sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Educação: as más notícias sucedem-se



Avaliação: Pano Velho - 6

O sepulcral silêncio que caiu sobre o novo/velho modelo de avaliação do desempenho é ensurdecedor. Apesar de o líder do partido maioritário do Governo ter prometido revogar o modelo anterior e não o ter feito, apesar de ter prometido elaborar um modelo novo e não o ter feito, apesar de, do ponto de vista técnico, o modelo apresentado continuar a ser um desastre, apesar de, na substância, nada de significativo se ter alterado, o mutismo instalou-se, como se tudo estivesse bem, como se nada de esdrúxulo tivesse acontecido.
Como a insignificância destas notas não correm o risco de perturbar tão grande silêncio, eu aventuro-me a prosseguir com elas.

Artigo 18.º (Observação de aulas) — Este Artigo determina que, para os professores na carreira, a observação de aulas é facultativa, excepto nas seguintes circunstâncias: se o professor se encontrar no 2.º ou 4.º escalões; se obtiver uma classificação de «Insuficiente»; ou se quiser candidatar-se à classificação de «Excelente». 
Para não ser exaustivo, duas observações apenas:

i) Nos termos deste Artigo, passa a ser possível classificar o desempenho de um professor como «Muito Bom» sem ninguém ter a mais pequena informação fidedigna acerca do desempenho desse professor, a nível científico e a nível pedagógico, isto é, sem existir a mais pequena informação fidedigna  sobre o domínio que verdadeiramente é importante no ensino, sobre o domínio que é a essência da profissão docente. Esta aberrante situação acontece porque a observação de aulas não é obrigatória para se obter a classificação de «Muito Bom». Consequentemente, o que fica, em termos de elementos de avaliação da componente científico-pedagógica, é o que o professor escrever, a esse respeito, no seu mísero relatório de auto-avaliação de três páginas (sem a possibilidade de anexos). E como nessas três páginas tem de caber uma reflexão específica sobre cinco áreas — prática lectiva; actividades promovidas; análise dos resultados obtidos;  contributos para os objectivos e metas fixados no Projecto Educativo do agrupamento de escolas ou escola não agrupada; formação realizada e o seu contributo para a melhoria da acção educativa (cf. post anterior sobre esta matéria) — o que dá pouco mais de um quarto de página para cada uma delas, aquilo que no relatório for escrito sobre a parte científico-pedagógica será absolutamente irrelevante, para não dizer absolutamente ridículo. Mas será precisamente essa irrelevância que constituirá a informação para se avaliar o desempenho de um professor, no domínio científio-pedagógico.
O soado rigor de Crato e a afamada exigência de Crato são isto! Resumem-se a isto! Tenho curiosidade de saber como é possível avaliar, através de uma página escrita anualmente, se um professor é «Muito Bom» no domínio científico-pedagógico. Mas a esta bizarria ainda se acrescenta outra do mesmo quilate que ocorrerá quando esse conteúdo for escrutinado por alguém que nada entenda da área científica do professor avaliado — o que sucederá sempre que o avaliador interno tiver de ser o coordenador do departamento e este não pertencer ao grupo disciplinar do docente avaliado (cf. Artigo 14.º ou aqui).
Eu julgava que, tecnicamente, não era possível fazer pior do que já existia. Afinal é possível. Neste aspecto, o ministro surpreendeu;

ii) Um professor que pretenda candidatar-se à classificação de «Excelente» terá de ter aulas observadas por um avaliador externo à escola. Quantas aulas? Duas. Duas singelas aulas. A partir daqui, um professor pode ver o seu desempenho classificado de «Excelente». Por conseguinte, o ministro da Educação considera que, pela observação de apenas duas aulas, é possível avaliar da excelência do domínio científico-pedagógico de um professor. Que as suas duas antecessoras pensassem assim, não admirava nem admirou (ambas só tinham como missão proletarizar os professores e dar a impressão de que os sujeitavam a uma avaliação), mas Nuno Crato — o rigoroso, o exigente, o escrupuloso — a pensar assim? Estamos, certamente, perante um sui generis conceito de rigor, um sui generis conceito de exigência e um sui generis conceito de seriedade: duas aulitas devidamente encenadas tornam possível ser-se classificado como um «Excelente» professor.
Não fazia ideia de que o rigor fosse isto, mas a vida reserva-nos permanentes surpresas.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Quinta da música - Sigismondo d'India

Trechos - Gilles Lipovetsky

«A cultura do negócio triunfa por todo o lado, exibindo-se nos media, magnetizando desejos e aspirações. Quando reina a cultura-mundo do hipercapitalismo, ter sucesso é ganhar dinheiro, tornar-se célebre, ser um winner: é por isso que os homens políticos já não são modelos, uma vez que são destronados pelas divas dos sucess stories. Os valores anti-económicos, os contrapesos no reino do mercado entram em colapso em grande velocidade. As esquerdas de poder converteram-se largamente aos princípios do liberalismo económico mundializado. As empresas de serviço público são geridas segundo métodos e critérios provenientes do sector privado. A escola já não apresenta por missão superior inculcar valores morais, republicanos e patrióticos: ela funciona como um serviço prestado aos consumidores exigentes e críticos que arbitram entre escola privada e escola pública. As humanidades já não atraem as elites: as grandes escolas de comércio assumiram esse lugar. O luxo está na moda, o dinheiro, as fortunas e as transacções comerciais propagam-se sem complexos até mesmo no desporto.»
Gilles Lipovetsky
In Gilles Lipovetsky, Hervé Juvin, O Ocidente Mundializado, p.28, Edições 70.

Vale a pena ler


quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Às quartas

Alado, o sol na água pousa
e dele treme a água amedrontada,
que a ardente imagem lhe devolve em rosa
e em si própria um distante sonho ousa
de céu amargo, que não sonha nada.

Armindo Rodrigues

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Um fenómeno preocupante

«É  um fenómeno preocupante» foi assim que Nuno Crato comentou a notícia de que teriam sido passados mais de 70 mil atestados médicos a professores, entre Outubro de 2010 e Janeiro de 2011. Segundo o Público, o ministro ainda observou que «em toda as profissões existem pessoas com atitudes menos correctas.»
Este é o comentário que qualquer transeunte faria se fosse interpelado por um jornalista, sobre a mesma notícia. Todavia, de um ministro espera-se que faça melhor do que faz um anónimo cidadão. Para dizer vulgaridades, chegamos nós. A um ministro exige-se mais, não digo muito mais, digo um pouco mais. Por exemplo, não lhe teria ficado mal informar-se sobre a normalidade ou a anormalidade do número de 70 mil atestados médicos em quatro meses. E, se verificasse que esse número foi anormal (como de facto foi), não lhe ficaria mal interrogar-se sobre a causa dessa anormalidade. E, depois de se interrogar, poderia investigar, ou mandar investigar, ou saber se já alguém investigou o que esteve na origem do fenómeno, para, em seguida, como ministro da pasta que é, poder responder com fundamento e seriedade, e não responder o que qualquer desinformado responderia. Por fim, em lugar de dizer que «em todas as profissões existem pessoas com atitudes menos correctas» — porque dizer isso é apenas dizer uma banalidade, e é dizer que já ajuizou sem prova, e é não esclarecer nada do que deve ser esclarecido —, se dissesse e enfatizasse que, até hoje, depois da investigação já realizada, só foram instaurados 19 processos, em 70 mil atestados, estaria a ser mais rigoroso e menos prosaicamente palavroso.

Adicionalmente, talvez houvesse algum interesse em investigar se existe alguma conexão entre a causa que gerou esse anormal número de atestados médicos e a causa que tem gerado um anormal número de pedidos de reforma antecipada. E, nessa investigação, poder-se-ia também tentar apurar se existe alguma conexão entre esse anormal número de atestados médicos e o reinício formal do tal processo monstruoso e kafkiano, que teve o pontapé saída, precisamente em Outubro de 2010, com a publicação dos desnorteados Padrões do Desempenho Docente. Padrões esses que constituíram um dos elementos mais negros da já negra história da avaliação do desempenho docente, em Portugal, e que conduziram muitos professores à indignação e ao desespero. 
Não estou a afirmar que essa conexão existe. Não investiguei, não posso saber. Mas posso e devo colocar a hipótese, porque há indícios empíricos que a tornam plausível e que a tornam susceptível de ser investigada para futura comprovação ou refutação. Ora, sendo este o modo como a ciência trabalha (observa o problema, formula uma hipótese explicativa, submete a verificação a hipótese formulada), e sendo Nuno Crato um homem de ciência, como recorrentemente gosta de se classificar, não se compreende que não proceda assim, antes de dizer e repetir frivolidades. Ganharíamos todos com isso: passaríamos a conhecer melhor a realidade e não perderíamos tempo a ouvir comentários irrelevantes.
Pessoalmente, estou muito interessado em saber se a hipótese acima formulada é verdadeira. E se for verdadeira, concluir-se-á que as tais pessoas menos correctas, de que fala o ministro, afinal não estão predominantemente entre os professores, estão e têm estado, desgraçadamente para os professores e para os alunos, dentro do próprio Ministério da Educação.
Mas, naturalmente, tudo isto não passa de uma hipótese...

