terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Bonecos (sem palavra)

Quino, Não Me Grite!, Pub. Dom Quixote

Nacos

«Por trás de cada uma destas portas duplas — primeiro carvalho, depois aço — havia uma alma humana, uma mente na sua gaiola de osso, o centro do seu sistema solar, a arder de arrependimento e de raiva, condenada a um labor silencioso e solitário, até ao fim dos tempos.
Este instrumento radiado era uma máquina de reforma, como o comissário explicara no jardim sem vida. Mostraram-nos um capuz negro e convidaram-nos a pô-lo. Que gentileza a deles! O capuz é a coroa dada a cada prisioneiro na portinhola. Ele entra cego. Não vê o jardim. Arrasta-se ao longo do corredor penitencial até à sua cela, sozinho, aterrorizado, sem saber se o passo seguinte será uma queda mortal, se está sozinho no mundo ou rodeado por outros num castelo com quinze quilómetros de comprimento.
Esta Eastern Penitentiary é obra dos quakers de Pensilvânia, que não rasgam um homem ao meio nem lhe vertem chumbo derretido para os intestinos como faziam os malandros dos reis de antigamente. Em vez disso, intervêm directamente na alma.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

Revisão curricular — reflexão do MEP

A correta consulta pública implica uma discussão alargada envolvendo todos os profissionais que trabalham na escola, além de outros agentes sociais. Por isso, condenamos o modo como o processo foi conduzido - teria sido pertinente a promoção de um dia de reflexão, um dia D, para que todos os intervenientes nas escolas se pronunciassem, num processo de baixo para cima, sobre quais devem ser os objectivos de uma escola pública de qualidade e assim construir um projecto de Reforma Curricular. 

Ainda assim, não nos furtamos às nossas responsabilidades de participação no exíguo espaço criado para o efeito. A proposta de revisão curricular que agora se encontra em consulta pública, com as alterações que prevê no currículo dos ensinos básico e secundário, vem empobrecer a escola pública, amputando disciplinas e áreas curriculares importantes para o desenvolvimento dos alunos. 

Em defesa do ensino com qualidade para todos/as alunos/as, defendemos a redução do número máximo de alunos por turma (tal como vem proposto na petição que reuniu quase 20 mil assinaturas e que foi debatida no parlamento). Turmas mais pequenas permitem o ensino mais centrado no aluno, ou seja, a diferenciação e individualização do processo de ensino-aprendizagem, podendo o professor dispor de mais tempo para suprir as dificuldades de cada aluno. Lamentamos que esta proposta seja sistematicamente rejeitada pelos sucessivos governos apoiados nas mais incríveis explicações sobre a pretensa inutilidade desta medida. 

Lamentamos também que esta proposta de revisão curricular seja feita contra certas áreas do saber e a favor de outras. É a negação da importância da formação global, menorizando as artes e a experimentação. É uma espécie de currículo “NÃO MEXAS AÍ”: reduz a experimentação, elimina as disciplinas de artes e expressões, promove um recuo nas capacidades e competências que a escola oferece aos seus jovens, reduz o saber fazer criativamente, remete a escola para o tempo do livro-manual e do professor transmissor de conhecimentos. O problema é que não basta ser capaz de assimilar e reproduzir a informação transmitida, é preciso aprender a saber transformá-la em conhecimento e capacidades. São necessários outros saberes na escola, porque a vida real exige muito mais. 

O desenvolvimento da literacia cidadã exige que se promova a democracia nas escolas, que nestas se crie espaço para outras áreas, disciplinares ou não, onde exista a oportunidade de promover uma real igualdade entre os indivíduos. Assim, defendemos a manutenção da disciplina de Formação Cívica, mas reformulada nos seus conteúdos e com um programa claramente orientado para os direitos e deveres dos cidadãos e para as suas formas de intervenção e ação sobre o espaço público. Aqui urge conhecer o funcionamento das instituições democráticas e os princípios constitucionais em vigor em Portugal, bem como sublinhar os aspectos ético-políticos da intervenção individual e coletiva. 

E porque a cidadania não só se aprende ouvindo mas também experimentando, defendemos a promoção de espaços de debate, através do funcionamento regular de assembleias de alunos, implementadas no espaço da direção de turma e com tempo definido no horário. 

Por outro lado, urge também preparar os jovens, de forma séria e empenhada, para a prevenção de comportamentos de risco e para o debate dos temas que não podem ficar fora da escola. Assim, propomos a criação da disciplina de Educação para a Saúde, que deverá incluir no seu programa a tão necessária Educação Sexual (que por agora continua a depender do empenho de cada Diretor de Turma, com algumas horas anuais distribuídas com pouco critério sobre as várias disciplinas). Mas também sugerimos a introdução de outros saberes na escola importantes para o ganho de autonomia dos alunos, como a culinária ou a segurança rodoviária. 

O objectivo de uma escola de qualidade é o sucesso de todos os seus alunos e este só será real e generalizado se forem adoptadas medidas concretas que promovam realmente a igualdade de oportunidades e a inclusão de todos os alunos, combatendo assim o abandono escolar. Consideramos que as retenções têm contribuído de uma forma decisiva para esta situação. Para acabar com elas, propomos a criação de equipas multidisciplinares nas escolas e o apoio escolar diferenciado em pequenos grupos de trabalho, previstas nos horários dos professores, dedicadas a estratégias que visem a recuperação dos alunos. 

Uma das formas de garantir tempos nos horários dos professores para aquilo que importa é a eliminação ou reformulação radical do atual sistema de aulas de substituição, que na maior parte dos casos se tem revelado uma verdadeira perda de tempo para professores e alunos. 

A escola pública de qualidade deve promover a aquisição de conhecimentos fundamentais por todos os alunos e tememos que a introdução de exames nos diferentes ciclos de ensino agrave o insucesso e abandono escolar. É perigosa a crença de que os exames são a verdadeira medida da qualidade das aprendizagens e que permitem avaliar com rigor os conhecimentos, identificar falhas e apontar soluções para a sua superação. Os exames excluem mais do que incluem, a meritocracia promove o individualismo e transforma as Escolas em fábricas de bons respondedores. 

O percurso educativo do aluno deve fazer parte do projecto de vida do mesmo. Assim, a diferenciação curricular entre o curso geral e o profissional não deve ser apresentada como uma solução da escola para artificialmente reduzir o abandono e corrigir os números do insucesso. Existem experiências positivas da implementação dos cursos profissionais, que se tornaram verdadeiras alternativas no prosseguimento de estudos, formando os alunos para o mercado de trabalho, tornando-os competentes numa determinada área profissional. Estas experiências demonstram que o sucesso depende da integração deste percurso no projecto de vida do aluno e por isso não devem ser anteriores à conclusão da escolaridade obrigatória. Por este motivo consideramos que via profissionalizante deve ser uma oferta formativa do ensino secundário, e não admitimos esta diferenciação curricular nos níveis anteriores de ensino. Por outro lado, o tronco comum do currículo global e regular, até ao 12º ano, deve incluir saberes práticos e profissionais tanto quanto saberes teóricos ou académicos, permitindo ao aluno maior leque de escolha ao nível das disciplinas de opção. 

A qualidade das condições de trabalho dos profissionais não pode ser ignorada. Sendo fundamental a valorização salarial e das carreiras, também é indispensável a promoção do trabalho colaborativo dos professores, e dos meios e condições para que este se realize com proveito. É preciso tempo para encontros, partilha de experiências e até elaboração de estratégias e recursos comuns (seja ao nível de grupo disciplinar ou até inter-departamental). Este tempo deve ser considerado nos horários de trabalho dos professores e na forma como são geridos semanal e anualmente em cada escola/agrupamento.

