia).
Rose Kennedy
In José Manuel Veiga, Manual para Cínicos, Fragmentos

sábado, 28 de abril de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Mais um problema de lógica
 
Uma história contemporânea que se conta em França, nos meios emigrantes.
Um jovem africano dirige-se a Deus e pergunta:
— Meu Deus, porque me deste lábios tão espessos e uma boca tão rasgada?
— Porque em África o calor é muito — responde Deus. — Esse calor dá sede. Precisas de beber muito.
— E porque me fizeste a pele negra? — pergunta ainda o africano.
— Pela mesma razão — responde Deus. — Para te permitir resistir à força dos raios do sol, que na tua terra é ardente.
— Nesse caso — diz o africano — posso fazer-te uma terceira pergunta? Prometo que será a última.
— Diz lá — disse Deus.
— Porque me fizeste nascer em Aubervilliers [uma vila de França, situada perto de Paris]?
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Actividades de substituição - a nódoa mantém-se (1)

Nos últimos tempos, a Educação, em Portugal, tem sido vítima de uma inexplicável onda de absurdos e desacertos. Em meia dúzia de anos, tomaram-se medidas de tal modo infundamentadas — ou apenas fundadas no mais grosseiro senso comum — e com consequências tão gravosas que, ainda hoje, não é possível ter a noção rigorosa das dimensões do desastre.
Deste desastre fazem parte alguns dos assuntos que tenho procurado analisar às sexta-feiras, neste blogue: o kafkiano processo de (pseudo)avaliação do desempenho docente; o desastroso modelo de gestão das escolas; a ilusória Iniciativa Novas Oportunidades. Houve, contudo, uma outra medida, que não sendo tão visível foi e continua a ser funesta para as escolas, refiro-me às designadas actividades de substituição.
Curiosamente, os actuais responsáveis governativos, depois de terem, em período eleitoral, proferido acusações graves à política educativa do governo do PS, mantêm, com retoques insignificantes, os esteios fundamentais dessa mesma política. É precisamente o que acontece com as referidas actividades de substituição: depois de já ter sido proficuamente demonstrado o disparate desta medida, o actual ministro da Educação deixou-a intacta durante o ano lectivo em curso e prepara-se para mantê-la no próximo.
Porque se trata de um significativo exemplo do modo muito pouco sério e nada competente de se fazer política educativa em Portugal, talvez seja útil recordar o que de essencial está em questão.
Esta medida, inicialmente anunciada como aulas de substituição, transformou-se, de modo rápido, em actividades de substituição. O que inicialmente seria uma medida que visava substituir um professor, que tivesse de faltar, por um outro professor da mesma disciplina acabou por se tornar na substituição de um professor, que tivesse de faltar, por um outro professor de uma qualquer disciplina. Aquilo que inicialmente era uma aula passou a ser uma actividade, aquilo que inicialmente era um momento lectivo passou a ser um momento de passatempo, aquilo que inicialmente era trabalho docente passou a ser trabalho de entretenimento de alunos. Pensada em cima do joelho e sem qualquer verdadeira intenção pedagógica (tinha o exclusivo intuito de iludir os pais e a opinião pública), a medida anunciada — aulas de substituição —  nunca se concretizou: porque obviamente não existiam nem existem professores em número suficiente para que se possa assegurar a substituição de um professor por outro da mesma disciplina, e porque o ministério da Educação se recusava a pagar as aulas dadas pelo professor substituto. Sem qualquer preocupação com os interesses de aprendizagem dos alunos, o ministério da Educação promoveu, sem hesitações, a passagem de aulas pagas para actividades graciosas, porque era o modo de salvaguardar o que na realidade interessava: a aparência.
Agora, só o apedeutismo pedagógico ou o desdém pela escola podem explicar que se mantenha em vigor uma das principais causas de indisciplina e de má formação dos nossos alunos. Na verdade, basta um mínimo de seriedade para se ver o óbvio:

1. Nas escolas com problemas disciplinares graves (e são cada vez mais as escolas nesta situação), com turmas problemáticas (em regra, turmas dos cursos Profissionais e CEF), as actividades de substituição apenas potenciam os comportamentos indisciplinados, sem que haja, em contrapartida, qualquer ganho pedagógico reconhecido.
A entrada de um professor estranho numa sala de aula, para realizar uma actividade de substituição, em que existem jovens com problemas disciplinares, é normalmente pretexto para o desencadear de comportamentos conflituosos e acintosos, que, por vezes, chegam ao insulto e à ameaça física do professor. Se professores experientes e com reconhecida autoridade sentem sérias dificuldades em controlar uma turma com estas características, é fácil de imaginar o que acontece aos professores mais inexperientes e com mais dificuldades em verem reconhecida a sua autoridade. Nestas situações, ninguém sai a ganhar e todos perdem: alunos e professor.

2. Compreende-se, pois, que muitos docentes fujam das actividades de substituição como o diabo foge da cruz: são momentos de martírio ou, no melhor dos casos, de absoluta inutilidade. Um professor só consegue desenvolver um trabalho profícuo quando começa a conhecer os seus alunos e estes o professor. Um professor não é um enterteiner, não é pago para isso e não é essa a sua função.
Excluindo situações menos comuns (em que as características de uma turma e de um professor se conjugam de modo espontâneo), sempre que inesperadamente um professor desconhecido entra numa turma desconhecida não é expectável que, do ponto de vista pedagógico/disciplinar, os resultados dessa «intrusão» sejam mais positivos do que negativos.