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Bonecos

Quino, Bem, Obrigado e Você?, Pub. D. Quixote

Reunião - Professores contratados e desempregados

Hoje, reunião de professores contratados e desempregados. 
18,30h, no espaço cedido pela organização Precários Inflexíveis.
Sede dos Precários Inflexíveis - Rua da Silva, 39 (a Santos, junto ao Largo Conde Barão), Lisboa. 

Nacos

«O Fraca Figura ficou sem perceber se tinha ouvido bem. Olhou para o gordo e o gordo olhou para ele mas naquele instante entrou um preto muito catraio com uma caixa de engraxador debaixo do braço. Quase não deu palavra a ninguém porque foi logo agachar-se aos pés do encharutado e começou a dar à escova. Devia ser freguês certo, calculou o vendedor das leituras.
Escova que sacodes, paninho que espanejas, o homem estava de boca aberta com as habilidades do garoto. "Donde é ele?", perguntou ao gordo. "Angola?"
E o gordo, desinteressado:
"São Tomé."
"Conheço mas passei de largo", disse o Johnny. "Tubarões por toda a parte. Que idade tens tu, rapaz?"
"Onze anos."
O Johnny dos Sete Mares assoprou um sorriso desgostoso: "Onze anos." Então contou que aos onze anos, na América, toda a criança preta estava no liceu. "E ainda dizem que isto aqui não é África."
O gordo concordou, com o charuto.
"África e bem África", voltou a dizer o Johnny. "Na América um preto pode ser rico, pobre, o que quiser. O Joe Louis, não vamos mais longe. Pode ser milionário, pode ser artista de cinema, pode ser músico, tudo. E aqui? Aqui a que é que esta criança está destinada? Casa Africana, e é um pau. Engraxador ou mascote da Casa Africana. E é preciso que haja vaga, ainda há mais essa."
Enquanto o Johnny português falava para os dois homens do bar, o miúdo amochava no sapato do africanista. Estendia pomada, dava estalos com o pano para despertar o brilho, era um artista do cabedal apesar da sua pouca idade.
"Nesta nossa desgraçada terra não há meio de se convencerem que o preto é tão inteligente como nós, que se há-de fazer? Mais uma cerveja, tenha paciência."
A partir desta bebida o Johnny português amandou-se todo para a frente num discurso que ainda era mais errante do que os icebergs que tinha conhecido e as leituras que andava a distribuir. "Quantas brancas", perguntava ele às consciências que o ouviam, "quantas brancas, é um exemplo, vê a gente casadas com pretos? Raríssimas. Nenhumas. E é um erro, caraças. Um erro porque assim nunca mais se produz a raça universal."
No travo do arroto espalmou o peso dos anéis em cima do balcão e ficou-se a abanar a cabeça. Estava realmente desiludido com a estupidez do país.
"Ministros, ministros pretos, quantos ministros pretos tivemos nós na nossa história? Quantos juízes de cor? Quantos generais, quantos bispos, vamos lá? Eu sei, eu digo: nicles. Absolutamente nicles. Ao passo que na América houve de tudo. Senadores, banqueiros, ministros, tudo. Até presidentes pretos. Não me lembro em que época, mas houve."
O pequeno engraxador tinha acabado, só esperava que o cliente do charuto lhe pagasse para se pôr a andar.
"E aqui é isto", dizia o Johnny, apontando para ele, com a voz já muito enrolada. "Miséria ou Casa Africana. Aqui quem nasce preto morre preto."
O garoto recebeu o dinheiro e saiu sem fazer ondas. Mas assim que se apanhou na rua estendeu o pescoço para dentro do bar e gritou:
"Preta era a cona da tua mãe."
E pernas para que vos quero.»
José Cardoso Pires, O Burro-em-Pé, pp.171-173, Leya.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Uma fita boa: «Meia-noite em Paris», de Woddy Allen

(Ainda que a personagem principal — Gil, interpretado por Owen Wilson — protagonize desnecessariamente, porque sem justificação nem contexto, uma ostensiva mimetização dos «tiques» interpretativos do próprio Woddy Allen. O que quase estraga o filme...)

Comentário de segunda

Sinceramente, penso que talvez haja algo de aproveitável no meio de tudo o que se está a passar à volta da colossal dívida portuguesa e da colossal dívida da Madeira, esta recentemente desocultada. O que pode ser aproveitável é isto: a situação a que se chegou obriga o cidadão a confrontar-se consigo próprio ou, se se preferir, a confrontar-se com as escolhas que faz e com as consequências que essas escolhas acarretam; por outro lado, esta situação traça, de forma nua e crua, um retrato particularmente fiel das nossas elites.
Foi com Sócrates que este confronto do cidadão eleitor consigo próprio começou a ser feito a doer, isto é, começou a fazer doer consciências. Sócrates foi demasiado mau, enquanto protagonista político e enquanto protagonista de políticas. Durante o primeiro mandato, foi reiteradamente prepotente, incompetente e irresponsável. Mas foi reeleito. Ano e meio depois, deixou o país à beira da bancarrota. Deixou-nos de rastos — financeira, economica e moralmente. Até Sócrates, estava generalizado o sentimento de que votar neste ou naquele era mais ou menos a mesma coisa. Depois de Sócrates, ficou bastante mais claro que votar não é um acto inconsequente. E no futuro sê-lo-á cada vez menos. O tempo do «tanto dá: são todos iguais...» terminou. Cada cidadão tem de ser responsabilizado por aquilo que faz no dia das eleições e por aquilo que civicamente faz (ou não faz) no período que medeia duas eleições. A culpa não é apenas «deles» (dos «tipos do poleiro», dos que «querem tacho») é também de quem lá os coloca e de quem se isenta dos deveres de cidadania.
Agora, de modo muito particular, chegou a vez dos madeirenses se confrontarem consigo próprios. Talvez seja melhor dizer de outro modo: deveria ser agora o momento de os madeirenses se confrontarem com as escolhas que têm feito, mas, lamentavelmente, isso é pouco provável que aconteça. Provavelmente, só quando começarem a pagar o preço da leviandade do seu voto — quando começarem a sentir no bolso, e depois na boca, e depois na saúde os resultados da sua escolha — é que perceberão que votar é muito mais do que assinalar ritual e irresponsavelmente uma cruz num quadrado.

Mas o que se está a passar não interpela só os eleitores; o que se está a passar traça um excelente retrato da qualidade das elites que dirigem o país nas diversas áreas: na política, na finança pública e privada, na economia, na comunicação social, etc. O verdadeiro problema não é Jardim, ele é apenas o espelho das nossas elites. 
Na realidade, não é só Jardim que é boçal. A boçalidade não se revela apenas no trato, como é o caso de Jardim, a boçalidade revela-se também nas decisões políticas que se tomam, revela-se no modo como se gere um país, no modo como se gere um banco, no modo como se gere uma empresa. Ora, e ao contrário do retrato público que fazem de si mesmas, as nossa elites são desgraçadamente boçais.
Tome-se como exemplo a nossa elite de banqueiros: Jardim Gonçalves ex-presidente do BCP e vários ex-administradores do mesmo banco foram punidos pelo Banco de Portugal e estão a ser julgados em tribunal; Oliveira e Costa, ex-presidente do BPN esteve preso e está a ser julgado; João Rendeiro, ex-presidente do BPP, vai ser julgado; Armando Vara, ex-vice-presidente do BCP, vai ser julgado; Dias Loureiro, ex-administrador da SLN/BPN, está a ser investigado. Estes são os casos de boçalidade que acabam na polícia. 
Depois temos os casos de boçalidade que, sem serem casos de polícia, levam os bancos à beira da falência e conduzem o país ao sobreendividamento. Ricardo Salgado, do BES, Fernando Ulrich, do BPI, Faria de Oliveira, da CGD, são exemplos de quem incentivou e tudo fez para que famílias e empresas se endividassem sem rei nem roque. Foram eles que promoveram gigantescas campanhas publicitárias a prometerem facilidades para todo o tipo de crédito (habitação, automóvel, pessoal, etc.), e foram eles, conjuntamente com as maiores empresas de construção civil, que mais incentivo prestaram e mais pressão fizeram para que o país gastasse vários milhares de milhões na construção de auto-estradas, de vias rápidas, de viadutos, de túneis, de pontes, de barragens, de TGV, de aeroportos e de tudo o mais que fosse necessário inventar para que desvairadamente se contraíssem empréstimos sobre empréstimos.
Esta não é pois a boçalidade do taberneiro sebento e fanfarrão, que esconde umas facturas na gaveta, esta é uma boçalidade diferente, é a boçalidade da incompetência, mascarada de eficácia, que predomina nas nossas elites e que arruína o país.

