sábado, 28 de janeiro de 2012

Ao sábado: momento quase filosófico

A arte e a realidade: um velho problema

São conhecidas as migrações entre mundos, proporcionadas por representações pictóricas. Uma história chinesa conta uma destas transferências.

Dois homens visitavam um mosteiro conduzidos por um velho monge. As paredes estavam cobertas de frescos de alta qualidade e num destes frescos, no meio de um grupo de personagens feéricos, via-se uma jovem radiosa. Pelos seus longos cabelos soltos adivinhava-se que era ainda donzela, pois naquele tempo, depois do casamento, as mulheres penteavam-se obrigatoriamente com um puxo.
Um dos dois homens deteve-se diante desta pintura e contemplou-a. Pareceu-lhe que o seu corpo perdia todo o peso e que ele se elevava nos ares, como se levado por uma nuvem. Viu-se do outro lado da parede, no fresco, perdido dentro de uma arquitectura desconhecida.
Ali viu uma jovem que se afastava rindo. Seguiu-a, chegou a uma casa de formas novas e a donzela, com um olhar e um gesto, convidou-o a entrar nessa casa. Ali se tornaram imediatamente marido e mulher e viveram tempos de felicidade.
Passados esses tempos (cuja duração não se sabe), vieram as companheiras da jovem e fizeram notar à sua amiga que devia passar a usar o penteado de mulher casada, o puxo. O que ela fez, com ganchos e travessas.
De súbito, fora da casa, ouviram-se passos pesados, uma voz que gritava e ruídos de correntes. A jovem esposa pareceu singularmente assustada e disse ao homem que se escondesse debaixo da cama, sem demora. Apareceu um indivíduo negro e ameaçador, vestido com uma armadura de oiro, que trazia chicotes e correntes. As raparigas juntaram-se à sua volta numa roda e perguntaram-lhe se por acaso algum mortal se tinha insinuado no meio delas.
— Estais todas aí? — perguntou ele.
— Sim, estamos todas aqui.
O novel esposo, escondido debaixo da cama, mal ousava respirar. Ouviu que os passos do terrífico visitante se afastavam, mas de todos os lados parecia ir e vir gente, como quem procura alguma coisa (ou alguém). Estendido, todo torcido num sítio estreito, ele aplicava os ouvidos e os olhos.
Entretanto, nos corredores do mosteiro, o amigo do novo esposo tinha notado o seu desaparecimento. Falou nisso ao velho monge que lhe respondeu:
— Oh, ele foi pregar a lei.
— E para onde?
— Não para muito longe, sem dúvida.
Então o velho monge, dirigindo-se ao fresco disse:
— O que te retém tanto tempo?
Viu-se uma sombra desenhar-se do outro lado da parede, no fresco. Reconheceram a silhueta do desaparecido, que parecia ainda escutar através da parede, e o monge disse-lhe:
— O teu amigo espera-te e impacienta-se.
Então o homem saiu da parede de olhar fixo, as pernas inteiriçadas e a tremer. Disse que, escondido debaixo da cama, tinha ouvido um enorme barulho, semelhante a um trovão, e que tinha saído para saber qual a razão desse barulho.
Os três homens, olhando o fresco, viram então que a jovem radiosa, ainda presente no mesmo lugar, tinha mudado de penteado e trazia agora o puxo de mulher casada.
O homem que regressara do fresco, e cujo corpo parecia sacudido de medo, quis saber porque tinha mudado o penteado. Mas o velho monge respondeu-lhe, com um ligeiro levantar de ombros:
— As visões nascem de quem as contempla. Que explicação posso eu dar-te?
Os visitantes desceram então os degraus do templo e foram-se embora, em silêncio.
In Jean- Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).