3. Objectivamente, as actividades de substituição fomentam: a indisciplina, a propagação de maus exemplos comportamentais, a desautorização de professores e de funcionários, um enorme e inconsequente desgaste de energias, a desmotivação de todos e, infelizmente, em alguns casos, desequilíbrios psicológicos graves, entre os docentes.

Se tivéssemos responsáveis políticos sérios, as actividades de substituição nunca teriam sido criadas ou já teriam sido liminarmente extintas. Mas isso era se tivéssemos responsáveis políticos sérios.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Quinta da música - Edvard Grieg

Trechos - Serge Latouche

«Para onde vamos? Directamente contra a parede. Estamos dentro de um bólide sem condutor, sem marcha-atrás e sem travões que vai despedaçar-se contra os limites do planeta. [...]
Ocultamos a questão de saber de onde viemos, que é de uma sociedade de crescimento, ou seja, de uma sociedade fagocitada por uma economia que não possui outra finalidade senão o crescimento pelo crescimento. [...] Denunciar o "frenesim das actividades humanas" ou a embalagem do motor do progresso não pode compensar a ausência da análise da megamáquina tecnoeconómica capitalista e mercantil de que somos provavelmente peças cúmplices, mas não as molas reais. Este sistema assente na desmesura está a conduzir-nos a um impasse. Esta esquizofrenia coloca o teórico perante uma situação paradoxal: tem a sensação de estar a forçar portas abertas e, ao mesmo tempo, a de estar a pregar no deserto. Dizer que o crescimento infinito é incompatível com um mundo finito e que as nossas produções e os nossos consumos não podem ultrapassar a capacidade de regeneração da biosfera são evidências que não dão muito trabalho a partilhar. Porém, são muito mais dificilmente aceites as consequências incontestáveis de que estas mesmas produções e estes consumos devem ser reduzidos (cerca de dois terços no caso da França) e que a lógica do crescimento sistemático em todas as direcções (cujo núcleo é a compulsão e a adição ao crescimento do capital financeiro), bem como o nosso modo de vida, devem, portanto, ser postos em causa.»
Serge Latouche, Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno, Edições 70.

Para clicar


quarta-feira, 25 de abril de 2012

Ironias de Abril

É uma amarga ironia observar que, em cada 25 de Abril que se sucede, aqueles que têm a responsabilidade de proceder à sua celebração oficial são personagens cuja identificação com o acontecimento que celebram vai sendo cada vez menor. Ano após ano, os protagonistas institucionais das celebrações vão acentuando o divórcio entre o que eles próprios são e simbolizam e entre o que o 25 de Abril foi e simboliza.
Ao contrário do que, com insistência, os discursantes oficiais afirmam, o 25 de Abril não foi apenas o momento do triunfo da Liberdade. O 25 de Abril foi essencialmente o momento de uma notável inversão de valores políticos e éticos, na sociedade portuguesa. Valores como a Igualdade, a Solidariedade, a Justiça Social e outros foram parte integrante da Liberdade abrilista. Procurar reduzir o 25 de Abril à aquisição da Liberdade formal é a preocupação daqueles que, tolerando a existência e a inevitabilidade da Liberdade, a pretendem vazia de conteúdo. A agonia política de que as celebrações do 25 de Abril sofrem é consequência desse intencional esvaziamento — declarado no discurso e concretizado na acção política todos os dias. Todavia, o 25 de Abril de 1974 tinha muitas tarefas para realizar — hoje, contudo, muitas delas estão a regredir e quase todas por cumprir.


terça-feira, 24 de abril de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quanta Bondade!,Teorema.

Nacos

73
É evidente que a maldade gosta de cortar aos
bocados e comer. Evidente ainda que certo 
mau humor, vindo da parte de trás do céu,
está na base da imundície de certos
homens. Nenhum mamífero seria tão cruel
se não tivesse apoios obscuros e altos.
[...]

96
Cada cidade é diferente no supérfulo, sendo portanto
diferente em tudo, pois nada de profundo existe
nas ruas apinhadas de gente, a não ser as canalizações
— que alguém tapou.
Cruzou-se então Bloom com Thom C.
um desconhecido com quem, ingenuamente,
simpatizou de imediato, ainda em Londres
— ponto de passagem para quem, como ele,
queria esquecer e aprender.
Depois de falarem da febre que atacava o século pelo pescoço,
Bloom perguntou a Thom C se conhecia algum sítio
cujos hábitos fossem sedutores.
Sítio duplo, onde o quotidiano fosse metafísico
mas a gastronomia tivesse o sal certo.

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Uma entrevista esclarecedora