domingo, 25 de setembro de 2011

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Pedro Osório

Pensamentos de domingo

«Eu não quero atingir a imortalidade através das minhas obras. Eu quero fazê-lo não morrendo.»
Woody Allen 
«O marido perfeito contenta-se sempre com a penúltima palavra.»
Ivar Wallenstein 
«No cinema podemos aprender muito sobre o amor — desde que não nos deixemos distrair pelo filme.»
Franklin Jones 
In José Manuel Veiga, Manual para Cínicos, Editorial Fragmentos.

sábado, 24 de setembro de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico


O problema da emoção

Uma história vinda dos Camarões.
Um elefante atravessa o rio. De repente, um dos seus olhos solta-se e cai ao fundo. Aflito, o elefante põe-se a procurá-lo por todos os lados, mas em vão. O olho parece irremediavelmente perdido.
Enquanto ele se agita no meio do rio, em seu redor, os animais aquáticos, os peixes, as rãs, mas também as aves e as gazelas, que estavam na margem, todos gritam para ele:
— Acalma-te! Calma, ó elefante! Acalma-te!
Mas o elefante não os ouve e continua a procurar, sem encontrar o seu olho.
— Calma! — gritavam os outros. — Calma!
Acabou por os ouvir, imobilizou-se e olhou para eles. Então, a água do rio arrastou suavemente o lodo e a lama, que ele levantara com as patas. Ao olhar, viu, entre as suas patas, o olho na água outra vez límpida.
Recolheu-o e pô-lo no sítio.
Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema [adaptado].

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Avaliação: Pano Velho - 5

Algumas notas mais sobre o novo/velho modelo de avaliação.

Artigo 14.º (Avaliador interno) [continuação] e Artigo 16.º (Documentos do procedimento de avaliação) - O n.º 3 do Artigo 14.º e o Artigo 16.º enunciam, respectivamente, os documentos «através» dos quais é feita a avaliação interna do desempenho e os documentos que «constituem» o processo de avaliação. Como os documentos «através» dos quais se avalia e os documentos que «constituem» o processo são precisamente os mesmos, consomem-se dois artigos para dizer... o mesmo.
Portanto, segundo estes Artigos, o avaliador interno irá avaliar «através de» e «constitutivamente» os seguintes três documentos: o projecto docente, o documento de registo e avaliação feito pelo Conselho Pedagógico e o relatório de auto-avaliação. Vejamos.
1 - Projecto docente.
Este «Projecto Docente» é apenas uma designação diferente dos estultos «Objectivos Individuais», do modelo anterior — e do mesmo modo que os «Objectivos Individuais» não eram de entrega obrigatória este «projecto» também não o é. Ora não sendo de elaboração obrigatória, e, por conseguinte, não sendo entregue, evidentemente, que não será «através» dele que o avaliador avalia e, consequentemente, o «projecto» não chega sequer a «constituir» um documento do processo.
Portanto, até aqui temos zero de novidade e zero de substância.

2 - Documento de registo e avaliação feito pelo Conselho Pedagógico. 
Estamos a falar do documento que o avaliador preenche para, pretensamente, registar a «participação do professor na escola e na comunidade» e a «formação contínua» realizada (formação que, na maioria dos casos, não existe há vários anos). Quanto a registos sobre a «dimensão científico-pedagógica», nada de minimamente sério poderá ser feito, a nível da avaliação interna, como veremos mais adiante.
Então, na prática, este documento é o quê? É uma folhinha de Excel com uns pretensos indicadores e descritores de desempenho docente inscritos em quadrículas, à frente das quais outras quadrículas se colocam para o avaliador assinalar umas cruzes. Por outras palavras, estamos a falar dos velhos padrões de desempenho, mas agora feitos por cada escola. Isto significa dizer que, de estabelecimento para estabelecimento, estes critérios se diferenciarão como o vinho se diferencia da água, e que, pela natureza da actividade avaliada (participação na escola e relação com a comunidade), esses critérios oscilarão entre o critério do «olhómetro» e o critério da «régua e esquadro», isto é, oscilarão entre o criteriosamente obscuro e o criteriosamente ridículo.
Também aqui, continuamos a ter zero de novidade (porque o pretenso método «avaliativo» é o mesmo) e muito duvidosa substância.

3 - Relatório de auto-avaliação.
O relatório de auto-avaliação que o novo/velho modelo prevê é um hino à asneira e à incoerência. De elaboração anual (excepto para os professores dos três últimos escalões), este relatório não pode ultrapassar as três páginas de extensão e não pode ter anexos. Ora todos sabemos que não é tecnicamente possível fazer uma auto-avaliação séria e profissional de um ano de trabalho em folha e meia. Mas o hino à asneira e à incoerência não termina aqui. Ele atinge o seu ponto mais alto quando se lê, no n.º 2, do Artigo 19.º, o seguinte:
«O relatório de auto-avaliação consiste num documento de reflexão sobre a actividade desenvolvida incidindo sobre os seguintes elementos: 
a) A prática lectiva; b) As actividades promovidas; c) A análise dos resultados obtidos; d) O contributo para os objectivos e metas fixados no Projecto Educativo do agrupamento de escolas ou escola não agrupada; e) A formação realizada e o seu contributo para a melhoria da acção educativa.» 
É constrangedor comentar isto, porque a dimensão do disparate é de uma ordem tal que o comentário se torna um incómodo. Na verdade, que conversa séria é que se pode ter acerca de um documento que diz: o relatório não pode ter mais de três páginas, e, ao mesmo tempo, diz que, nessas três páginas, deve ser elaborada: uma reflexão sobre a prática lectiva realizada durante um ano (com, por exemplo, cinco, seis ou mais turmas); uma reflexão sobre as actividades curriculares e não curriculares desenvolvidas durante esse ano; uma reflexão sobre análise os resultados obtidos em cada turma; uma reflexão sobre o contributo que o professor deu para a concretização dos objectivos enunciados no Projecto Educativo; e, ainda, uma reflexão sobre a formação contínua que foi realizada e sobre os contributos dessa formação para a melhoria da acção educativa do próprio professor. Tudo apresentado, no máximo, em folha e meia!
Este documento do Ministério da Educação não revela apenas incompetência, revela também uma lamentável falta de seriedade intelectual.
Por conseguinte, não saímos do zero de novidade (mantém-se o relatório) e atingimos o abaixo de zero na substância.

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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Quinta da música - Dmitry Shostakovich

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«Temos vivido acima das nossas possibilidades?» Trechos - Ana Cordeiro Santos (3)

«[...] Sem escamotear o facto de a dívida das famílias portuguesas ter crescido a um ritmo intenso desde meados dos anos 90, é de notar que o PIB português também teve um comportamento medíocre desde então. Quer isto dizer que o crescimento do peso da dívida das famílias no PIB também se deve ao abrandamento da actividade económica. E é hoje certo que as medidas de austeridade impostas pela UE e pelo FMI para os próximos três anos impossibilitarão qualquer recuperação económica nesse período. A exigência do reequilíbrio das finanças públicas gerará mesmo um recessão severa, podendo agravar os desequilíbrios financeiros do sector privado e, desta forma, contribuir para a fragilização dos próprios bancos, que até agora beneficiaram de um negócio com risco reduzido.
O endividamento das famílias, que tem sido relativamente moderado pelas razões expostas, poderá assim transformar-se num sério problema social. [...]
Os segmentos da população mais vulneráveis poderão enfrentar sérias dificuldades face a uma política económica que poderá comprometer a sua capacidade financeira futura. A recessão económica aliada ao endividamento das famílias poderá levar a um aumento das desigualdades sociais num dos mais desiguais países da União Europeia.»
Ana Cordeiro Santos, «Temos Vivido Acima das Nossas Possibilidades?», Le Monde Diplomatique - edição portuguesa, n.º 57 (Julho/2011).

