terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Nacos

«A velha maman fingia não reparar nas nossa negociações e estava envolvida num debate profundo consigo mesma, colocando um saco numa divisão e indo buscá-lo de novo, a debater-se com a tela enrolada, a fazer tinir e chocalhar aqueles tachos amolgados e escurecidos que tinha trazido do outro lado do mar como se fossem napoleões de ouro. Com acenos de cabeça e cotoveladas, deu-me a entender que a única coisa que eu tinha a fazer era abraçar a filha desfeita em soluços, e o meu coração ficou a transbordar, em parte de raiva, em parte de prosápia, tudo isso a inundar, gorgolejar e esguichar pelas minhas câmaras interiores. 
— Acho que lhes vou perguntar onde fica o mercado — anunciou essa velhinha adorável, Deus abençoe o seu rosto de avelã e os seus dedos dos pés deformados. Fechou a porta atrás de si. Deu uma volta à chave. Já as mãos da filha me estavam a puxar a roupa e no seu rosto virado para cima se estampavam a doçura de uma pomba e a cólera de um tigre. A boca dela estava inundada de lágrimas. Comi-a, bebi-a, fervi-a, acariciei-a até ela ficar como um peixe encantador a espadanar, com o cabelo encharcado, e nós, com os olhos fixos e as peles a escorregarem uma na outra, a cheirarmos a  animais de quinta, a algas e à fábrica de curtumes a montante do rio.»
Peter Carey, Parrot e Olivier na América, Gradiva.