MEP - Movimento Escola Pública

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Divulgando


Comentário de segunda: um mau e um bom exemplo

1. Soube-se ontem que José Lello, deputado do PS, há vários mandatos, e ex-governante, não declarou ao Tribunal Constitucional, como era sua obrigação legal, uma conta bancária sua no valor de 658 mil euros. Perante a descoberta desta grave omissão, Lello desculpou-se com a sua (alegada) ignorância relativamente ao conteúdo da lei.
Ao longo dos muitos (demasiados) anos em que tem tido (inexplicável) protagonismo, Lello tem sido um exemplo do que não deve ser um político: cultiva persistentemente a má-educação, utiliza recorrentemente uma linguagem de carroceiro, exala arrogância quando intervém, revela má preparação dos assuntos que tinha obrigação de conhecer, faz da política um espectáculo, é insidioso para com os colegas do seu próprio partido, quando estes não pertencem à linha dominante e, acima de tudo, manifesta um dom que nenhum político deveria ter, o dom de sobreviver a todas as lideranças e a quase todas aderir com a mesma convicção... A este rol de «qualidades», Lello acrescentou agora a derradeira «virtude»: a de não cumprir a lei e de justificar esse incumprimento de um modo insultuoso para com a inteligência dos portugueses. Sem pudor, Lello certamente que continuará por mais alguns (longos) anos, com a mesma alegria e a mesma irresponsabilidade, a contribuir para a descredibilização da política portuguesa.

2. Ainda não tinha reparado a sério na deputada Isabel Moreira, eleita como independente pelo PS. Agora pude conhecê-la melhor, através de uma entrevista dada ao Expresso, de sábado último. Gostei de quase tudo o que li, nessa entrevista. E Isabel Moreira tinha, para mim, um handicap terrível: ela foi convidada por Sócrates para ser candidata pelo PS às últimas eleições e... aceitou. Ser convidado por Sócrates é, em si mesmo, um mau sinal, aceitar um convite de Sócrates é, para mim, um péssimo indício e um acto totalmente incompreensível — incompreensível em relação a quem, como parece ser o caso de Isabel Moreira, pretende ter uma postura séria na política. Mas adiante.
Isabel Moreira foi quem tomou a iniciativa de recolher as assinaturas necessárias, entre os deputados da Assembleia da República, para requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva da constitucionalidade de algumas normas (duas) do Orçamento de Estado de 2012. Tomou esta iniciativa contra a vontade da direcção da bancada parlamentar do PS e do próprio Seguro. É a ela a quem se deve, pois, o cumprimento daquilo que deveria ter sido entendido por todos os deputados da oposição como um imperativo político e ético:  submeter a julgamento constitucional as normas orçamentais que manifestamente violam o princípio da proporcionalidade, da igualdade, do direito à retribuição e à segurança social. O que Isabel Moreira diz é lapidar: «Não tendo o PR feito nada, na sua inconsequência habitual, como é que eu, com o poder que tenho, levantaria a cabeça se não o fizesse? É um dever moral. E as normas não dizem respeito às imposições da troika, dizem respeito a escolhas de um Governo selvagem do ponto de vista social.»
Esperemos que a nódoa socratina que Isabel Moreira transporta possa ser progressivamente apagada com mais comportamentos políticos idênticos a este.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Viktoria Mullova & Matthew Barley Ensemble

Pensamentos de domingo

«Para os ricos, a pobreza dos outros é uma lei da natureza.»
Emanuel Wertheimer

«O mundo só pode ser salvo, caso possa ser, pelos insubmissos.»
André Gide

«Transpira e serás salvo.»
Theodore Roosevelt
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

A arte e a realidade: um velho problema

São conhecidas as migrações entre mundos, proporcionadas por representações pictóricas. Uma história chinesa conta uma destas transferências.

Dois homens visitavam um mosteiro conduzidos por um velho monge. As paredes estavam cobertas de frescos de alta qualidade e num destes frescos, no meio de um grupo de personagens feéricos, via-se uma jovem radiosa. Pelos seus longos cabelos soltos adivinhava-se que era ainda donzela, pois naquele tempo, depois do casamento, as mulheres penteavam-se obrigatoriamente com um puxo.
Um dos dois homens deteve-se diante desta pintura e contemplou-a. Pareceu-lhe que o seu corpo perdia todo o peso e que ele se elevava nos ares, como se levado por uma nuvem. Viu-se do outro lado da parede, no fresco, perdido dentro de uma arquitectura desconhecida.
Ali viu uma jovem que se afastava rindo. Seguiu-a, chegou a uma casa de formas novas e a donzela, com um olhar e um gesto, convidou-o a entrar nessa casa. Ali se tornaram imediatamente marido e mulher e viveram tempos de felicidade.
Passados esses tempos (cuja duração não se sabe), vieram as companheiras da jovem e fizeram notar à sua amiga que devia passar a usar o penteado de mulher casada, o puxo. O que ela fez, com ganchos e travessas.
De súbito, fora da casa, ouviram-se passos pesados, uma voz que gritava e ruídos de correntes. A jovem esposa pareceu singularmente assustada e disse ao homem que se escondesse debaixo da cama, sem demora. Apareceu um indivíduo negro e ameaçador, vestido com uma armadura de oiro, que trazia chicotes e correntes. As raparigas juntaram-se à sua volta numa roda e perguntaram-lhe se por acaso algum mortal se tinha insinuado no meio delas.
— Estais todas aí? — perguntou ele.
— Sim, estamos todas aqui.
O novel esposo, escondido debaixo da cama, mal ousava respirar. Ouviu que os passos do terrífico visitante se afastavam, mas de todos os lados parecia ir e vir gente, como quem procura alguma coisa (ou alguém). Estendido, todo torcido num sítio estreito, ele aplicava os ouvidos e os olhos.
Entretanto, nos corredores do mosteiro, o amigo do novo esposo tinha notado o seu desaparecimento. Falou nisso ao velho monge que lhe respondeu:
— Oh, ele foi pregar a lei.
— E para onde?
— Não para muito longe, sem dúvida.
Então o velho monge, dirigindo-se ao fresco disse:
— O que te retém tanto tempo?
Viu-se uma sombra desenhar-se do outro lado da parede, no fresco. Reconheceram a silhueta do desaparecido, que parecia ainda escutar através da parede, e o monge disse-lhe:
— O teu amigo espera-te e impacienta-se.
Então o homem saiu da parede de olhar fixo, as pernas inteiriçadas e a tremer. Disse que, escondido debaixo da cama, tinha ouvido um enorme barulho, semelhante a um trovão, e que tinha saído para saber qual a razão desse barulho.
Os três homens, olhando o fresco, viram então que a jovem radiosa, ainda presente no mesmo lugar, tinha mudado de penteado e trazia agora o puxo de mulher casada.
O homem que regressara do fresco, e cujo corpo parecia sacudido de medo, quis saber porque tinha mudado o penteado. Mas o velho monge respondeu-lhe, com um ligeiro levantar de ombros:
— As visões nascem de quem as contempla. Que explicação posso eu dar-te?
Os visitantes desceram então os degraus do templo e foram-se embora, em silêncio.
In Jean- Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Novas Oportunidades (1)

A Iniciativa Novas Oportunidades foi, no domínio da Educação, a menina dos olhos de Sócrates. As razões que explicam o facto de esta iniciativa ter obtido tão elevada consideração da parte do ex-primeiro-ministro foram, penso eu, as seguintes: 
i) A Iniciativa Novas Oportunidades constituía uma forma rápida e supostamente eficaz de resolver um problema gravíssimo: a falta de formação e de qualificação de uma parte muito significativa dos portugueses; 
ii) A Iniciativa Novas Oportunidades constituía, do ponto de vista estatístico, uma forma rápida e eficaz de nos aproximarmos da média europeia no índices relativos à qualificação da população; 
iii) A Iniciativa Novas Oportunidades constituía uma estratégia que reunia aspectos irresistíveis para Sócrates: conforme o projecto estava delineado, havia quase a garantia de que o investimento teria os primeiros resultados visíveis a breve prazo (três, quatro anos — o que em Educação é um prazo curtíssimo); era um projecto com elevadíssimas potencialidades eleitorais (dar qualificação, num abrir e fechar de olhos, a mais de um milhão de portugueses seria uma fortíssima arma eleitoral); e, por fim, o projecto coadunava-se com o modo de ser e de estar de Sócrates: com pouco esforço, sem sacrifícios de longo prazo, é possível obter o que se pretende (a filosofia de vida do ex-primeiro-ministro).