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Sexta-feira, dia 23


Concentração de Professores, dia 23 de Setembro, próxima sexta-feira, às 15h, em frente ao Ministério da Educação, na Avenida 5 de Outubro, Lisboa.

Às quartas

NA ÉBRIA INDOLÊNCIA

Talvez alguém escute Talvez
Ninguém
Sem olhar contemplo os prodígios suaves
No sossego de estar entre nuvens planas
E sobre as pedras sólidas tranquilas
De um rio cintilante vejo os signos indolentes
Enlaces desenlaces
Da água em seu remanso
E assim repouso dormindo no ardor
da brancura e da graça
Tão suavemente persistindo
Na grande realidade em evidência
Dócil flexível a torrente soberana
Em tumultos flagrantes molda os músculos leves
Que mais não querem ser que ar no ar
Ou água que caminha para a água
Ou um latido branco no coração do mundo.

António Ramos Rosa

Drogados, alcoólicos e desvairados

A propósito da idolatria dos mercados, a propósito da alegada capacidade de auto-regulação dos mercados, a propósito da suposta competência dos especialistas dos mercados:
«O Expresso foi até ao consultório do psiquiatra Jonathan Alpert, conhecido como o terapeuta de Wall Street, com o objectivo de conhecer melhor o perfil daqueles indivíduos [...]. "Estamos a falar de gente impulsiva, narcisista, que mede o sucesso pela quantidade de dinheiro, que adora o risco e tem dificuldade em gerir o equilíbrio dos vários elementos da vida (família, trabalho, lazer, etc.)", explica Alpert.
O resultado é o abuso de substâncias. "A maioria, cerca de 60%, consome drogas, álcool e gasta milhares de dólares em prostitutas [...]".
O ritmo do dia a dia é marcado, primeiro, por várias doses de cocaína para melhorar a performance no trabalho, depois pelo álcool e sexo à noite para ajudar a descontrair.» 
Revista Única (17/9/11) 
Impulsivo, narcisista, desequilibrado mental, drogado, alcoólico e obcecado por dinheiro — é este o perfil daqueles que têm nas mãos uma boa parte do sistema financeiro do mundo. São estes alguns dos principais protagonistas de um modelo económico que continua a fazer as delícias de poucos e a miséria de muitos. E que permanece intangível.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Bonecos

Quino, Bem, Obrigado, e Você?, Pub. D. Quixote

Nacos

«Numa das visitas em que, vamos lá, o negócio não lhe correu mal de todo, o vendedor das leituras sentiu-se tão apertado com o calor que resolveu fechar a livralhada entre parênteses e foi espairecer para a mata. Já se via de papo para o ar à sombra duma mimosa mas ao passar pelo Bar Quibala deixou-se tentar e entrou. Dias não são dias e muito menos aquele que era o de São Nunca e que nem todos os anos entra no calendário do cidadão avulso. De maneira que: Uma cerveja.
Do lado de cá do balcão estava o gordo do costume, pendurado no charuto nevoento; do outro lado, o Fraca Figura que bem sabemos. Um pouco por toda a parte andava o corvo Vicente, a apanhar ar.
O Johnny ambulante, com o nome bordado no coração, perguntou aos ali presentes se eram servidos. Nenhum era. Em vistas disso bebeu mais uma cerveja à conta ou, antes, duas: uma por cada convidado porque tinha a mania da contabilidade. A seguir mandou vir outra para rebater e mais outra para aliviar e, no crescer da espuma, abriu o parágrafo declarando que se encontrava na nossa pátria por muita infelicidade dele, uma vez que tinha sido marinheiro e conhecia a costa da América desde o tufão ao iceberg. Se a santa velhinha o não tivesse chamado à hora da morte nunca teria encalhado na terra que o viu nascer. Ou ele não se chamasse Johnny, garantiu.
"O que tem de ser tem muita força", disse o gordo encharutado.
"E quando a moral se mete na pessoa, então é que não há nada a fazer. A moral dum filho, se é realmente moral", disse o Johnny português, "não olha a coisa nenhuma." Apontou para o corvo Vicente: "Aquele animal come-se?"»
José Cardoso Pires, O Burro-Em-Pé, pp. 170-171, Leya.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Uma fita boa: «Assim é o amor» (Beginners), de Mike Mills

Comentário de segunda

1. «Nós não somos a Grécia!» — esta é a frase que Presidente da República, primeiro-ministro, membros do Governo, deputados da maioria e até do PS têm vindo a repetir insistentemente, desde há meses, e, com particular ênfase, na última semana.
É lastimável ouvir afirmações daquele teor. É lastimável, é constrangedor e evidencia a menoridade política de quem tem a incumbência de representar o nosso país. Se tivéssemos governantes de elevada estatura política, se tivéssemos lideres com carácter e com convicções alicerçadas num pensamento reflexivo e crítico, certamente que não ouviríamos comentários daquela natureza.
Em primeiro-lugar, porque quem verdadeiramente acredita em si próprio, quem está seguro do caminho que quer trilhar, não perde tempo a apontar alegados defeitos a terceiros: concentra-se apenas no que tem de fazer e auto-determina-se a atingir os objectivos que pretende. Só quem é medíocre sente necessidade de rebaixar o parceiro para se notabilizar ou para se (auto-)valorizar.
Em segundo lugar, se permanentemente reclamamos a prática da solidariedade na Europa, como podemos ser nós os primeiros a atraiçoar essa solidariedade, tratando um Estado da mesma União como se peçonha tivesse?
Apregoamos que a UE deve falar a uma só voz, mas, sempre que a oportunidade surge, pedimos para não nos confundirem com os gregos? Se existem críticas a dirigir aos governos gregos (actual e anteriores) essas críticas devem ser apresentadas e justificadas nos locais próprios, não nas televisões, não na comunicação social. Ao fazerem-no publicamente, Presidente da República e primeiro-ministro dão o exemplo de seguirem a velha máxima do «salve-se quem puder» e revelam a sua insignificante dimensão política. Cavaco Silva e Passos Coelho  são, possivelmente, bons técnicos de contabilidade, mas não são, seguramente, bons políticos e muito menos são os políticos de que Portugal precisa.

2. Mas se a Política (com letra maiúscula, para a distinguir da pequena política) não está ao alcance dos nossos governantes, o básico bom senso, pelo menos, deveria estar. E esse bom senso teria aconselhado prudência de modo a evitar que acusássemos outros (ainda que indirectamente) daquilo de que nós próprios também poderíamos vir a ser acusados — para mais, sabendo nós quem temos dentro de casa. Ora essa prudência não existiu e aconteceu aquilo que, de facto, acabou por não surpreender nenhum português: o que era censurado aos gregos — fazerem falcatruas nas contas — agora, passou também a ser-nos censurado. E fomos conduzidos a esta situação pela mão de uma desprezível figura regional da política: segundo o noticiado, durante os últimos anos, Jardim intrujou as contas da Madeira; e como as contas da Madeira fazem parte das contas de Portugal, as contas que Portugal apresentou à União Europeia estavam intrujadas.
O responsável por isto é um indivíduo que já há muito devia ter sido banido da política. Mas não o foi por duas razões: porque os eleitores madeirenses não o quiseram e porque os dirigentes nacionais do PSD e as autoridades políticas nacionais, a começar pelos Presidentes da República, foram sempre cúmplices da boçalidade, da incompetência e do mundo de barbárie política de Jardim.
Não contesto a legitimidade de os madeirenses escolherem aquela degradada e degradante personagem política para seu governante. Certamente que têm essa legitimidade, mas também têm de assumir as consequências dessa legitimidade e dessa escolha. Do mesmo modo que, no Continente, estamos a pagar pelos resultados das escolhas eleitorais que foram feitas nos últimos anos (desgraçadamente, estamos todos a pagar: os que fizeram essas escolhas e os que não fizeram), os madeirenses também têm de pagar pelos resultados das suas escolhas. E disso não podem querer fugir.
Agora, o que eu contesto é a leviandade e a cumplicidade das autoridades nacionais para com essa indecorosa figura política. Objectivamente, os dirigentes políticos nacionais foram responsáveis pela impunidade de quem recorrentemente desrespeitou e insultou as instituições da nossa República. E, neste momento, sabemos que não fez só isso: sabemos que ocultou (alarve e publicamente assumido pelo próprio), de forma deliberada, as dívidas que contraía para enganar as autoridades nacionais.
Em Portugal, há certamente quem já tenha sido preso por menos.

domingo, 18 de setembro de 2011

Resolução aprovada no Encontro de Professores Contratados

Deixem-nos ser Professores! 
Parem com esta injustiça! 

