sábado, 19 de maio de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

Um conto indiano de origem búdica.

Conta-se o imenso espanto que atingiu o rei Asoka quando viu uma mulher fazer o Ganges subir para a sua nascente com um simples gesto. Espanto esse que chegou aos limites quando lhe explicaram que aquela mulher, já idosa, era uma prostituta muito conhecida da cidade de Pataliputra.
Chamou-a, falou-lhe durante muito tempo no meio do alarido das vozes de todos os sábios da corte que comentavam aquele acontecimento de monta. Uns citavam textos agrados, outros procuravam outros exemplos, outros ainda punham em dúvida a realidade do portento e falavam de alucinação.
A velha prostituta de Pataliputra reconheceu a realidade dos factos. Sim, disse ela, sou capaz de uma acção verdadeira quando o desejo. Tenho poder sobre as coisas. Posso arrancar árvores e fazê-las girar no ar, posso virar montanhas de pernas para o ar e com elas os habitantes.
Dirigindo-se ao rei de mão estendida, disse ainda:
— Posso mesmo levantar-te do teu trono, atirar-te ao ar, precipitar-te nos abismos.
O rei, agitado por frémitos de medo — pois tinha visto com os seus próprios olhos o Ganges subir para a nascente — disse à prostituta:
— Mas de onde vem esse poder? O que é que te permite tais acções verdadeiras?
— Conheci muitos homens — respondeu a prostituta de Pataliputra — soldados, camponeses, mendigos, ladrões e até príncipes. Mas não estabeleci nenhuma diferença entre eles. A todos, a despeito das suas condições muito diferentes, concedi os mesmos favores. Nunca manifestei servilismo nem desdém. É esse o segredo do meu poder.
Baixou a mão que estendia a Asoka e retirou-se. Os sábios calaram-se à sua passagem, agachados no chão, e o rei Asoka, que tinha fama de ser o melhor dos reis, pensava no longo caminho que ainda tinha de percorrer.
Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).