A reunião de tantos atractivos num só projecto fez da Iniciativa Novas Oportunidades uma espécie de Eldorado da política educativa de Sócrates. E ao mesmo tempo que se idolatrava o novo paradigma educativo, a nível da formação de adultos, que as Novas Oportunidades diziam corporizar, decretava-se a morte do anterior modelo: o ensino recorrente. 
Recordo-me bem, aquando da criação e divulgação pública da Iniciatva Novas Oportunidades, de ter ouvido, na rádio, uma das responsáveis deste projecto. E fiquei muito impressionado. Fiquei impressionado, em primeiro lugar, com a facilidade e com a arrogância com que esta responsável foi capaz de dizer o pior que se podia imaginar sobre os cursos nocturnos do ensino recorrente, ainda, na altura, plenamente em vigor. Reduziu a nada a sua valia, denominou-os de cursos estúpidos, porque completamente desadequados à formação de adultos. Desde os antigos cursos CCL às várias versões de ensino recorrente que se foram sucedendo ao longo de muitos e muitos anos, nada se aproveitava. Estes cursos que formaram milhares de alunos, hoje licenciados e a exercem as mais diversas profissões: advocacia, engenharias, ensino, relações públicas, etc., etc., foram, no discurso daquela responsável, transformados em pó. 
Fiquei impressionado, em segundo lugar, com a ininterrupta torrente de elogios dirigida ao novo modelo de formação de adultos designado de Iniciativa Novas Oportunidades. As virtudes eram múltiplas, óbvias e incontestáveis. As qualidades enumeradas eram tantas e de tamanha valia que só uma conclusão era possível tirar: tinha sido encontrada a fórmula perfeita para se ministrar a educação a adultos — seria agora interessante recuperar esta entrevista, dada à TSF, e confrontar o seu conteúdo com o que a realidade nos tem revelado neste domínio.

Contudo, e independentemente da desonestidade política com que Sócrates se agarrou ao projecto Iniciativa Novas Oportunidades e da desmedida arrogância com que alguns dos seus responsáveis a apresentaram e implementaram, julgo que valeria a pena realizar um estudo sério sobre este projecto: proceder-se à análise dos seus pressupostos educativos e pedagógicos, escrutinar os seus objectivos e avaliar o modo como foi e está a ser concretizado. Muito para além da rasca demagogia política que de todos os lados foi feita sobre esta matéria, a Iniciativa Novas Oportunidades parece-me ser um bom motivo para se debaterem conceitos essenciais sobre a Educação.
Sem pretensão de qualquer ordem, e à medida que o tempo mo possibilitar, procurarei deixar, nas próximas semanas, alguns apontamentos dispersos que fui guardando sobre este assunto.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Quinta da música - Sergei Rachmaninov

Trechos - Hervé Juvin

«Antes de mais, uma constatação: o Ocidente sai da democracia. Da eleição de George W. Bush ao referendo europeu, da criação do delito de opinião à multiplicação das autoridades independentes, como a Halde, cuja missão é mudar o povo, uma vez que o povo não está conforme à ideia que têm os bem pensantes, a pós-democracia está em marcha. A evolução do Partido Socialista Francês, como a do debate político nos Estados Unidos, situa uma evolução que vai do projecto à emoção, das propostas à compaixão, da convicção à sedução. Atenção, pois, ao emprego de palavras que mais ninguém se preocupa em dar o seu sentido primitivo — a democracia foi revolucionária, a invocação da democracia permite às elites existentes proteger as suas poltronas e as suas rendas contra os desordeiros. Em nome da democracia, no seio da União Europeia, o delito de opinião e o dever de memória coexistem alegremente, a censura das ideias, do debate e dos dados é rigorosa, e aqui e ali floresceu a ideia que o perigo do sufrágio popular deveria conduzir à limitação do voto, ou a dispensá-lo. Peter Handke convida-nos a banir a noção de povo, Daniel Cohn-Bendit recusou o sufrágio universal, Pierre Rosanvallon foi além da equivalência ingénua entre a expressão de uma maioria e democracia, e as autoridades administrativas independentes florescem para obrigar o povo a evoluir contra a sua vontade e ditar-lhe o seu bem; em nome, sem dúvida, de uma democracia superior. Por que razão ir votar, quando o resultado do voto não tem de maneira nenhuma qualquer importância? Os media pouco têm a ver com uma saída da democracia que deve tudo à nova heteronomia que os mercados financeiros e o individualismo absoluto que convocam instauram.»
Hervé Juvin
Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Mundo Ocidentalizado, Edições 70.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Às quartas

OS LÁBIOS CERRADOS

Há em Roma, na Sistina,
E com emblemas brilhando,
Um relicário em esmaltina
Cheio de ventas secando.

Ventas de antigos ascetas,
Cónegos do Santo Gral,
Quando as noites eram pretas
E o cantochão sepulcral.

Nessa mística secura,
Pelas manhãs introduzem
Dos Cismas a trampa escura
Que a poeira fina reduzem.

Arthur Rimbaud
(Trad.: Jorge de Sena)

A «futrização» de Portugal

O fenómeno da «futrização» é sintomático do país em que nos estamos a tornar. Este fenómeno, cujo designação também poderia ser feita a partir de outros nomes de futebolistas ou de ex-futebolistas, consiste em eleger como opinion maker nacional qualquer indivíduo que tenha revelado ser jeitoso a dar  chutos numa bola.
A propósito dos mais díspares assuntos, são convocados para opinar indivíduos cuja qualificação consiste exclusivamente em terem feito fintas com uma bola e em a terem enfiado umas tantas vezes na baliza. Se o assunto fosse futebol, ainda poder-se-ia tolerar esta recorrente chamada à «opinação», agora quando os assuntos são política, economia, justiça ou educação não se compreende que se considere especialmente pertinente ir ouvir o que o Futre, ou o Figo, ou o Cristiano, ou qualquer outro indivíduo que apenas revele talento no uso dos pés, têm para dizer. Estes rapazes cumpriram ou estão a cumprir a sua vocação de fazer maravilhas com uma bola e uma chuteiras (e eu até lhes agradeço por isso); estes rapazes são especialistas de uma arte que: a eles dá prazer realizar; a nós dá prazer assistir; a eles dá uma pipa de massa; a nós sai cara como o caraças; mas ponto final, não os convidem para mais nada, muito menos para falar sobre os problemas da nação e do mundo. Se algum destes rapazes alia ao talento que tem nos pés idêntico talento neurológico, óptimo, mas quando assim não é (e raramente é), por favor, poupem-nos de termos de os ouvir a opinar sobre tudo e mais alguma coisa. Já nos chegou o tempo em que os Valentins, os Pinto da Costa, os Vieiras e outros do mesmo género preenchiam quase todos os minutos televisivos, agora não os substituam pelos Futres, pelos Figos ou pelos Cristianos.
Deixem os rapazes em paz, e a nós dêem-nos algum descanso. Crise mais «futrização» é que não.

Para clicar


terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Bonecos de palavra

Quino, Não Me Grite!, Pub. Dom Quixote.