O presidente do Banco Espírito Santo (BES) deu uma entrevista ao Expresso. Vale a pena ler essa entrevista para, mais uma vez, nos lembrarmos do modo como estamos a ser dirigidos pelas diferentes elites, neste caso, a elite financeira. É notável a ligeireza e a irresponsabilidade que transpiram das palavras do presidente do BES, das palavras de alguém que, curiosamente, cultiva a imagem da mais elevada competência e do mais exigente rigor e que se apresenta (e é apresentado) como um modelo de gestor. (Sintomaticamente, há um facto observável nos últimos anos, em particular, a partir do momento em que Sócrates subiu ao poder, e que prossegue nos dias de hoje: aqueles que mais ornamentam os discursos com as palavras «competência», «rigor» e «excelência» são precisamente aqueles que menos revelam essas características).
Algumas passagens da referida entrevista.
Interrogado sobre o facto de os bancos terem fechado a «torneira» do crédito e isso estar a contribuir para a asfixia da economia portuguesa, o presidente do BES respondeu: «A ideia de que os bancos levaram a essa asfixia é bastante provocadora.» Depreende-se que se trata de uma falsa ideia.
Interrogado sobre o facto de os bancos terem anteriormente alimentado o endividamento, o presidente do BES respondeu: «Os bancos tanto contribuíram para o endividamento como agora estão a contribuir para a asfixia...». Depreende-se que os bancos não contribuíram nem para uma coisa nem para a outra.
Interrogado se a banca não andou a financiar o Estado e sectores não produtivos, o presidente do BES respondeu: «O Estado é o Estado, tem obrigação de saber o que faz. Se há programas de investimento que não se coadunam com a realidade... Houve certamente exageros, mas se não fossem os bancos portugueses, apareciam os bancos estrangeiros.» Depreende-se que a banca agiu bem.
Interrogado sobre se a banca tinha sido imprudente no jogo das parcerias público-privadas (PPP), o presidente do BES respondeu: «A análise das PPP ainda não está feita. [...] Certamente houve investimento excessivo, mas por exemplo, foram as PPP que permitiram financiar o Hospital Beatriz Ângelo (Loures) que foi recentemente inaugurado [...]». Depreende-se que as PPP foram uma boa política.
Interrogado sobre a irresponsável construção de auto-estradas sem tráfego, respondeu o presidente do BES: «Não tenho dúvidas de que teria havido opções melhores do que as que se tomaram. Mas é fácil criticar o passado. Não vou fazer essa crítica, acho que houve exageros mas há quantos anos é que esses programas de construção de estradas vêm a ser feitos?» Depreende-se que não há críticas a fazer nem responsabilidades a atribuir.
O atrevimento destas e de muitas outras respostas dadas pelo presidente do BES mostra o quanto as nossas elites são ineptas, o quanto são incapacitadas para assumir os graves erros que cometeram e o quanto podemos esperar delas. Depois de terem absorvido a riqueza do nosso país até ao tutano, deixando-o exangue, as nossas elites mostram-se impolutas de responsabilidades e prontas a prosseguir o mesmo caminho.

domingo, 22 de abril de 2012

Pat Metheny Group

Pensamentos de domingo

«Se não fossem os carteiristas eu nunca teria tido nenhuma vida sexual.»
Rodney Dangerfield

«Quando ele dança é todo pés, quando pára é todo mãos.»
Arthur Sheekman

«Que comam bolo!»
(Respondeu, quando lhe disseram que o povo não tinha pão para comer)
Maria Antonieta
In José Manuel Veiga, Manual para Cínicos, Fragmentos

sábado, 21 de abril de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Destrezas lógicas

«Conta-se que Nasreddin Hodjâ [personagem simultaneamente insuportável, rude, desconcertante e deliciosa presente em muitos dos contos tradicionais do Médio Oriente] entrou um dia numa loja para comprar umas calças. Experimentou as calças mas depois pensou melhor, trocou-as por uma camisa e decidiu ficar com ela.
Ia já a sair da loja quando o lojista o chamou e lhe fez notar que não tinha pago a camisa.
— É natural —respondeu Nasreddin — uma vez que a troquei pelas calças.
— Mas as calças — disse o lojista — também não as pagaste.
— É natural — disse Nasreddin afastando-se — uma vez que não fiquei com elas.»
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Novas Oportunidades (12)

Para concluir esta série de posts sobre a Iniciativa Novas Oportunidades, duas notas.

1. Ao longo das últimas semanas, procurei dar o meu ponto de vista sobre a Iniciativa Novas Oportunidades (INO). Referi, no primeiro texto, que era imperioso realizar, por uma entidade independente, uma avaliação séria e rigorosa da qualidade da formação ministrada e da qualidade da formação recebida, na INO. Referi também que era incompreensível que tal avaliação ainda não tivesse ocorrido, passados que foram vários anos desde a sua implementação. Na verdade, não é aceitável que, em lugar de ser ter avaliado a qualidade da formação, se tenha optado por inquirir os formandos acerca da sua satisfação. Mais grave: publicitou-se os resultados da satisfação dos alunos como se se tratasse de uma verdadeira avaliação da INO.
O que é certo é que a avaliação não foi feita, e temos a obrigação de perguntar: porquê? Chegados a este momento, ainda não temos quaisquer dados fiáveis sobre os resultados obtidos, a nível nacional, quanto à real qualificação dos portugueses que passaram pela INO. Falo da qualificação real, não falo da qualificação estatística. E deveríamos ter esses dados, era obrigatório estarmos hoje na posse desses elementos. O que impediu, quem impediu que essa avaliação tivesse sido realizada?
É preciso não esquecer que a insciência política que profere frases de louvor desmedido ou de descrédito absoluto à INO não constitui uma avaliação. Essas sentenças são alvitres, não mais do que isso, e normalmente são alvitres de oportunismo político. Todavia, este governo já anunciou que vai proceder a alterações na INO. Ninguém sabe que alterações vão ser feitas, mas já todos sabemos que, sejam elas quais forem, não terão nenhuma avaliação conhecida que as fundamente. Continua-se, por isso, a fazer e a desfazer sem avaliar. Vivemos neste permanente luxo de irresponsabilidade. Mudam os governos, mas as más práticas mantêm-se.
Como já disse, a INO poderia ter sido uma boa ideia se, desde a sua origem, não estivesse refém de uma concepção de formação e educação de adultos marcadamente ideológica, anquilosada e desadequada para as nossas necessidades de formação e se não tivesse ficado nas mãos de políticos sem pudor que a manipularam até à exaustão. Mas isto é apenas mais uma opinião de quem conhece um pouco da realidade INO e de quem tem algum conhecimento da fundamentação do modelo. Todavia, não é disto que precisamos. Nós precisamos de uma avaliação levada a cabo por uma instituição independente que coloque equipas nas escolas/centros de formação a acompanhar a realidade e a escrutinar a qualidade da formação dada e a qualidade da formação recebida.
Era esta avaliação que era obrigatório fazer, mas nem o governo anterior nem o actual a realizaram.