Os professores desempregado e contratados, reunidos no dia 17 de Setembro no auditório da Escola Secundária Camões, manifestam a sua total indignação com o despedimento de milhares de professores necessários às escolas e com as novas e abusivas formas de contratação que o Ministério da Educação tem tentado impor. 
Exigimos ainda a reposição do direito à compensação pela caducidade do contrato, tal como sustenta o parecer da Provedoria de Justiça e ordenaram as várias sentenças judiciais transitadas em julgado sem contestação do MEC. Exigimos também a vinculação ao fim de três anos de serviço tal como manda a Lei Geral do Trabalho. Depois do protesto do Rossio, no passado dia 10 de Setembro, e das mobilizações do dia 16 de Setembro, que deram visibilidade a uma situação tão injusta, os professores precários não desistem e entendem prosseguir a luta pelos seus direitos e por uma escola pública de qualidade. 

Assim, 
Consideramos inaceitável: 
1 - Que até à data o Ministério da Educação tenha contratado menos cerca de oito mil professores que leccionaram todo o ano lectivo passado, deixando no desemprego mais de 37 mil docentes profissionalizados, quando sabemos que as escolas necessitam de recursos humanos para ajudar no combate ao insucesso escolar;

2 - Que docentes com mais de três anos de contratos consecutivos (alguns até com 10, 20, 30 anos) continuem sem ingressar nos quadros tal como determina a lei geral do trabalho;

3 - Que o Governo mantenha e anuncie o aprofundamento de medidas socialmente injustas contra os desempregados, ao nível do encurtamento de prazos de garantia ou da redução de montantes das várias prestações do subsídio de desemprego, rejeitando qualquer política articulada de criação de emprego. 

4 - Que o Governo recuse pagar a compensação por caducidade do contrato aos professores desempregados, contrariando a Lei e as recomendações da Provedoria de Justiça. É igualmente inaceitável que o governo tenha já anunciado oficialmente a extinção total da Compensação por Caducidade do Contrato para 2013. 

5 - Que o Ministério da Educação insista em tentar alterar as regras de contratação anual para evitar pagar os meses de Julho e/ou Agosto aos professores contratados. Os contratos mensais prorrogáveis nos casos dos professores colocados em Ofertas de Escola referentes à totalidade do ano lectivo constituem uma situação claramente ilegal. Aparentemente, o Governo terá recuado nesta matéria, mas prepara-se para voltar a atacar. Exigimos a garantia expressa e clara de que os professores contratados para o ano lectivo inteiro vão receber os meses de Julho e Agosto. 

6 - Que muitos lugares da Bolsa de Recrutamento não tenham ainda sido preenchidos nem disponibilizados a concurso para evitar o pagamento do mês de Setembro aos professores, prejudicando-se directamente os alunos, que iniciarão essas disciplinas apenas em Outubro; 

7 – Que prossigam as injustiças nos concursos com critérios de contratação pouco claros ao nível das Ofertas de Escola em Escolas TEIP e outras, desrespeitando a graduaçãod e cada candidato na lista nacional. 

8 - Que o MEC aprofunde a sobre-exploração da base da pirâmide dos docentes: AEC's, colegas de horários incompletos e temporários, etc. 

9- Que o MEC tenha aumentado o número de alunos por turma no 1º ciclo e reduzido os apoios educativos e que muitas turmas dos restantes ciclos ultrapassem até o limite legal dos 28 alunos, prejudicando a qualidade do ensino 

Escudado na austeridade contra os que menos têm (e que não têm responsabilidade pela dívida e pela crise), o Governo atropela os professores com desemprego e precariedade, ataca a generalidade dos trabalhadores e corta nos sectores sociais (Saúde, Educação, Segurança Social) minando as bases da justiça social. 

Recusamos essa inevitabilidade e decidimos: 
- Pedir uma reunião à Provedoria de Justiça e accionar a Procuradoria Geral da República, para dar nota do incumprimento pelo Governo das recomendações recentes do senhor Provedor de Justiça, para que os professores possam ter direito à compensação pela caducidade do contrato; 

- Reunir igualmente como os Grupos Parlamentares para dar nota das nossas reivindicações; 

- Dar visibilidade pública ao drama dos professores desempregados e contratados, através de pinturas murais e outras formas de divulgação; 

- Manter a regularidade de acções de rua que juntem os professores contratados e desempregados para defender os seus direitos e organizar a resistência aos novos ataques à escola pública e aos seus docentes mais precários, interpelando directamente o Ministro da Educação. 

- Participar nas manifestações contra as medidas de austeridade e por justiça social que se realizam nos dias 1 de Outubro (promovida pela CGTP) e 15 de Outubro (iniciativa internacional promovida por diversos movimentos). 

O Ministério de Nuno Crato está a destroçar a Escola Pública e lança o país no atraso, na miséria e no obscurantismo. Este governo junta-se agora ao Quadro de Honra dos responsáveis directos por anos de atentados contra as escolas e o corpo docente: Guterres, Barroso, Lopes e Sócrates e os respectivos ministros da Educação. 
Recusamos a pobreza, a inevitabilidade da injustiça e da desigualdade e o desmantelamento da Escola Pública. Não nos calamos. Não desistimos. 

Os professores contratados e desempregados 
Escola Secundária Camões, 17 de Setembro, Lisboa. 
http://www.facebook.com/#!/pages/Protesto-dos-professores-contratados-e-desempregados/268351343184641 

Keith Jarrett

Pensamentos de domingo

«Patife: uma espécie daninha que se encontra em grande abundância nos sítios onde há boas colheitas de tolos, de cuja planta se alimenta.»
Ambrose Bierce

«A credulidade e confiança de muitos tolos faz o triunfo de uns poucos velhacos.»
Marquês Maricá

«São raros os patifes pobres.»
Giacomo Leopardi
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

sábado, 17 de setembro de 2011

Uma fita com interesse (mas longa, longa...): «Vénus Negra», de Abdellatif Kechiche

Ao sábado: momento quase filosófico

O problema do ponto de vista

Quando o Egipto estava sob o domínio do terrível tártaro Tamerlão, que era coxo, vesgo, horrivelmente feio e tinha um pé de ferro, mandou este chamar Gohâ [personagem muitas vezes presente nas histórias tradicionais do Egipto, que se caracteriza por ser uma extraordinária mistura de ingenuidade, estupidez e máxima astúcia], de quem tinha ouvido falar. 
Enquanto Tamerlão conversava com Gohâ, o seu barbeiro cortava-lhe o cabelo, mas tanto lhe cortou que acabou por lhe rapar a cabeça. No final, deu um espelho a Tamerlão para ele se ver.
Ao ver-se, Tamerlão pôs-se a chorar. Gohâ também chorou, gemeu e bateu no chão com as mãos durante duas ou três horas. Tamerlão já há muito tempo tinha acabado de chorar. Mas Gohâ continuava a chorar, sem descanso.
Tamerlão perguntou-lhe:
— Mas que tens tu? Eu estou a chorar porque me vi ao espelho desse barbeiro desgraçado e achei-me verdadeiramente feio e horrível. E tu? A que se deve esse mar de lágrimas?
E Gohâ respondeu:
— Qual é o espanto? Tu viste-te ao espelho por um breve instante e choraste durante uma hora. Mas eu, que tenho que olhar para ti o dia inteiro, quanto tempo hei-de chorar?
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema [adaptado].

Hoje

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Avaliação: Pano Velho - 4

Passos Coelho disse, ontem, no Parlamento, que o novo modelo de avaliação do desempenho docente é sério e exigente. Nuno Crato também o tem dito. Não é verdade. Lamentavelmente não é verdade. O novo/velho modelo de avaliação nada tem de sério e nada tem de exigente. 
Comparativamente, podemos dizer: se o modelo de avaliação de Sócrates/Rodrigues/Alçada era absolutamente incompetente e azémola, o modelo Coelho/Crato continua a ser absolutamente incompetente e ligeiramente menos azémola — mas muito ligeiramente, porque, como iremos ver nos Artigos abaixo comentados, esta característica também nele abunda.
Estas e outras notas que aqui vou deixando servem de fundamentação ao que acabei de afirmar.