Nacos

«— Mr. Peek — disse eu —, o meu inglês é tão fraco que às vezes cometo erros de estrangeiro. Sei que o senhor é banqueiro. Está a sugerir que vai emprestar dinheiro à amante do meu criado só para que ela compre uma casa, e que fará isso, perdoe-me a franqueza, sem segundas intenções?
Ele olhou-me e soltou uma gargalhada, batendo-me de novo no joelho. Pensei que o riso dele era demasiado estridente e as palmadas demasiado fortes. Já tinha o joelho a arder.
— Está a querer dizer que sou um patife ou um palerma? Nem uma coisa nem outra. Olhe para isto. — Tirou um lápis do bolso, bateu no tejadilho e, quando o cocheiro parou, abriu um caderninho e começou a escrever, ao mesmo tempo que falava enquanto desenhava as letras.
 — O problema da terra em Manhattan é matemático — explicou. — E eu sou um homem com espírito matemático. É o meu passatempo e o meu interesse na vida, e não me estou a referir a aritmética. Já leu os cálculos de Mr. Newton?
— Já ouvi falar.
— Bem, em primeiro lugar, o A mais B. Aritmética. O número de imigrantes para a América aumenta trinta mil pessoas anualmente. Setenta por cento desses imigrantes passam por Nova Iorque.
— Estou a perceber.
— Então percebe depressa demais. Os trabalhadores ficam perto dos empregos, as pessoas com dinheiro saem, para aqui e para ali, para longe da cidade. Consegue ler o que escrevi?
Era o seguinte: h(t) = Xitß.
— A primeira equação — elucidou ele — expressa a quantidade de alojamentos (em logaritmos) como uma função linear dos atributos X da unidade de alojamento i.
"Blá, blá, blá", pensei eu. "Não sei o que isto significa, só sei que estes símbolos estranhos, a matemática e a sua utilização ao serviço de uma profecia me cheiram a franco-maçonaria."
— Podia prever-se o preço, ou seja, Xit, de um lote em Manhattan num dado ano.
Um agricultor a debitar cálculo. São assim os Americanos.
Num momento pensamos que compreendemos o carácter de um homem, e logo a seguir sentimo-nos um palerma estrangeiro.
Ph(t) = δt ßT = 0.
— Para mim, isto é grego — gracejei.
— Ah, sim, mas é mesmo grego —respondeu ele, o autodidacta.
— Seja qual for a equação, não faz sentido emprestar dinheiro a um devedor que quase de certeza não irá pagar.
— Ah, isso é que é falar como um banqueiro! Até parece que estou a ouvir os meus bons amigos que estão ocupados a emprestar dinheiro uns aos outros; mas a sua pintora vai reembolsar-me durante um ano, dois, três anos. Vou lucrar muito com isso. No momento em que ela deixar de pagar, bem, voltamos ao Ph(t) = δt ßT = 0. A terra vale uma fortuna. Tenho uma casa na Sixteenth Street e então recomeço a fazer dinheiro.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Comentário de segunda - políticas e sindicalismos

1. As hesitações e as divisões suscitadas pela iniciativa tomada por alguns deputados de pedirem ao Tribunal Constitucional a fiscalização sucessiva do Orçamento de Estado de 2012 revela bem um certo modo de fazer política — que, desgraçadamente, é o modo dominante —: subalterniza-se a substância das coisas em favor da táctica dos interesses. Neste caso, na designada esquerda política, andou-se a pesar à miligrama as vantagens e as desvantagens desse pedido de fiscalização, atendendo à possibilidade de o Tribunal Constitucional concluir pela constitucionalidade do Orçamento. A argumentação contra a iniciativa é labiríntica e muito ao gosto daqueles que fazem da política um jogo, uma espécie de jogo de xadrez. Neste, as peças manipulam-se em função de uma estratégia própria que permanentemente se adapta às jogadas que o adversário faz e/ou àquelas que se presume que ele possa fazer. E o verdadeiro prazer do jogo reside nessa dialéctica. Mas fazer política não pode ser equiparável a jogar xadrez (e eu gosto de jogar xadrez). A política não se pode fazer à base de jogadas pensadas e fruídas na poltrona. O acto político não é um acto de gozo diletante. Os políticos que assim pensam e agem servem-se da política, nada mais. 
Se na política não imperarem os princípios e as convicções, se estas forem subalternizadas à táctica do que é conjuntural, a prazo, o essencial e o acessório tornam-se equivalentes e o sentido da política desaparece, e as pessoas, que são a sua razão de ser, transformam-se definitivamente em peões.
Se a política não é um jogo de xadrez, é óbvio que o pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade do (vergonhoso) Orçamento de Estado de 2012 deve ser feito, independentemente do resultado que daí advenha.

2. Em Portugal, o sindicalismo chegou a um nível tão baixo que já nada surpreende. Não surpreende que Proença tenha assinado o Acordo com o Governo e as confederações patronais. Não surpreende que Proença diga que altos dirigentes da maioria da CGTP o incentivaram a negociar o acordo. Não surpreende que Proença fale verdade. Não surpreende que Proença minta. Não surpreende que a CGTP negue. Não surpreende que não se acredite na negação da CGTP. 
Quando se chega a este ponto, em que já nada surpreende, isto significa que o nosso sindicalismo está doente. Gravemente doente.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Mahsa Vahdat

Pensamentos de domingo

Ócio, pai de todos os vícios e filho de todas as virtudes.»
Georges Perros

«A ociosidade faz nascer o amor e, uma vez desperto, conserva-o. É a causa e o alimento deste mal delicioso.»
Ovídio

«A apetência para a ociosidade implica um apetite católico.»
Robert Stevenson
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Um problema ontológico
«A história que se segue contava-se na Alemanha nos anos sessenta, nos meios frequentados por  magistrados. Mas deve ter uma origem mais antiga.
Um juiz foi passar férias a casa de um primo, que era lavrador. Ao terceiro dia, o juiz, invadido por um princípio de tédio e vendo o seu primo muito ocupado, propôs-se ajudá-lo.
— Que sabes fazer? — perguntou-lhe o lavrador.
O juiz reflectiu por momentos e não soube dar qualquer resposta satisfatória. O lavrador reflectiu por sua vez e encontrou um trabalho fácil. Levou o juiz a uma arrecadação cujo soalho estava inteiramente coberto de batatas acabadas de arrancar.
— Aqui tens o que vais fazer — disse ele. — Vais separar estas batatas em três categorias: grandes, pequenas e médias. Até logo.
O lavrador partiu e trabalhou todo o dia nos campos. Quando voltou, era quase noite, abriu a porta da arrecadação e viu que as batatas estavam exactamente como as tinha deixado de manhã. O juiz estava no meio da arrecadação com um ar abatido, o rosto coberto de suor, o cabelo em desalinho. Tinha na mão uma batata.
— Que se passou? — perguntou o lavrador.
O juiz estendeu-lhe a batata e perguntou-lhe com a voz alquebrada:
— Esta é grande, pequena ou média?»
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Um ponto da situação

No domínio da Educação, este Governo partia de uma situação privilegiada: o legado de Sócrates e Rodrigues era tão mau que se tornava praticamente impossível fazer pior. Na realidade, uma certa bonomia com que têm sido recebidas algumas das primeiras medidas do novo ministro justifica-se porque, tendo presente os seis anos anteriores, ainda há quem esteja a agradecer aos deuses a mudança de equipa no Ministério da Educação. Todavia, a memória do péssimo não pode constituir razão para a presente aceitação do medíocre. Mas é isto que tem acontecido.

O que foi feito com a avaliação dos professores constituiu a primeira medida medíocre deste ministro. Um inqualificável modelo de (pseudo) avaliação deu lugar a um medíocre modelo de (pseudo) avaliação — verdadeiramente, e em rigor, ainda não deu lugar a nada, porque até agora nada de oficial foi publicado no Diário da República. O que se fez foi transformar um monstro (modelo anterior) num rato (modelo anunciado); o que se fez foi dividir para melhor reinar (ao isentar-se, na prática, os professores dos últimos escalões da avaliação); o que se fez foi proporcionar um ano de paragem (o actual) e empurrar o problema lá mais para a frente.
Dever-se-ia perguntar: com o novo modelo vai haver uma avaliação que contribua para a melhoria das praticas lectivas, de modo a que haja melhor ensino e melhores aprendizagens? Não vai, seguramente que não vai haver nada disso. Possivelmente (digo possivelmente porque ainda falta saber o que vai este ministro fazer com os designados Padrões do Desempenho...) haverá menos estupidez nos processos (pseudo) avaliativos, mas a avaliação encenada e sem a mínima credibilidade prosseguirá nas nossas escolas, como até hoje tem acontecido.