2. No passado dia 13 de Abril, saiu um despacho do Ministério da Educação e Ciência (Despacho n.º 5106-A/2012) que, discretamente, no meio de uma parafernália de revogações, de republicações e de novas redações, anuncia a reabertura das matrículas para os cursos científico-humanísticos do ensino recorrente. Aquilo que nunca deveria ter sido extinto vai regressar (e foi extinto porque, mais uma vez, a ideologia se sobrepôs ao conhecimento da realidade e porque, mais uma vez, não houve uma avaliação rigorosa que fundamentasse a decisão tomada) — recorde-se que estes cursos foram estranhamente substituídos pelos cursos EFA das Novas Oportunidades.
Este regresso é uma boa medida, ainda que manchada pela obrigatoriedade de definir como 30 o número mínimo de alunos para a abertura de uma turma. E de acrescentar que, se no decurso do ano mais de 5 alunos desistirem, a turma se extingue, podendo os alunos ser transferidos para outra escola. Isto constitui uma grosseira falta de respeito pelas pessoas que, a meio do ano lectivo, podem ver o seu esforço posto em causa, por motivos a que são completamente alheios (a desistência de colegas seus). Obrigar os alunos a mudar de professores e de escola a meio do ano lectivo constitui, para além de uma violentação psicológica, uma monstruosidade pedagógica. Só a insensibilidade e a agnosia podem explicar esta norma.
Os cursos do ensino recorrente nunca deveriam ter sido substituídos pelos cursos EFA. São cursos com objectivos muito diferentes, desde logo, porque os primeiros capacitam para o prosseguimento de estudos superiores e os segundos não (mas até neste ponto os formandos dos cursos EFA foram iludidos). Parece ser óbvio que os dois modelos devem coexistir, mas ambos com reformulações sérias.
Os cursos do ensino recorrente não devem ser uma mera cópia dos cursos do ensino regular: adultos e adolescentes não são nem podem ser vistos como iguais e ser tratados como iguais; os conteúdos dos programas das disciplinas devem adaptados aos respectivos estados etários (havendo coincidência de alguns conteúdos e de objectivos e diferença em outros conteúdos e objectivos); e os exames nacionais, consequentemente, devem ser diferenciados — o nível de exigência deve ser o mesmo, mas adequado às duas diferentes realidades.
Por fim, e em relação à Iniciativa Novas Oportunidades, repito: é urgente uma avaliação rigorosa do modelo e dos resultados.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Quinta da música - J. Hubay

Trechos - Franco Cazzola

«Massimo Salvadori [...] afirma que equidade, justiça social, igualdade dos direitos, solidariedade
"[...] constituem os valores fundadores do socialismo desde que este iniciou a sua história, a partir dos alvores da idade moderna. Eram-no ontem e continuam a sê-lo hoje. Quem não sente estes valores não se torna socialista [...]. Os valores representam uma premissa necessária, embora totalmente insuficiente, de qualquer política socialista. Os valores criam uma disponibilidade, dão e caracterizam uma orientação, mas nada mais. Assentam em determinados pressupostos éticos humanistas, cujo núcleo é representado pelo valor da igualdade.
O socialismo adquire significado concretamente político e social unicamente na medida em que é capaz de oferecer soluções concretas aos problemas das pessoas, quer da vertente da oposição, quer da do governo, e não apenas como corrente ética humanitária solidária " [Salvadori 2001, 91-92].
[Para isso acontecer, é necessário] que as esquerdas tenham a vontade e a coragem de existir por e com pessoas de carne e osso. E mais do que procurar antepassados à direita e à esquerda, olhem para quem (e para como se) vive no mundo do século XXI.
É muito cedo para dizer se alguma coisa está a mover-se à esquerda, ou se continuamos a viver numa espécie de limbo, à espera de Godot [...]»
Franco Cazzola, O Que Resta da Esquerda, Cavalo de Ferro

Felizmente ainda há quem fale assim


O agradecimento ao Jorge Silva

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Às quartas

O NAHUAL

Estou triste
Os meus olhos ocultos perderam-se já sem lágrimas
Sob o mate escuro
A fugir do sol.

Quando acompanhei o feiticeiro ao monte
à procura de um nahual para proteger
os meus passos no mundo
nenhum animal quis aproximar-se para me adoptar
nem a cotovia
nem a anta — silenciosa sombra dos rios —
nem o coati
nem o javali

E agora que o meu coração amadureceu
E palpita forte sob a pele
Sinto que é hora de ter filhos — rebentos da carne —
O mel conquista o trémulo leito da mulher febril

Por isso estou aqui nesta solidão
E esgotei os músculos a saltar
A correr furioso como um louco
A invocar o sonho entre sopros.