Artigo 13.º (Avaliador externo) - A alínea a) do n. 1.º deste Artigo diz que o avaliador deve «Estar integrado em escalão igual ou superior ao avaliado.» 
Recordo, a este propósito, o que estava escrito no 4.º Princípio, que conjuntamente com mais seis — pomposamente apresentados por Nuno Crato, pouco tempo depois da tomada de posse do cargo de ministro —, constituía, alegadamente, a base sólida e diferenciadora do que deveria ser um novo modelo de avaliação: «Os avaliadores terão de pertencer a um escalão mais avançado que os dos respectivos avaliados.» Crato deu a este Princípio a significativa designação de «Hierarquização da Avaliação». Era necessário garantir, segundo o ministro, que o avaliador estivesse numa posição hierarquicamente superior. Apesar dos escalões não constituírem uma hierarquia (reportam somente a uma tabela de vencimentos), para o ministro, era o suficiente: sempre dava o «ar» de hierarquização.
Todavia, misteriosa e repentinamente, este princípio esfumou-se, e, com a mesma naturalidade com que se tinha afirmado que sim, passou-se a afirmar que não, que o avaliador já não terá de estar num escalão superior ao avaliado; que, afinal, já poderá estar no mesmo escalão. De uma penada, atirou-se pela ribanceira abaixo a anunciada hierarquização da avaliação e, com ela, também foi um dos sete princípios fundadores do suposto novo modelo de avaliação. Foi prestada alguma explicação para tão profunda alteração de posição?  Não ouvi nem li qualquer explicação. 
Vê-se que, para este Governo, faz parte do natural fluir da vida afirmar hoje uma coisa e amanhã o seu contrário. O primeiro-ministro tem sido modelar neste particular e o ministro da Educação já deu mostras de ser um seu fiel mimético. Atira-se às malvas um Princípio com o mesmo à-vontade com que se respira.
É no que dá quando se ignora o que é ter ética na política e quando se fala do que não se sabe. Na realidade, aquele 4.º Princípio não passava de um «bitaite», e como «bitaite» assim se esfumou.

Artigo 14.º (Avaliador interno) - Este Artigo é uma embrulhada impressionante.
O N.º 1 deste Artigo determina: «O avaliador interno é o coordenador de departamento curricular ou quem este designar, considerando-se, para este efeito, as regras constantes do artigo anterior para a selecção do avaliador externo.» E o N.º 2 completa: «Na impossibilidade de aplicação dos critérios previstos no número anterior não há lugar à designação, mantendo-se o coordenador de departamento curricular como avaliador.»
Portanto, o avaliador interno, para poder ser nomeado pelo coordenador de departamento, tem de cumprir os seguintes critérios exigidos no Artigo 13.º, a saber: «a) Estar integrado em escalão igual ou superior ao do avaliado; b) Pertencer ao mesmo grupo de recrutamento do avaliado; c) Ser titular de formação em avaliação do desempenho ou supervisão pedagógica ou deter experiência profissional em supervisão pedagógica.» 
O absurdo é o seguinte: no caso de não haver professores que cumpram os requisitos acima discriminados, o avaliador é o coordenador de departamento; ora o coordenador de departamento é escolhido por um único critério: o critério da confiança do director. Todavia, esta confiança poder ser de natureza diversa, como é sabido e conhecido: confiança de natureza profissional, ou confiança de natureza empática, ou confiança por fidelidade canina, ou confiança por acriticismo garantido; enfim, confiança por aquilo que o director quiser. Por conseguinte, na escolha do coordenador não há nenhum critério que tenha que ver com o escalão, ou com o grupo de recrutamento, ou com a fomação que possui. Daqui decorrem várias consequências, todas elas, curiosamente, incongruentes e néscias, à luz da própria lógica interna do modelo:
i) Ao coordenador não é exigido, para exercer as funções de avaliador, nenhum dos critérios que é exigido aos outros professores para exercerem a mesma função;
ii) Deste modo, como o coordenador não está obrigado a respeitar nenhum desses critérios para ser coordenador, mas como vai ser avaliador ele poderá pertencer a um escalão inferior àquele a que o professor avaliado pertence, violando-se, assim, escandalosa e objectivamente o que tinha sido prometido e anunciado;
iii) O coordenador poderá não pertencer ao grupo de recrutamento do avaliado, violando-se escandalosa e objectivamente o que tinha sido prometido e anunciado;
iv) O coordenador poderá não ser titular de formação em avaliação do desempenho ou supervisão pedagógica nem deter experiência profissional em supervisão pedagógica, violando-se escandalosa e objectivamente o que tinha sido prometido e anunciado;
Assim, poderemos vir a ter situações como esta: um coordenador de departamento pertencente ao 5.º escalão ir avaliar um professor do 9.º ou 10.º escalão, sem pertencer ao seu grupo de recrutamento e sem ter qualquer formação para o exercício dessa função.

É este o rigor de que Passos Coelho e Nuno Crato falam? É esta a exigência que eles anunciam? É esta a seriedade que eles proclamam?
Para a semana, voltarei ainda ao Artigo 14.º — porque este Artigo é um verdadeiro ajuntamento de dislates.

O eterno problema das medalhas

A Carta Aberta dirigida ao Presidente da República, que a seguir transcrevo — e que gentilmente me foi dada a conhecer pelo meu amigo António Magueija —, é provavelmente verdadeira, mas, como não tenho prova disso, omito os dados pessoais e institucionais. Fica apenas o essencial:

Exmo. Sr. Presidente da República, Dr. Aníbal Cavaco Silva,

O meu nome é -----------, sou licenciada em Pintura pela ----------, fiz Mestrado em Antropologia na Faculdade de -----------, sou doutoranda em Ciências da Comunicação também pela ----------. A convite do meu orientador, lecciono uma cadeira numa Universidade. Tenho 30 anos.

Não sinto qualquer orgulho na selecção de futebol nacional. Não fiquei tão pouco impressionada... O futebol é o actual opium do povo que a política subrepticiamente procura sempre exponenciar. A atribuição da condecoração de Cavaleiro da Ordem do Infante Dom Henrique a jogadores de futebol nada tem que ver com "a visão de mundo" (weltanschauung) que Aquele português tinha. A conquista do povo português não é no relvado. 

Sinto orgulho no meu percurso, tenho trabalhado muito e só agora vejo alguns resultados. Como é que acha que me sinto quando vejo condecorado um jogador de futebol? Depois de tanto trabalho e investimento financeiro em estudos?!! Absolutamente indignada.

Sinto orgulho em muitos dos professores que tive, tanto no ensino secundário como no superior. Sinto orgulho em tantos pensadores e teóricos portugueses que Vossa Excelência deveria condecorar. Essas pessoas sim são brilhantes, são um bom exemplo para o país... fizeram-me e ainda fazem querer ser sempre melhor. Tenho orgulho nos meus jovens colegas de doutoramento pela sua persistência nos estudos, um caminho tortuoso cujos resultados jamais são imediatos, isto numa contemporaneidade que sublinha a imediaticidade. Tenho orgulho até em muitos dos meus alunos, que trabalham durante o dia e com afinco estudam à noite....

São tantos os portugueses a condecorar... e o Senhor Presidente da República condecorou com a distinção de Cavaleiro da Ordem do Infante Dom Henrique jogadores de futebol... e que alcançaram o segundo lugar... que exemplo são para a nação? Carros de luxo, vidas repletas de vaidades... que exemplo são?!

Apresento-lhe os meus melhores cumprimentos,

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quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Para clicar

Quinta da música - Béla Bartók

Temos vivido acima das nossas possibilidades? Trechos - Ana Cordeiro Santos (2)

«Como já foi referido, cerca de 80% do crédito às famílias destina-se à aquisição ou construção de habitação própria. Este facto é relevante pois mitiga a gravidade do endividamento das famílias. Em primeiro lugar, porque este crédito confere um baixo nível de risco: a dívida contraída pelas famílias está razoavelmente protegida pelo valor do imóvel, considerando que não se verificou em Portugal, como noutros países, uma sobrevalorização dos preços da habitação. A esta segurança acrescem ainda as garantias pessoais  prestadas pelos fiadores neste tipo de crédito. Em segundo lugar, porque o peso dos encargos mensais das prestações dos empréstimos à habitação no rendimento mensal das famílias é relativamente reduzido em Portugal, quando comparado com outros países da Zona Euro. De facto, a taxa de incumprimento relativa ao crédito à habitação é considerada baixa, situando-se na ordem dos 2% do crédito contraído. Já o crédito ao consumo e outros fins, que representa apenas cerca de 20% do crédito contraído pelas famílias, apresenta taxas de incumprimento na ordem dos 8%. [...] É ainda de registar que o crédito malparado das famílias (total do crédito à habitação e crédito ao consumo e outros fins) se situa abaixo do crédito malparado das empresas (de acordo com o Banco de Portugal, 3% e 5%, respectivamente).
Não só o endividamento das famílias portuguesas se concentra em empréstimos que representam um risco diminuto, como esta dívida se concentra em famílias que pertencem aos escalões de rendimento superior. De facto, [...] apenas cerca de 40% das famílias portuguesas participam no mercado da dívida, sendo que 30% das famílias participam apenas no mercado do crédito para outros fins. [A dívida está concentrada] nos estratos de rendimento mais alto, em agregados jovens, com nível educacional elevado e cujo representante é trabalhador assalariado. [...] Pode concluir-se que não só mais de metade dos portugueses tem vivido exclusivamente com os seus recursos, como aqueles que recorrem ao crédito têm vivido de acordo com as suas possibilidades.» [Continua]
Ana Cordeiro Santos, «Temos Vivido Acima das Nossas Possibilidades?», Le Monde Diplomatique - edição portuguesa, n.º 57 (Julho/2011).