O que neste momento está a ser feito com a revisão curricular é exemplo de mais uma medida medíocre de Nuno Crato. Se uma revisão curricular para existir tem de ter fundamentos que a justifiquem, então, esta revisão não existe, é um nada absoluto. Uma amena conversa de café entre amigos, munidos de lápis e de duas folhas de papel A4, produziria com facilidade esta revisão curricular: umas contas de mercearia para redistribuir os tempos lectivos pelas disciplinas e uma grande dose de senso comum para alinhavar meia dúzia de banalidades.

Duas medidas estruturais que era urgente serem tomadas acabaram por redundar em duas medidas medíocres. Avulsamente, foram sendo tomadas outras medidas, umas más, outras assim-assim, outras acertadas, mas tudo embrulhado em muito amadorismo e falta de preparação — um exemplo para cada caso, respectivamente: aumento do número de alunos por turma; fim dos prémios financeiros aos melhores alunos (uma boa medida feita da pior forma); revogação do documento designado de Currículo Nacional do Ensino Básico — Competências Essenciais. Competências Gerais.

Agora, aguarda-se o que vai ser feito em outros dois domínios estruturais: Gestão das Escolas e Novas Oportunidades. Provavelmente vai acontecer o que tem acontecido até aqui: ou se mexe no acessório para, no essencial, se deixar tudo na mesma, ou se mexe desconexamente para se deixar não se sabe bem o quê.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Quinta da música - Jean-Baptiste Lully

Trechos - Hervé Juvin

«Fazem girar a máquina do crescimento ilimitado e se eles se mobilizam sem demoras e sem tréguas, é pela sua própria salvação de seres económicos, sem outra razão de ser do que a sua contribuição para o crescimento, sem outra justificação para as suas existências minúsculas do que o valor acrescentado, primeiros seres vivos cujo crescimento é o oxigénio e cujo trabalho é a respiração. Como o burro que faz girar a roda, como os escravos de olhos estoirados acorrentados ao moinho das villas romanas, continuam sem ver o círculo daqueles cuja cultura acabou por separá-los para sempre do que teria podido, um dia talvez, torná-los homens. E acreditam, sem dúvida, que no fim do caminho invisível que seguem, as correntes caídas, a roda parada, a corrida feliz começará e, sem dúvida, que esperam, sem acreditar, que um dia qualquer coisa se passará verdadeiramente, como sangue, como vitória e como morte — na imensa paz que o início estende em cada coisa.»
Hervé Juvin
Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Para clicar


Às quartas

QUANDO CHEGAR A HORA

Quando chegar a hora decisiva,
Procurem-me nas dunas, dividido
Entre o mar e a terra.
Marujo e cavador, tanto me quer a espuma
Como a folhagem.

Mas se a grande aventura que se espera
Tiver no mesmo fruto sal e seiva,
Venham roubar-me às ondas que namoro
E à sombra das montanhas que me cobre
Com ternuras de amante.
Levem-me nu à festa do combate
Que vai unir os mares e os continentes.
Marujo e cavador, terei o mar inteiro
Das esperanças humanas,
E a terra universal
Da redonda e alada perfeição.

Miguel Torga

A flexibilidade ambicionada

Parece ser consensual considerar que o conteúdo do novo acordo de concertação social, assinado hoje pelo Governo, pelas confederações patronais e pela UGT, é a concretização de todos os desejos que os empresários portugueses reclamavam há já longos anos. Dos comentários que pude ler, desde os sectores designados de direita até aos designados de esquerda, esta conclusão é unânime — cheguei mesmo a ouvir um professor universitário, especialista em direito do trabalho, afirmar que a legislação laboral do tempo de Salazar era mais harmoniosa (entre direitos dos empregadores e dos empregados) do que a agora acordada. Não sei qual é o rigor desta afirmação, mas, para o caso, não importa.
Na verdade, este acordo reduziu praticamente a nada a segurança (do trabalhador) e elevou a flexibilidade (do despedimento) a níveis nunca antes atingidos, isto é, fez da designada «Flexisegurança» um arremedo de segurança e um potentado de flexibilidade. Em nome da defesa da produtividade e da competitividade, atribuíram-se todos os poderes e todos os direitos ao patronato. Todavia, a realidade tem mostrado, à exaustão, que o problema da produtividade e da competitividade do nosso país não estava, nem nunca esteve, na existência de direitos a mais para quem trabalha, o problema do nosso país está nas elites incompetentes que o dirigem, quer a nível político, quer a nível económico e empresarial. Os trabalhadores portugueses, cá dentro e lá fora, com os mais diversos géneros de legislação laboral, têm obtido iguais ou melhores resultados do que muitos trabalhadores estrangeiros, os trabalhadores portugueses são tão produtivos, são tão competitivos como outro trabalhador de qualquer nacionalidade.
O problema não está nos trabalhadores, o problema está em quem os dirige. E a verdade é que temos uma classe de patrões genericamente inculta, ignorante, grosseira, gananciosa e incompetente. De vistas curtas, muitos patrões portugueses desbaratam os rápidos lucros que obtêm na compra de lustrosos Ferraris ou na aquisição da segunda ou da terceira casa, descapitalizam as empresas, não planificam o futuro. Carroceiros como muitos são, não se preocupam com as condições de trabalho dos seus profissionais, não investem na sua formação, pagam-lhes mal e tratam-nos como seres-objectos e não como pessoas.
Este não é um retrato do séc.XIX, é uma foto digital do nosso séc.XXI e não tipifica apenas muito do pequeno e médio patronato português, existem, no nosso país, grandes empresas que impõem inaceitáveis condições de trabalho e de vencimento aos seus «colaboradores» (termo na moda, por razões algumas delas bem perversas).
Este acordo de concertação social sustenta-se numa proposição mentirosa: a legislação laboral era a causa da nossa falta de produtividade. Não é verdade. A causa está, mesmo dentro do modelo económico vigente, na mediocridade das nossas elites: naquelas que elegemos e naquelas que têm o poder económico e  financeiro.
Enquanto estas elites prevalecerem, nada de importante mudará em Portugal.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Bonecos (sem palavra)

Quino, Bem, Obrigado. E Você?, Pub. Dom Quixote.

Nacos

«Escapei de ir apanhar ar nessa ocasião, mas na manhã seguinte o médico conduziu-me ao tombadilho, onde ouvi de novo o grito de Camas à coberta; desta vez olhei para baixo e vi os soldados erguerem uma grande escotilha crivada de pregos e, dessa bocarra, sair, vinda do bojo do barco, uma infeliz raça de monstros e trogloditas com o mais pavoroso fedor. Com repugnância e fascínio, observei como esses seres faziam uma trouxa com a roupa de cama e a colocavam nas redes do cesto da gávea, e os rapazes... nunca se viam rapazes daqueles, com os olhos negros como os dos caranguejos, mirrados como uvas pretas rejeitadas pelo mundo.
Quando estavam todos reunidos, com as correntes a tilintar, bem comprimidos no tombadilho superior e rodeados pelos soldados com as suas armas e baionetas, o reverendo Potter fez as orações da manhã, o que levou vários prisioneiros, homens e mulheres, a ajoelhar-se, produzindo assim o mais pavoroso ruído de correntes a entrechocarem-se e a caírem com força na coberta da proa.Quando a seguir saímos para apanhar ar, tive medo não só do mar, mas desse enxame fervilhante, venenoso e negro, desses australianos, no ninho por baixo dos pés. Nesse dia frio e límpido mantinham-nos lá em baixo para sua própria segurança, mas eu ouvia o clamor e os gritos terríveis que chegavam lá acima sempre que a água invadia a coberta da proa. Não fazia ideia de quem eram, só sabia que aquelas criaturas assustadoras estavam dominadas pelo terror de se afogarem.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Comentário de segunda: o Carnaval veio mais cedo