Não desejara o abismo ou o lagarto
A lenta tartaruga sagrada, ou qualquer serpente.

Sou altivo, e nobres são o rosto e o coração
Que conservo para os deuses.

Roque Dalton
(Trad.: Jorge Henrique Bastos)

Evidências e consensos que se desmoronam

O que, até há pouco tempo, era tido como consensual e óbvio parece estar a deixar de o ser. E aquilo que era considerado pensamento minoritário e irresponsável, começa a ser recuperado.
O certo é que as evidências subscritas pelos nossos governantes e alguns consensos estão a empalidecer:

Público

Jornal de Negócios

Público 

Público

Jornal de Negócios

Finalmente, mais uma evidência (a idade da reforma ter de ser cada vez mais tardia) que corre o risco de se desmoronar:
Expresso

terça-feira, 17 de abril de 2012

Bonecos sem palavra


Quino, Quinoterapia, Teorema

Nacos

54
As vidas dos outros não nos comovem, pensa Bloom. A tua
vida é uma equação que não consigo resolver
porque não te amo. E também o oposto:
não consigo resolver a tua vida porque
não te odeio.
Mas estando o ar exagerado e quente, como se alguém
tivesse esquecido esse dia tempo de mais no forno,
eis que a simpatia dos homens apareceu.

55
Ofereceram a Bloom descanso, frutas e água.
E como explicando tudo a um imbecil
estrangeiro, disseram, apontando para cada coisa a seu
tempo: a água é líquida, a fruta sólida e esta cama
que te oferecemos estará no estado em que estiverem 
os teus sonhos.
Em princípio — continuaram — o bom descanso pertence a um estado volátil,
mas a qualidade do sono é que decidirá.
Muito bem, disse Bloom.

64
Bloom disse que de Lisboa partira
e em viagem estava para a Índia. No outro lado do mundo
procurava uma alegria nova
ou, se possível, várias. Alegria que misturasse prazeres
de animal doméstico alimentado em prato
com os de animal selvagem e bruto que se alimenta
dos ataques imprevistos que na floresta faz às vítimas
mais fracas. Um tédio surpreendente,
eis o que Bloom procurava. Como o encontrar?
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à India, Caminho

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Curvaturas insuportáveis

Temos um governo submisso, vexado, subserviente, que envergonha o país que representa. Do seu discurso e da sua acção ressoam permanentemente vibrações de vassalagem para com políticos e responsáveis estrangeiros e vibrações de resignação perante uma espécie de inevitabilidade de que supostamente somos prisioneiros. 
É sempre com uma significativa curvatura na coluna vertebral que o primeiro-ministro e o ministro das Finanças se relacionam com os parceiros europeus e as instituições internacionais. É sempre com meneios servis que os vemos e os ouvimos agradecer o negócio que a UE, o BCE e o FMI fizeram connosco. Parecem esquecer que, na realidade, se trata unicamente de um negócio e nada mais, e que não se trata, de modo algum, de uma alegada ajuda de amigos. Foi do interesse objectivo de ambas as partes que o negócio se realizasse, porque seria péssimo para todos os envolvidos se assim não acontecesse. Todavia, é um negócio que, curiosamente, sai caro apenas a uma das partes. E essa parte somos nós. A nós cabe-nos pagar o dinheiro emprestado, a nós cabe-nos pagar os juros do dinheiro emprestado, a nós cabe-nos empobrecer e a nós cabe-nos, vergonhosamente, hipotecar a soberania. Acrescentar a tudo isto comportamentos políticos de bajulação que põem em causa a dignidade nacional é inaceitável.
E, mais uma vez, a história não serve para coisa alguma. Se servisse, todas as partes, depois de olharem para trás, teriam a consciência de que momentos altos e momentos baixos todos os países, sem excepção, passam por eles, e sobretudo teriam a consciência de que alguns dos que hoje arrogantemente assumem o papel de cobradores ainda não saldaram, eles mesmos, uma parte significativa das suas próprias dívidas. Dívidas, aliás, de que toda a humanidade é credora.

Para clicar


domingo, 15 de abril de 2012

Ahmad Jamal

Pensamentos de domingo

«Algumas pessoas nunca cometem o mesmo erro [lapso] duas vezes. Descobrem sempre novos erros [lapsos] para cometer.»
Mark Twain


«De erro [lapso] em erro [lapso], vai-se descobrindo a verdade.»
Sigmund Freud


«Há enganos [lapsos] tão bem elaborados [...]»
Charles Colton
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editores

sábado, 14 de abril de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Inúmeros são os relatos dos inícios. Procurando bem, cada pormenor do mundo pode explicar-se por um conto, por um acontecimento que um dia sobrevem e estabelece a ordem das coisas. É em África, sobretudo, que se contam essas histórias, próximas do mito como, por exemplo, a da lua e a da morte, que pertence à tradição do povo Sandé. 
Era uma vez um morto. O luar incidia sobre ele. Um velho reuniu em redor do corpo um grande número de animais e disse-lhes:
— É preciso passar o morto e a lua para o outro lado do rio. Quem se encarrega disso?
Uma tartaruga agarrou a lua nas suas patas e levou-a para o outro lado do rio. Outra tartaruga, que tinha patas mais curtas, agarrou no morto. Mas não pôde transportá-lo e afogou-se.
Por isso é que a lua aparece todos os dias e o morto nunca mais voltou.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Novas Oportunidades (11)