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

17 de Setembro

Lacuna da lei, falha ou intenção do legislador? — A opinião de uma leitora identificada

Nos tempos em que a lei do economicismo desrespeita as leis consagradas na Constituição, e perante uma situação que está a acontecer comigo e com outros funcionários públicos licenciados, que são excluídos de procedimentos concursais pelo facto de usufruírem um vencimento inferior a 1.201,48 euros (2ª posição remuneratória, nível 15 da Tabela remuneratória única) — situação que resulta da redacção dada à Lei do Orçamento de Estado de 2011 — a minha pergunta é esta: trata-se de uma lacuna da lei, de uma falha ou foi mesmo a intenção do legislador violar a Constituição? 

Passo a citar dois artigos da Constituição da República Portuguesa que, na minha opinião, são violados por artigos daquela Lei do Orçamento de Estado. 
A Constituição da República, no seu Artigo 13.º - Princípio da igualdade - nº 1, diz: «Todos os cidadãos são iguais perante a lei. Nº 2: «Ninguém pode ser privilegiado, prejudicado, privado de qualquer direito [...]»Artigo 47.º - Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública, nº 2: «[…] Todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso.» 

Violando a Constituição e a apregoada valorização de quem se esforça para melhorar as suas qualificações, a Lei n.º 55-A/2010 de 31 de Dezembro - Orçamento de Estado para 2011 - proíbe as valorizações remuneratórias, ou seja, proíbe que um funcionário que tenha um vencimento inferior àquele que está atribuído ao cargo a que concorre se possa candidatar, mesmo tendo habilitações para o fazer. O que acontece é que fica liminarmente excluído. Artigo 24.º: «1 - É vedada a prática de quaisquer actos que consubstanciem valorizações remuneratórias […]. 2 — O disposto no número anterior abrange as valorizações e outros acréscimos remuneratórios, designadamente os resultantes dos seguintes actos: Abertura de procedimentos concursais para categorias superiores de carreiras pluricategoriais […]» (Os sublinhados são meus).

O Orçamento de Estado para 2011 impossibilita, portanto, o acesso em condições de igualdade, à função pública, o que constitui uma evidente violação da Constituição da República Portuguesa – igualdade de direitos.
Por outro lado, ouvimos os governantes dizerem que quem se esforça e se valoriza na sua formação académica deve ser premiado. O facto é que não só não é premiado como é castigado, porque está proibido de se candidatar a uma função para a qual adquiriu habilitações, se o seu vencimento actual for inferior ao dessa função.
Trata-se de uma lacuna, de uma falha ou a intenção do legislador foi mesmo a de violar a Constituição e a de castigar quem se sacrifica e valoriza?
Uma leitora devidamente identificada.

Às quartas

AS SETAS

Uma jovem num jardim
Duas mulheres num vaso
Três moças em meu coração
Sem horas nem limites.
Uma palma na vidraça
Uma palma sobre o peito
Um botão fora da casa
Um seio que se desvela
Enquanto o arqueiro com as setas
Brilha alto no céu
Sem horas nem limites.

Andréas Embeiríkos
(Trad.: José Paulo Paes)

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Para ver até ao fim

Ricardo Silva, da APEDE:

Bonecos

Quino, Bem, Obrigado, e Você?, Pub. D. Quixote.

Nacos

«De longe em longe aparecia pelo bairro um vendedor das chamadas leituras à meia luz, numa furgoneta a todo o vapor. Chegava num vendaval de pó e de música e dizia-se que vinha da praia, desiludido dos veraneantes. Se calhar era por isso que entrava com aquele espavento invasor: para abafar o desgosto e possivelmente afugentar os credores.
Muito bem. A furgoneta parava, o nosso marchante punha o pé em terra e, livro nesta mão, revista na outra, armava a tenda em duas penadas. Dos dedos ilustrados de anéis e das pulseira a tilintar voavam-lhe postais secretos e histórias aos quadradinhos, e era tudo música, alta luxúria, confusão. Juntava-se gente, espreitavam-se os livros pelo olho da alcova, mas o homem punha-se de parte, senhor da mercadoria e dos mistérios que ela guardava. Era como se tanto lhe desse. Só se preocupava em mudar discos e em polir os anéis no peito da camisa. Esfregava-os mesmo por baixo do bolsinho onde estava bordada a palavra
Johnny
e onde trazia uma cartucheira de canetas e lapiseiras a cintilar.
Logo às primeiras não era fácil de calcular a idade deste cavalheiro errante. Metade da cara estava tapada com uns óculos (de aviador antigo) e a outra metade com uma barba de meio pêlo que não era negra nem cinza, antes pelo contrário. Usava sapatos de lona e fita prateada no chapéu com duas notas de quinhentos a enfeitar. Todo ele, idade e figura, se perdia no barulho das cores e dos brilhos que o envolviam: ouro nos dentes, anéis e cromados, unhas de verniz. A própria camisa era tão azul-eléctrica que enlouquecia os mosquitos.»
José Cardoso Pires, O Burro-Em-Pé, pp. 169-170, Leya.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Uma fita interessante: «A Autobiografia de Nicolae Ceausescu», de Andrei Ujica

Comentário de segunda

Ministério da Educação assina acordo com a FNE (Público.PT, 9/9/11)

FNE satisfeita com o acordo assinado com o Ministério da Educação (Público.PT, 10/9/11)

Ministério da Educação assina uma acta global negocial com a Fenprof (Público.PT, 9/9/11)

Mário Nogueira: «É tempo de virar a página.» (Jornal de Notícias, 11/9/11)

Três anos e meio depois da Marcha da Indignação, realizada a 8 de Março de 2008, com a participação de 100 mil professores, Ministério da Educação e sindicatos, em uníssono, dizem dar por encerrado o problema da avaliação do desempenho docente. Este processo constitui um exemplo modelar do modo de se fazer política em Portugal e da qualidade dos políticos e sindicatos que temos.
Tudo isto começou com a irresponsabilidade política e a indescritível incompetência técnica de duas personagens que ficarão associadas aos momentos mais negros da história do país: José Sócrates e Lurdes Rodrigues — respectivamente, o primeiro responsável pela catástrofe nacional com que actualmente estamos confrontados e a primeira responsável pelo desastre que hoje vivemos em diversos sectores da Educação.
Em 2008, Lurdes Rodrigues tentou introduzir um modelo de avaliação dos professores que ficou conhecido por ser uma monstruosidade técnica e por constituir uma afronta à dignidade profissional dos docentes. Sucederam-se dois anos de graves conflitos entre os profissionais do ensino e a ministra, com avanços, recuos e, de permeio, com peripécias políticas e sindicais inqualificáveis.
Em 2010, Isabel Alçada substituiu o acinte da sua antecessora pelo sorriso, mas manteve a incompetência técnica e a obstinação política. Surpreendentemente, e sem nenhuma razão válida que o justificasse, os sindicatos assinaram um Acordo com a recém-empossada ministra. A celebração deste Acordo abriu o caminho à tentativa de levar à prática o aberrante processo avaliativo. Com a publicação, no início do ano lectivo 2010-2011, dos designados Padrões do Desempenho Docente foi atingido, neste processo, o zénite do absurdo. Quando, nas escolas, a farsa avaliativa recomeçou, a contestação ressurgiu, começou a crescer (sem a ajuda dos sindicatos, recorde-se — a assinatura do Acordo foi consequente) e o ambiente entre os professores a degradar-se rapidamente. O movimento de resistência à enormidade avaliativa acabou por ter uma brusca interrupção com a aprovação parlamentar da revogação da legislação que a sustentava e com a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições.
A era do Partido Socialista chegava ao fim. Todavia, na história, este período ficará registado como o período da afronta gratuita e do incomensurável desperdício: ataque obcecado à classe docente, perda de milhares de horas em protestos, deterioração de relações de trabalho, desgaste psicológico e contínua instabilidade.