No calendário, o Carnaval ainda não chegou, mas, em Portugal, já é vivido intensamente.
Ver Passos Coelho afirmar, enquanto afivelava um ar de gravidade, que está a cumprir o que prometeu, isto é, que não está a dar emprego aos amigos, só pode ser entendido como um número de Carnaval.
Ouvir Eduardo Catroga falar é, invariavelmente, um momento carnavalesco.
Verificar que o ministro das Finanças cometeu um erro de palmatória na elaboração do Orçamento do Estado para 2012 — erro que implica que o défice previsto já tenha subido para 5,4%, e ainda o Orçamento mal começou a ser executado —, só pode ser compreendido como uma partida de Carnaval.
Escutar que aquela meia hora de trabalho a mais (até há pouco tempo considerada pelo Governo como uma medida imprescindível para relançar a economia) já não vai avançar; e que o anunciado fim das «pontes» (outra medida também anunciada pelo ministro da Economia como essencial para pôr o país a trabalhar mais) também já não vai para a frente, só pode ter uma interpretação: quando o ministro dizia que a nossa salvação residia em tais medidas, ele estava apenas a «carnavalar» connosco.
Ler que o secretário de Estado da Segurança Social deu ordem para que 117 mil cidadãos devolvam, em 30 dias, os 570 milhões de euros que, alegadamente, o Estado não lhes deveria ter abonado, só pode ser visto como um pretexto de ensaio do desfile carnavalesco.
Saber que Jardim pretende assumir agora o papel do governante responsável que não quer assinar acordos por saber que não os pode cumprir, só pode ser visto como um número do Carnaval da Madeira, que Jardim, até hoje, ainda não tinha tentado.
Este ano, no que diz respeito a carnavais, vamos pedir meças ao Brasil...

domingo, 15 de janeiro de 2012

Warne Marsh Quartet

Pensamentos de domingo

«Tudo é grande no templo do favor excepto as portas, que são tão baixas, que por elas apenas se pode entrar de rastos.»
(Duque de) Lévis

«Quem retribui com favor pensa no futuro: no dia da sua queda encontrará apoio.»
Textos bíblicos

«Um jantar lubrifica os negócios.»
Walter Scott
In Paulo Neves sa Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

O problema do Outro

Um mestre zen e o seu discípulo seguiam por um caminho, a meio da noite. O mestre tinha uma lanterna.
— Mestre — perguntou o discípulo — é verdade que podes ver no escuro?
— Sim, é verdade.
— Então para que é a lanterna?
— Para que os outros não choquem comigo.
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema

Professores pedem explicações a Nuno Crato



O agradecimento ao Miguel Reis

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão -10

Ao longo das últimas semanas, procurei apresentar as razões que me levam a considerar o actual modelo de gestão das escolas, criado por Sócrates e Rodrigues, como desastroso.
Para concluir, proponho que se procure responder a uma pergunta: que ganharam as escolas, que ganharam os alunos, os professores, os funcionários, os encarregados de educação com a introdução da nova forma de gerir a escola portuguesa?
Não vislumbro que haja algo de relevante que anteriormente já se fizesse bem e que, por via do novo modelo, tenha passado a fazer-se melhor e não encontro situações negativas que, por via do novo modelo, tenham sido ultrapassadas. Por outro lado, vejo que, por via do novo modelo, há situações que pioraram objectivamente.
Quer do ponto de vista da qualidade do trabalho produzido, quer do ponto de vista do funcionamento, nenhum dos actuais órgãos (conselho geral, director, conselho pedagógico, departamentos curriculares) alcança melhor avaliação do que os órgãos dos modelos anteriores (assembleia de escola/inexistência de órgão similar, conselho executivo/directivo, conselho pedagógico, grupos disciplinares). Todos eles, na minha opinião, revelam mais aspectos negativos do que os seus predecessores, pelas razões que fui apontado nos textos anteriores.
O que justifica então a defesa e a manutenção deste modelo? A única justificação que encontro é de natureza ideológica. Só a crença — suscitada por inexpugnáveis razões, que a experiência não confirma — de que os melhores modelos de gestão escolar são aqueles que assentam na nomeação e na (artificial) autoridade individual é que explica a defesa deste modelo. Isto ou então uma manifesta dificuldade de se conviver com o escrutínio colectivo e com o método do reconhecimento da autoridade pelos pares. 
Como os resultados não comprovam que este modelo seja melhor do que os anteriores, a defesa da sua manutenção só pode ter uma base ideológica, no sentido pejorativo do termo: a partir de uma representação do mundo gerada por interesses individuais e/ou de grupo, procura-se impor, nos diferentes níveis da realidade, modelos organizacionais consonantes com essa representação e que servem para consolidar esses interesses individuais e/ou de grupo. No caso da Educação, privilegia-se essa representação do mundo e a defesa desses interesses em detrimento do desenvolvimento da Educação e do melhor funcionamento das escolas.

O debate desta matéria pode ter interesse se não se desenvolver em torno de clichés, mas a partir de um exame crítico rigoroso do que a realidade tem revelado. O confronto com a realidade é decisivo. É preciso é não ter medo de o fazer.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Quinta da música - Nicola Porpora

Trechos - Hervé Juvin

«É o projecto implícito do totalitarismo que se estende sob a cobertura do cosmopolitismo dominante que garante a apreensão do indivíduo despido de tudo o que fazia dele pessoa pela ideologia liberal apresentada, na realidade pelos interesses geopolíticos bem reais das potências emissoras de sistemas, de representações e dos códigos da modernidade em vigor. Nove mil milhões de indivíduos semelhantes, persuadidos da sua individualidade, incitados a fazer valer os seus direitos, convencidos de que se tornaram livres ao fugir de todas as determinações, ao recusar as suas origens, seduzidos pelo seu novo ser económico que acaba por confundir neles o produtor e o consumidor na mesma utilidade global. Nove mil milhões de indivíduos conformes, "processados" pela torrente permanente de informações, de representações e de experiências, vivendo uma condição inédita que é necessário chamar humana, à falta de outra palavra para a nomear.»
Hervé Juvin
Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Às quartas

ANO

Benéficas agora, ainda tranquilas
As cepas, as uvas
A vinha do enforcado. O Outro
É ainda o desconhecido, o Outro estava, está empre
Fechado neste céu opaco
Onde a luz avinhada
É cada vez mais frouxa
 e o grito do tentilhão já é só gelo.

Aqui, nestes trabalhos calmos,
Claros, aqui prossegue e arde
O todo que não tenho
Mas tenho que perder.
Os tempos que se foram,
O tempo que aí vem
Arremetem —
Sem saber como, cheguei aqui,
Espero, ardo, avanço por
Dias e dias inacessíveis
E torno-me sem fim o que já sou,
A repousar nesta luz vazia.

Mario Luzi
(Trad.: Ernesto Sampaio)

Os problemas da ideologia

A ideologia tem vários problemas, desde logo o da sua definição. Afastado há muito do seu sentido original (uma ciência das ideias), o termo ideologia foi adquirindo diferentes significados e, ao longo do tempo, foi sendo utilizado, consoante os contextos, quer com uma conotação valorativa (enquanto sistema de ideias que sustenta convicções pessoais no domínio político, económico, social, etc.), quer com uma conotação pejorativa (enquanto conjunto de crenças dogmáticas que reflecte interesses pessoais e/ou de grupo/classe). 
Apesar da sua morte já ter sido várias vezes decretada, o facto é que a ideologia, seja num sentido ou no outro, não morreu — pelo contrário, alguma até rejuvenesceu. O problema (recorrente) é que há um determinado tipo de ideologia que pretende apresentar-se ao mundo como não ideológica. Hoje em dia, essa rejuvenescida ideologia surge travestida com a ponderosa capa da «inevitabilidade», ou da «exigência do futuro», ou do «rumo irreversível da história», ou de outros clichés não menos assertivos e sugestivos, mas nunca como ideologia.
Ora, esta circunstância constitui mais um problema, porque: ou os protagonistas desta ideologia «não ideológica» pretendem deliberadamente esconder a natureza ideológica do seu discurso e dos seus argumentos, o que, do ponto de vista da honestidade intelectual, é inaceitável, porque tem um intuito enganador; ou os protagonistas desta ideologia «não ideológica» não têm realmente consciência da natureza ideológica daquilo que defendem, o que, intelectualmente, revela debilidade, e, socialmente, pode redundar em fanatismo acéfalo.
Na história, as evidências «não ideológicas» nunca deram bons resultados.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Para clicar