Apesar do meritório esforço de alguns, ainda são muito poucos aqueles que têm em conta a informação e os ensinamentos que a nossa história da educação disponibiliza. Na verdade, a tentação de abraçar, sem escrutínio rigoroso, teorizações pedagógicas importadas de contextos culturais e educacionais muito diferentes do nosso tem sido, para muitos responsáveis, uma tentação irresistível. Sem uma ponderação sobre a qualidade, a exequibilidade e a adequação dessas teorizações à realidade específica portuguesa, elaboram-se, a partir delas, projectos desassisados, mobilizam-se meios humanos, materiais e financeiros muito para além do necessário e do razoável e espera-se que o milagre aconteça.
Havia e há, no nosso país, uma realidade educacional confrangedora. Em 2004, cerca de três milhões e meio de trabalhadores portugueses tinham um nível de escolaridade inferior ao ensino secundário e, desses, quase dois milhões e seiscentos mil não tinham concluído o 9.º ano. Esta é a realidade estatística que nos envergonha e que nos retrata. Perante esta realidade estatística, o que se fez? Ignorou-se o que a história da educação ensina, ignorou-se o que a experiência quotidiana revela e optou-se pelo caminho fácil: mudar rapidamente a estatística, ainda que mudando quase nada a realidade. Irresponsavelmente foi esta a opção tomada. Através, como acima referi, de uma mobilização sem precedentes de meios humanos, materiais e financeiros e com um projecto fantasioso anunciou-se que, em menos de meia-dúzia de anos, um milhão e duzentos mil portugueses iria concluir o 12.º ano. O que verdadeiramente interessava era alterar de forma drástica a estatística, à realidade logo se veria o que fazer com ela.
A qualidade da formação, que deveria ter constituído a primeira de todas as preocupação, foi descurada e preterida em favor da quantidade da formação. Um modelo assente numa construção teórica que não tem em conta a realidade não pode gerar nunca formação de qualidade. Quer nos pressupostos, quer nos conteúdos, quer na estruturação o modelo é, como tenho procurado mostrar ao longo das últimas semanas, uma mescla de ideologia, de arcaísmos conceptuais e de emaranhados processuais que em pouco ou nada respondem às necessidades de formação de que os portugueses carecem.
Um exemplo mais, a juntar aos outros que tenho apresentado.
No documento intitulado Referencial de Competências-Chave para a Educação e Formação de Adultos, escreve-se o seguinte, sobre a Área (vulgo: disciplina) Cidadania e Profissionalidade:
«De forma a garantir o carácter contextualizado das competências, a Área Cidadania e Profissionalidade do Referencial estrutura-se em torno de oito Unidades de Competência (UC) geradas a partir de oito núcleos (Núcleos Geradores) e que dão corpo a três grandes Dimensões de Competências: cognitivas, éticas e sociais (Audigier, 2000). 
Esses núcleos, geradores de cada uma das Unidades de Competência, são os seguintes: 
Direitos e Deveres; Complexidade e Mudança; Reflexividade e Pensamento Crítico; Identidade e Alteridade; Convicção e Firmeza Ética; Abertura Moral; Argumentação e Assertividade; Programação.
Referenciados a quatro Domínios de Referência para a Acção (DR) — isto é, a contextos concretos em que se experimenta a vida quotidiana — desde a vida privada, à vida profissional, à interacção com as instituições e ainda ao enquadramento por processos e dinâmicas espácio-temporais mais amplos — estas Unidades de Competência materializam-se em competências chave precisas, cuja intensidade se pretende identificar através de Critérios de Evidência. A noção dessa intensidade diferenciada confere sentido à presença implícita de Elementos de Complexidade (identificação, compreensão e intervenção) no elenco dos critérios de evidência. Claro que a singularidade de cada história de vida e o correspondente trabalho de aprendizagem revelará combinações diferentes entre expressões de cada um destes sub-núcleos, numa teia de composições tendencialmente infinita. A trajectória de cada adulto é uma experiência complexa. Não se pretende, por isso, de modo algum, sugerir um padrão de gradação linear — de "menor" para "maior" complexidade — mas tão só a presença de registos diferenciados — que cada experiência pessoal molda — nas oito Unidades de Competência aqui identificadas.
[...]
Esta Área estrutura-se, portanto em dois planos. Num primeiro, com base nos oito Núcleos Geradores (cada um deles na génese de uma das Unidades de Competência); num segundo, a Área CP cruza esses oito Núcleos Geradores com os quatro Domínios de Referência para a Acção. Deste cruzamento entre os Núcleos Geradores e os Domínios de Referência para a Acção resultam 32 Temas, e consequentemente as competências-chave que fornecem a matriz em que assenta o processo de reconhecimento, validação e certificação.» (pp. 36-37)
Não é possível deixar de enfatizar, ainda que o faça em forma de uma simples anotação, a designação atribuída a um dos «núcleos geradores» (neste modelo, a criatividade terminológica é uma constante...): Convicção e Firmeza Ética. É uma pérola uma designação destas.
Também não é possível deixar de anotar a introdução do conceito de «intensidade», em referência às competência-chave, e que essa «intensidade» se «identifica através de Critérios de Evidência», e que é a «intensidade diferenciada que confere sentido à presença implícita de Elementos de Complexidade no elenco dos critérios de evidência». Há passagens imperdíveis nestes documentos da INO. Também vale a pena reler a passagem que termina em «teia de composições tendencialmente infinita».
Mas o que realmente interessa verificar, e que é ilustrado pelo excerto transcrito, é que um modelo assim construído, num imenso labirinto de formalismos e de conteúdos, não pode produzir qualidade formativa. E a consequência é o seu descrédito, e a consequência é que, no terreno, o modelo é ignorado e malquisto. Nestas circunstâncias, o que sobra é a descoordenação, a falta de referenciais, o permanente improviso, a formação sem qualidade.