Chegados aqui, observa-se algo de inusitado: um novo ministro da Educação que, quando «não-ministro» prometia um mundo novo, não fez mais do que pegar no velho e enodoado modelo existente e remendá-lo. Impossibilitado de fundamentar com seriedade, o novo ministro faz afirmações falsas sobre o novo/velho modelo: a primeira das quais é dizer que, a partir de agora, a avaliação docente vai estar centrada na vertente científico-pedagógica. Isto deveria ser verdade, mas não é. Não é por três razões factuais:
i) Porque milhares de professores estão formalmente dispensados da avaliação dessa vertente (os do 8.º, 9.º e 10.º escalões, que só terão uma (pseudo) avaliação nos domínios da «Participação na escola e relação com a comunidade» e da «Formação Contínua»);
ii) Porque só em dois escalões essa avaliação é obrigatória;
iii) E porque essa avaliação consiste, ridiculamente, na observação de duas aulas.

Não há nenhuma dúvida de que este modelo continuará a ser uma encenação avaliativa que em nada contribuirá para a melhoria da formação e da qualificação profissional dos docentes. O curioso é verificar que é precisamente Nuno Crato — o, até há pouco tempo, campeão do rigor e da exigência — quem vai assinar a formalização do faz-de-conta e da facilitação generalizada.
Quanto aos sindicatos, há pouco a dizer. Basta assinalar a paupérrima qualidade discursiva e a objectiva incapacidade sindical da FNE, e referir a caricata posição da Fenprof cujas razões agora apresentadas para não assinar o actual Acordo constituem precisamente as mesmas razões que há um ano e meio a não impediu de assinar o Acordo com o Governo anterior.

domingo, 11 de setembro de 2011

Santana Castilho: Temos um primeiro-ministro e um ministro da Educação impreparados


Santana Castilho denuncia bem uma das marcas de água deste Governo: a sua objectiva impreparação política e técnica — em particular, no que diz respeito ao primeiro-ministro e ao ministro da Educação. 

Pensamentos de domingo

«É na limitação que se revela o mestre.»
Johann Goethe

«Os lugares de chefia fazem maiores os grandes homens, e mais pequenos os homens pequenos.»
Jean de La Bruyère

«A fatalidade não é senão aquilo que nós queremos.»
Romain Rolland
In Paulo Neves da Silva, Dicionário de Citações, Âncora Editora.

1.º Protesto contra o despedimento colectivo de professores

Foi ontem, no Rossio, a primeira manifestação contra o despedimento colectivo de professores e o que isso na realidade representa: milhares de profissionais qualificados colocados em situação de luta pela sobrevivência, porque a educação das crianças e dos jovens tornou-se, agora, um bem de desvalorizada necessidade. 



sábado, 10 de setembro de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico


Um problema antigo

Um escultor manda vir um grande bloco de pedra e deita mãos ao trabalho.
Uns meses mais tarde termina a escultura  de um cavalo.
Uma criança que esteve a vê-lo a trabalhar pergunta-lhe então:
— Como sabias tu que havia um cavalo dentro da pedra?
In Jean- Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema.

Hoje

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Avaliação: Pano Velho - 3

Algumas notas mais sobre o novo/velho modelo de avaliação docente do ministro Nuno Crato.

Artigo 8.º (Intervenientes) - Este artigo introduz a novidade de fazer do presidente do Conselho Geral mais um agente no processo de avaliação — sobre o mérito desta novidade, dou a minha opinião mais abaixo. 
Antes disso, uma curiosidade: na 2.ª versão deste Projecto, previa-se que, na circunstância do presidente do Conselho Geral não ser um docente, este órgão elegeria, entre os seus membros, um professor para exercer as novas funções que o Projecto atribui ao cargo (n.º 2 do Artigo 26.º). Na 3.ª versão, o conteúdo deste n.º 2 desapareceu. Mas não desapareceu por opção (porque um outro artigo remete para ele, como se ele existisse...), desapareceu porque ninguém reviu com a devida atenção o trabalho de redacção.
Até a este nível, há continuidade entre a nova equipa do Ministério da Educação e a anterior...

Artigo 9.º (Presidente do Conselho Geral) - Este Artigo especifica as competências do presidente do Conselho Geral no processo avaliativo, e a sua principal competência é a de homologar as propostas de decisão dos recursos que sejam apresentados. 
Não sendo a homologação da proposta de decisão um mero e automático acto administrativo, isto é, a homologação ou a não homologação da proposta dependerá de critérios fundamentados, não se compreende que se atribua essa competência ao presidente do Conselho Geral.
Pergunta-se: porquê ao presidente do Conselho Geral? Algum presidente do Conselho Geral, ou algum professor que faz parte deste órgão, foi eleito segundo critério que incluísse os seus eventuais conhecimentos ou as suas eventuais competências em matéria avaliativa, ou de juízo avaliativo, ou de juízo sobre propostas avaliativas? Nenhum foi, nem era cogitável que fosse. 
O Conselho Geral é um órgão essencialmente vocacionado para a definição da política educativa da escola, não é um órgão técnico, nem arbitral, nem para-judicial.
Por conseguinte, e do ponto de vista objectivo, o presidente do Conselho Geral não possui, atribuída pela natureza do órgão ou pelas funções que desempenha, qualquer característica específica que o indicie como particularmente preparado para a função de julgar, em matéria de avaliação docente, sobre o parecer de um recurso.
Por outro lado, do ponto de vista da coerência interna do Projecto, esta opção é ininteligível. O Projecto faz questão de distinguir os professores do 8.º, 9.º e 10.º escalões como não necessitando de uma avaliação idêntica à dos professores dos outros escalões, mas admite que possa ser um professor do 7.º, do 6.º, do 5.º ou de outro escalão inferior (pois qualquer um deles pode ser presidente do Conselho Geral) a decidir, em última instância, de um recurso apresentado por um professor dos últimos escalões — que até pode ter sido um seu avaliador...
Do ponto de vista da imparcialidade, esta opção está condenada à partida — e não chega que o Artigo 26.º do Projecto recorde o Código do Procedimento Administrativo. Exceptuando, os professores do 10.º escalão, que já não terão mais escalões para progredir, todos os professores são virtualmente concorrentes entre si, pela simples existência de cotas. Assim, de forma directa ou indirecta, em acto ou em potência, o presidente do Conselho Geral, ou quem o substitua, se não se encontrar no 10.º escalão, será parte interessada, particularmente, em recursos referentes à atribuição das classificações de «Muito Bom» e de «Excelente».

Artigo 11.º (Conselho Pedagógico) - A alínea a) deste Artigo diz que compete ao Conselho Pedagógico eleger os quatro membros que, em conjunto com o director, vão formar a Secção de Avaliação do Desempenho Docente. Este é mais um exemplo de remendo em pano velho. O anterior modelo de avaliação era péssimo e, agora, ao pretender-se dar continuidade a esse modelo com a introdução de alterações cirúrgicas — algumas delas de cariz aparentemente mais consensual, mas incongruentes com o modelo em que se inserem — gera-se, como resultado, um desconexo amontoado de normas que conflituam entre si. Este Artigo 11.º é um exemplo. Vejamos.
A Secção de Avaliação do Desempenho Docente tem, entre outras, as competências de:
- aprovar (ou não) a classificação final das propostas dos avaliadores;
- produzir parecer sobre o relatório de auto-avaliação dos professores do 8.º, 9.º e 10.º escalões e ainda sobre o relatório de auto-avaliação do subdirector, dos directores adjuntos, dos assessores de direcção, dos coordenadores de departamento e dos avaliadores designados pelos coordenadores.
Note-se o imbróglio que isto representa:
i) Poderá haver professores de escalões inferiores (se forem eleitos para Secção de Avaliação do Conselho Pedagógico) a participar na avaliação de professores de escalões superiores, violando objectivamente o princípio, anunciado pelo ministro, que impede que isso aconteça;
ii) Nesta circunstância, teremos professores que serão simultaneamente avaliados e juízes dos seus avaliadores (porque emitem parecer sobre o relatório de auto-avaliação dos coordenadores ou de quem por eles foi designado);
iii) Finalmente, os professores daquela Secção intervêm ainda, por via do parecer que emitem, na avaliação dos adjuntos da direcção e do subdirector.
A trapalhada é quase indescritível.

Não é fácil encontrar tanta improvisação, amadorismo e irresponsabilidade juntos.
Para a semana procurarei deixar mais algumas notas.