Nacos

«Em primeiro lugar, havia o Dr. Bingham, um indivíduo frágil e bem-parecido do Lincolnshire, cujo lábio leporino por vezes se via sob o ninho do bigode pálido. Quando digo às vezes, refiro-me às ocasiões em que ele espreitava para dentro da minha boca aberta à procura de uma "língua com mau aspecto". O lábio leporino não tem a menor importância, e eu nem deveria tê-lo mencionado.
O Dr. Bingham não podia adivinhar a tristeza que me ia no coração. A minha vontade era morrer, mas ele ministrou-me um emético e, depois de eu ter vomitado as tripas — o que ele assegurara iria acontecer —, deu-me um purgante cor-de-laranja-vivo que tentei cuspir.
Ele era boa pessoa, estou certo disso, mas quando todo aquele martírio chegou ao fim, eu era um animalzinho indefeso, a desfazer-se em caca, e o comandante tinha recebido ordem do almirante do porto para levantar âncora. Através de uma cortina cinzenta de náusea e de dores de estômago, deite-me na rede de dormir e fiquei a ouvir o distinto homem do Yorkshire a gritar que não havia porra de vento e que não percebia porque tinha de abandonar o porto para que toda a gente desatasse a vomitar. Pediu desculpa por dizer porra (pelo que fiquei a saber que havia uma mulher connosco). Senti a quilha avançar a raspar pelo banco de areia e, ao mesmo tempo, o ruído de qualquer coisa a arrastar lá em cima.
Enchi o bacio. Dormi e acordei com os sinos de todos os quartos. O Samarand seguia a baloiçar, de velas desfraldadas, como roupa a secar numa corda. Eu vomitava, cagava e chorava. Não tinha pernas de marinheiro, mas precisava de chegar à retrete para despejar o bacio. Acordei de madrugada e dei com uma desconhecida a cuidar de mim. Era baixa, roliça e bonitinha, mas eu estava demasiado mal para sentir vergonha quando ela me limpou o rabo.
Mrs. Bingham, esposa do Dr. Bingham, tal como o marido, falava com a pronúncia do Lincolnshire. Permaneci deitado na rede. Ela deitou-se no beliche e acariciou-me a parte interior do pulso até eu pensar que ia enlouquecer.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.

Bonecos de palavra

Quino, Bem, Obrigado. E Você?, Pub. Dom Quixote.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Comentário de segunda

Talvez tenha sido distracção minha, mas fiquei com a impressão de que foi dada muito pouca importância a uma relevantíssima notícia que ouvi na rádio, a meio da semana passada: um estudo da Comissão Europeia analisou as medidas tomadas entre 2009 e Junho de 2011 pelos seis países mais atingidos pela crise e chegou à conclusão de que Portugal é o único onde as medidas de austeridade exigiram um maior esforço financeiro aos pobres do que aos ricos. 
Como dizia o poeta, esta é a espantosa realidade das coisas. Portugal, na altura governado por um partido designado de socialista e por um primeiro-ministro que se afirmava o campeão do Estado Social e da solidariedade com os mais desfavorecidos, foi o país que mais poupou os ricos e mais castigou os pobres nas medidas adoptadas para combater a crise. Segundo o estudo, «Portugal foi o único país com uma distribuição claramente regressiva», o que significa que aos pobres foi exigido proporcionalmente muito mais do que foi exigido aos ricos na contribuição para o reequilíbrio das contas públicas.
Parece que já éramos o país da União Europeia em que existia a maior desigualdade entre ricos e pobres, mas, mesmo assim, Sócrates e o PS optaram por aprofundar essa desigualdade, elevando o nosso índice de pobreza a um nível moralmente obsceno.
Seria oportuno solicitar ao ex-primeiro-ministro um comentário aos resultados deste estudo da Comissão Europeia.
E será oportuno que a Comissão Europeia complete esse estudo com a análise do que se passou no segundo semestre de 2011, cuja governação já foi da responsabilidade do PSD e do CDS. Só para ficarmos completamente esclarecidos.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Frank Foster Quintet

Pensamentos de domingo

«Lógica: a arte de pensar e de raciocinar em estrita conformidade com as limitações e incapacidades da incompreensão humana.»
Ambrose Bierce

«Todos nós nascemos louco. Alguns permanecem.»
Samuel Beckett

«Divertimo-nos com os doidos na hipótese de que não o somos.»
Marquês Maricá
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora

sábado, 7 de janeiro de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

A realidade é o que a nossa memória quiser 
Um história coreana sobre a amnésia.
Um dia, depois de uma longa e penosa caminhada, um amnésico viu um ribeiro. Despiu a roupa para se atirar à água límpida e pendurou-a numa árvore.
Ao sair da água, inteiramente nu, viu a roupa e disse:
— Olha! Alguém se esqueceu da roupa e do chapéu, vou usá-los!
Enfiou a roupa, pôs o chapéu, calçou os sapatos e foi-se embora todo
contente.
Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão -9

Depois de ter deixado algumas notas sobre os órgãos conselho geral e director, deixo agora alguns apontamentos sobre o órgão conselho pedagógico.

1. Até Sócrates e Rodrigues, o conselho pedagógico era constituído, maioritariamente ou na totalidade, por professores eleitos pelos pares (ex.: delegados de grupo/coordenadores de departamento, coordenadores de directores de turma). A partir de Sócrates e de Rodrigues, os membros do conselho pedagógico passaram a ser todos nomeados pelo director. Até Sócrates e Rodrigues, os conselheiros pedagógicos representavam quem os elegia e, deste modo, eram legítimos porta-vozes dos pareceres pedagógicos e científicos dos seus colegas. A partir de Sócrates e de Rodrigues, os membros do conselho pedagógico deixaram de representar quem quer que seja, pois não têm legitimidade para isso, e passaram a ser porta-vozes do director — precisamente aquele que não necessita de porta-voz, porque tem o poder de fazer chegar a sua voz onde e quando quiser. 
Esta alteração radical é ilustrativa. Mais uma vez, devido a um provinciano fascínio pelo modelo de gestão empresarial optou-se pela sua mimetização. As ideologias híbridas, que resultam de construções superficiais e de um desconexo amontoado de ideias — muitas vezes contraditórias entre si e isentas de escrutínio rigoroso —, produzem normalmente resultados desastrosos. 
A ideia de que um mandante rodeado de yes men constitui a forma mais eficaz de gerir uma escola revela uma noção absolutamente errada de escola e uma concepção autoritária de gestão. Pensar que uma empresa — que visa o lucro e está ao serviço de um patrão ou de um grupo de accionistas — e uma escola — que visa educar e está ao serviço de uma comunidade — se devem gerir do mesmo modo é empedernimento ideológico ou limitação intelectual.
Uma escola nada ganha em ter uma cadeia de comando rigidamente hierarquizada; nada ganha em afunilar, em restringir, o debate de ideias; nada ganha com a criação de mecanismos de esfriamento relacional; nada ganha se o seu desenvolvimento se fizer à imagem e semelhança de um só protagonista. 
Para o contínuo desenvolvimento da qualidade do ensino e das aprendizagens é fundamental que os professores se constituam e se sintam numa comunidade de trabalho, onde se cultive o trabalho de equipa e onde aqueles que assumem funções de coordenação o fazem por reconhecimento dos seus pares. O dinamismo e o bom ambiente de uma escola dependem em muito desta ecologia.
Com a mudança no processo de formação do conselho pedagógico não só se rompeu este proficiente equilíbrio como se criaram as condições para um significativo abaixamento do nível médio da sua composição. Actualmente, em muitas escolas, os conselhos pedagógicos são vistos como uma reunião de amigos do director que se juntam para dar cobertura aos seus desejos. O conselho pedagógico perdeu reconhecimento e consequentemente autoridade.