De que serve aos próprios e ao país apresentar-se uma estatística que diz termos mais umas centenas de milhar de portugueses com o 12.º ano, se o problema da falta de formação de qualidade se mantém? O país não evoluirá se continuar a enganar-se a si próprio. O país não evoluirá enquanto não houver Educação de qualidade, enquanto não houver Formação de qualidade. A quantidade sem qualidade nunca resolveu problemas. Pode dar votos e distribuir ilusões, mas não resolve problemas.
Desgraçadamente a Iniciativa Novas Oportunidades foi, na realidade, a Iniciativa Nova Oportunidade Perdida.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Quinta da música - Gioachino Rossini

Trechos - Franco Cazzola

«Às mudanças de hoje, do início do século XXI, a esquerda deve responder "pensando no porquê" da sua existência ou da sua existência futura. Os meios próprios da democracia liberal já foram plenamente aceites: já não há violência revolucionária, mas existe, se me é permitida a contradição nos termos, "democracia revolucionária".
Mas para quê? Para chegar onde? E por quem? Só depois de se terem verificado as razões de ser da esquerda se porá o problema das políticas (velhas, novas?).
Talvez já não sirvam as políticas que, como recorda Berta, eram típicas da social-democracia europeia, as que tendiam para o "controlo político do mercado de trabalho e da moeda". Ou talvez ainda sejam úteis e, então, seria necessário voltar a colocá-las no centro do debate político e retirá-las do limbo para onde foram expulsas pelo triunfo do pensamento neoliberal.
Úteis? Inúteis? Mas, seguindo a linha de Bloch, devemos perguntar-nos mais uma vez: Com que objectivo? Para quem? Para que "tempo"? Para hoje? Para amanhã? Para que "utopia concreta"?
Volto a recuperar, brevemente, os valores históricos, típicos, de longo prazo, das esquerdas europeias: confiança num desenvolvimento indefinido, primado da política, extinção do capitalismo, superação da democracia burguesa. Ao longo dos anos, estes valores foram progressivamente postos de lado ou totalmente abandonados, mesmo oficialmente. [...] No bem como no mal, pouco resta do que havia na origem. Mas talvez fosse bom retomar alguma coisa, ou reinventar.»
Franco Cazzola, O Que Resta da Esquerda, Cavalo de Ferro.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Às quartas

AQUI ESTÁ

Bom, para esclarecer a confusão,
aqui está:
de repente fiquei farto de rezar
a homens, para homens.
Isso foi o princípio,
o meio e o fim.

Ritual: recordar-me que sou culpado,
estou errado e de cabeça aérea.
Teologia ortodoxa e senso comum:
Sim, o nosso Pai não tem sexo,
Deus é ser, Deus é amor,
Sim, o Espírito Santo é espírito
e sendo Jesus um judeu
tinha por força de ser macho
e era gentil para as raparigas.
Sim eu podia alterar os pronomes privadamente,
Sim eu era casado com Deus
e não tinha direito ao divórcio.
Sim Homem é metáfora para Mulher,
Sim podia esperar um século
Sim é parvoíce na mesma
pensar em Deus como Mulher.

Sim tudo me parece certo
quando a carne e o espírito concordam:
não sinto que faça parte.

Uma verdade é que Deus Pai
apela principalmente aos homens
excepto quando quer uma chávena de chá.

Ralph McAlpine
(Trad. José Alberto Oliveira)

O nosso tempo

Tempo sombrio de vontades perdidas. Pedaços de desejos caem dos rostos cansados. O ar de chumbo pesa sobre a dolência dos comportamentos. Olhares fixam-se no nada. Não há palavras nas paredes. Uma logorreia única faz o caminho. Destrói esperanças, destrói vidas. Criaturas aturdidas, curvadas, disformes desencaminham-se. Criaturas cloroformizadas, conformadas, analgesiadas lamentam, lamentam-se. O destino regressou. Trouxe o esquecimento da força do presente. O mistério da resignação fez-se verdade. Homens e mulheres cristalizam no adormecimento. No sofrimento. Um carrego imenso imobiliza-os. Sorriem do passado, choram o presente, oram pelo futuro. Cabeças inertes cumprem as ordens dos saiões. O nosso tempo.

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Colóquio


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terça-feira, 10 de abril de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Quinoterapia, Teorema.

Nacos

48
[...]
E assim decidiu ele esperar antes de agir
— sabia bem que a amizade e a paz
são apenas momentos intermédios
que, no fundo, aguardam mudanças.


49
Não é por acaso que não consegues, por mais que tentes,
atingir em cheio o dia — qualquer que ele seja —
como se faz às baleias com um arpão.
Os dias têm um invólucro espesso,
uma armadura do material mais resistente que existe:
tudo aquilo de que não se sabe onde está o centro
está seguro.
Assim são os nossos dias que bem queríamos aniquilar
com um arpão. Baleia absurda, sem corpo,
o tempo.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Mentiras, fintas e suicídios

1. Com uma naturalidade que impressiona e indigna, a mentira e a fraude instalaram-se na prática política de quem nos governa. O verbo governar tornou-se sinónimo dos verbos enganar, mentir, falsear, e o exercício da patranha política é realizado sem indícios de vergonha, remorso ou pudor.
Desde que tomou posse, Passos Coelho tem feito basicamente duas coisas: executar a política que os credores lhe ordenam e, fundamentalmente, mentir aos portugueses. Em nove meses de governação, o seu rol de mentiras tem já uma extensão sem paralelo, na nossa história democrática.
O último caso, ocorrido na semana passada, diz respeito ao corte dos subsídios de Natal e de Férias. Desde Outubro último, o governo repetiu insistentemente, pela voz de vários ministros (sem qualquer desmentido), que esse corte duraria dois anos. Apesar dessas repetidas afirmações, Passos Coelho veio agora dizer, com um impressionante à-vontade, que esse corte permanecerá por três anos e que a sua reposição será realizada gradualmente. Não sei se a maior gravidade está no conteúdo da mentira ou no cinismo de quem a alimentou, proferiu e neste momento a revela. Seja o que for, a conclusão que se retira é a de que estamos envolvidos num imenso esterco político.
Como se não chegasse o comportamento degradante do primeiro-ministro, ainda tivemos de assistir, a propósito do mesmo assunto, a um outro vergonhoso comportamento, desta vez, protagonizado pelo ministro das Finanças. Através de tentativas de humor rasca e ironias torpes, Vítor Gaspar desenvolveu, perante os deputados e o país, um número desonroso, que o desqualificou e que desqualificou o exercício da sua função: procurou fazer chalaça com a mentira sobre o subsídio de Férias e de Natal dos funcionários públicos e pensionistas, mentira de que ele é co-autor. E o momento ainda mais aviltante se tornou porque, enquanto Gaspar tentava brincar com o que não devia, o ministro Relvas, a seu lado, gargalhava como um carroceiro.
Seria bom podermos dizer que tudo isto é demasiado mau para poder ser verdade, mas, desgraçadamente para todos nós, é demasiado mau e é demasiado verdadeiro.

2. Todavia, a semana não terminaria sem uma outra situação que ainda mais envilece a actuação dos governantes que temos. Às escondidas, o governo aprovou a suspensão das reformas antecipadas para o regime geral, até 2014, e secretamente fez publicar essa norma na véspera de um feriado nacional, com a conivência do Presidente da República.
Para os políticos que estão no poder, o exercício da governação tornou-se pois o exercício de fintar os governados. O governo finta, enganacom truques de ilusionismo de baixa qualidade, quem o elegeu. É sem dúvida sui generis esta concepção do acto de governar.

3. Mas também é sui generis o modo embascado como o povo português contempla e permite tudo isto. Um povo que tem sido sistematicamente enganado pelos governantes, que vê o número de desempregados crescer diariamente, que vê os impostos subirem permanentemente, que vê os salários reduzidos drasticamente, que vê a pobreza e a miséria crescerem continuamente e que, perante tudo isto, não reage, não se indigna, não luta, não se revolta faz jus à observação de Miguel de Unamuno: «Portugal é um povo de suicidas».

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Comentário de segunda — Direitos adquiridos

Apesar de vivermos um período em que o discurso das elites — políticas, financeiras e empresariais — procura criar em nós a má consciência de que descansar é um acto que se situa na fronteira do pecaminoso e de que trabalhar dia e noite é o mínimo que podemos fazer pela pátria, este blogue, arriscando desrespeitar esta mónada pensante e a salvação do país, vai dar uns dias de descanso ao seus leitores e ao seu autor. Porque sim e porque apesar daquela união nacional afirmar o contrário, o autor deste blogue faz parte da espécie tinhosa e ronhosa que afirma existirem direitos adquiridos: e um deles é o direito ao descanso. 

A este propósito, é interessante perscrutar a seriedade intelectual e moral daqueles que difundem a ideia de que os direitos adquiridos são um arcaísmo e uma imensa tontice. Na verdade, o que o nosso escol dirigente diz é que não estão adquiridos apenas alguns direitos. E esses alguns direitos não adquiridos são precisamente os direitos dos assalariados, por exemplo: o direito ao trabalho, o direito ao subsídio de desemprego, o direito ao subsídio de Natal, o direito ao subsídio de férias, o direito ao salário completo, o direito à pensão completa. Estes são, no seu entendimento, alguns dos direitos não adquiridos. 
Há, todavia, outros direitos que as nossa elites políticas, financeiras e empresariais já consideram ser inequivocamente adquiridos, por exemplo: o direito à propriedade privada, o direito à preservação dos bens materiais, o direito à herança, o direito ao integral cumprimento dos contratos assinados no âmbito das parcerias público-privadas, o direito a dividendos sem impostos acrescidos. 
Assim, torna-se difícil compreender e aceitar o pensamento das nossas elites. 
Deste modo, e enquanto não tomam uma decisão quanto à existência ou não existência de direitos adquiridos, este blogue irá usufrir do direito ao descanso, até à próxima segunda-feira.
Aos generosos leitores, votos de que possam saborear este repouso.

domingo, 1 de abril de 2012

Frank Strozier

Pensamentos de domingo

«Não entende, mas não entende com grande autoridade e competência.»
L. Longanesi

«O sucesso tem sido sempre um grande mentiroso.»
Friedrich Nietzsche

«Prefiro o paraíso pelo clima, o inferno pela companhia.»
Mark Twain
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

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