2. Até Sócrates e Rodrigues, existiam cerca de dezena e meia (dependia da escola) de grupos disciplinares representados no conselho pedagógico pelos respectivos delegados eleitos. Depois de Sócrates e Rodrigues, passaram a existir quatro departamentos — onde, do ponto de vista epistemológico, se amontoam grupos disciplinares e, do ponto de vista organizacional, se amontoam  professores —, cujos coordenadores são escolhidos pelo director.
Não conheço medida tão desastrada e tão mal fundamentada como esta. Não há justificação nem pedagógica nem científica nem organizacional para esta esdrúxula opção. Com isto, nada melhorou e tudo piorou.
Departamentos com quarenta, cinquenta ou sessenta professores pura e simplesmente não podem reunir. Não podem reunir porque não se fazem reuniões de trabalho pedagógico e/ou científico com sessenta professores e porque, em alguma escolas, nem sequer existem salas com as devidas condições para albergar tanta gente em reunião de trabalho. Na prática, resulta que, nas maiores escolas, os departamentos raramente ou nunca reúnem. Reúnem, sim, os grupos disciplinares, como acontecia antigamente. Isto significa que os departamentos não têm existência real, têm apenas existência nominal. Mas o caricato é que esta inexistência real tem direito a um coordenador, e esse coordenador tem assento no conselho pedagógico. Até hoje, ainda não se conseguiu perceber muito bem o que é que o coordenador de departamento coordena: cientificamente, nada pode coordenar, porque, para além do domínio restrito do seu grupo disciplinar, não tem competência para coordenar mais nada; pedagogicamente, também nada coordena porque, para além do departamento não ter condições para reunir, existe uma objectiva limitação na possibilidade dessa coordenação (é o caso de um professor de artes visuais pretender coordenar pedagogicamente os professores de educação física, ou o inverso); organizacionalmente, criou-se uma aberração: os grupos disciplinares continuam a trabalhar como trabalhavam antigamente, mas deixaram de se fazer ouvir no conselho pedagógico ou, se se fazem ouvir, é por interposta pessoa (o coordenador), que cientificamente é incompetente para o fazer e pedagogicamente não tem condições para realizar essa função. Acresce que, no meio desta barafunda, ainda teve de ser criada mais uma estrutura intermédia, em que o coordenador reúne (quando reúne) com os delegados de cada grupo disciplinar.
A criação dos quatro departamentos foi mais um exemplo da irresponsabilidade e da incompetência de Sócrates e de Rodrigues. Curiosamente, consta que o actual Governo vai dar continuidade a este cancro organizacional.

Continua na próxima semana.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Quinta da música - Takemitsu

Trechos - Hervé Juvin

«Vivemos um momento particular do projecto liberal, tal como encontra plenamente a sua expressão no século XIX. Universalização do pensamento pela acção, tal como a prática da antinomia, da antítese e dos limites que fizeram o pensamento europeu, longe, por exemplo, do pensamento de continuidade chinês. Reconciliação da paixão e do interesse em nome da paixão do interesse económico, o único nobre, respeitável, venerável. Desligação do indivíduo face ao colectivo, é isto mesmo que o constitui e torna efectivos os direitos em que se baseia. E sobretudo, concentração da cultura no que permite a actividade, a alimentação, a ajuda, o desenvolvimento. O mundo é convocado para a sua utilidade. Nada poderá escapar, nem terra, nem vegetal, nem animal, tudo o que está vivo, corre, cresce, respira no mundo é convocado ao tribunal da sua utilidade económica, pesada, medida e julgada. Sedativos, bebidas com pouco álcool e divertimento, a cultura participa com ligeireza de um mundo muito pesado... Mergulhar logo de manhã numa história alegre, e os minutos nos transportes públicos parecem mais curtos; folhear ao almoço uma narrativa de viagens promete que noutro lugar uma outra coisa é possível, que torna a condição do homem urbano suportável, que dá ao assalariado a dignidade de um exílio interior e uma partida possível — evidentemente tão impossível como interdita, mas o essencial é que a cultura dá a representação. E sofrer com o bombardeamento de um filme de acção, sem retirada e sem tréguas, não é viver por procuração o herói, o santo ou o chefe que nunca seremos, para os quais já não há lugar em parte nenhuma — a não ser nos cemitérios?» 
                                                                                                                             Hervé Juvin
                                                                                Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, Edições 70.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Às quartas


Dispo-te lentamente, beijo a beijo.
Este botão, esse colchete, aquela fita,
uma pequena fivela, uma ilhó diminuta,
a suavíssima seda que resvala, as rendas
em cuja nuvem crespa até dormito
moroso, prolongado o termo
do beijo, buscando as mais suaves
regiões, as profundas fontes. E de súbito
detenho-me,
e olho-te nua, plena, bela, minha,
forma total que o amor criou no sonho,
estátua levantada por minhas mãos, meus beijos.

Isaac Felipe Azofeija
(Trad.: José Bento)

Uma revisão inédita (3)

Notas finais sobre a inédita revisão da estrutura curricular em curso.

1. Como vimos, a discussão pública sobre a proposta de revisão curricular que o ministro da Educação anunciou está destinada a ser uma aparência de discussão. De facto, não é possível debater uma proposta sem se saber os fundamentos dessa proposta. Não é possível debater se determinado número de horas lectivas é o número adequado para determinada disciplina, se ainda não estão definidas as metas de aprendizagens nem os novos programas. 

2. Não é possível debater o anunciado «reforço da aprendizagem nas disciplinas essenciais», se não se explica por que razão determinada disciplina é considerada essencial e outra não o é.

3. Não é possível debater a «substituição da disciplina de Educação Visual e Tecnológica pelas disciplinas de Educação Visual e de Educação Tecnológica, no 2.º ciclo», se nada é apresentado como justificação para a introdução desta alteração.

4. Não é possível debater a «antecipação da aprendizagem das tecnologias de informação e comunicação», se não nos é fornecido nenhum elemento que nos permita avaliar se essa antecipação é aconselhável ou não.

5. Não é possível debater a «aposta no conhecimento estruturante, mantendo o reforço da Língua Portuguesa e da Matemática», se primeiro não se esclarece o que se entende por conhecimento estruturante e conhecimento instrumental, e estrutural porquê e para quê.

6. Não é possível debater a «eliminação do desdobramento em Ciências da Natureza, no 2.º ciclo, tendo em conta que a actividade experimental a este nível pode ser efectuada com toda a turma», se não se explica por que razão, do ponto de vista pedagógico, a actividade experimental pode, de repente, passar a ser efectuada com toda a turma.

7. Não é possível debater a «aposta no conhecimento científico através do reforço de horas de ensino nas ciências experimentais no 3.º ciclo do Ensino Básico», se não se fundamenta que critérios foram utilizados para realizar esse reforço.

8. Não é possível debater a «alteração do modelo de desdobramento de aulas nas ciências experimentais do 3.º ciclo, através de uma alternância entre as disciplinas de Ciências Naturais e de Físico-Química», se não sabemos, do ponto de vista pedagógico, em que se fundamenta esta alteração.

9. Não é possível debater «a redução do número de disciplinas de opção anual no final do Ensino Secundário», se não soubermos por que razão essa redução deve ser feita.

10. Não é possível debater o anunciado «maior rigor na avaliação, através, nomeadamente, da introdução de provas finais no 6.º ano e do estabelecimento de um regime de precedências entre o Ensino Básico e o Ensino Secundário», se não se explica qual é a relação entre «maior rigor» e a «realização de exames» — tirando o «bitaite» de café que pensa que sim, na realidade, não existe nenhuma relação mecânica entre «maior rigor» e «realização de exames»; e se não se explica que regime de precedências vai ser estabelecido entre o Ensino Básico e o Secundário.

Estas são algumas das razões que, na minha opinião, fazem desta proposta de revisão curricular um caso inédito e um caso de estudo, e que inviabilizam qualquer debate público sério e profícuo sobre o conteúdo da mesma. 
Pago um doce a quem o conseguir fazer.