sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Apontamentos sobre um desastroso modelo de gestão -8

Ainda sobre o órgão director
O director é um órgão unipessoal. Na escola, este órgão unipessoal tem a competência de administrar e de gerir as áreas pedagógica, cultural, administrativa, financeira e patrimonial (Art.º 18.º). Deliberadamente, quis-se sinalizar que o poder era individual, que pertencia a uma só pessoa. Quis-se sinalizar que quem trabalha com o director é somente um auxiliar seu. É essa a sua função: ajudar — técnica e juridicamente a designação consagrada é a de coadjuvante (aquele que ajuda). O director e os seus ajudantes, em conjunto, não constituem qualquer órgão. Na legislação não existe o órgão direcção. Existe apenas o órgão director. 
A noção de equipa, a noção de projecto de equipa (projecto como fruto do trabalho de uma equipa, que se constitui e motiva para realizar algo que criou e em que acredita), a noção de vontade colectiva  (vontades que se unem e mobilizam para concretizar objectivos partilhados) constituem elementos de um paradigma conceptual estranho ao vocabulário e ao pensamento «novo-rico» dominante (de que de Sócrates e Rodrigues foram porta-vozes, durante os últimos anos). 
A ideia de equipa foi substituída pela ideia de indivíduo, a ideia de projecto comum pela ideia de projecto individual, a ideia de vontade colectiva pela ideia de desígnio individual. Pode-se ver como a categoria da personagem providencial ainda mantém, nos nossos dias, um razoável poder de sedução, e como vai sendo adaptada às diferentes escalas da realidade. À escala de uma escola, a figura do director é o resquício ou o descendente menor dessa categoria.
Todavia, é curioso observar que, e de forma paradoxal, os subscritores destas ideias são também os mesmos que a qualquer momento ornamentam o discurso com referências à necessidade de os jovens saberem laborar em equipa e com a  necessidade de as escolas os deverem treinar nesse sentido, porque, segundo eles, o presente e futuro assim o exigem. São também os mesmos que teorizam com evidente facilidade sobre as realidades interdependentes e as funções de complementaridade, sobre as organizações sistémicas, sobre a horizontalidade e a transversalidade funcionais, sobre os open spaces, sobre o tratamento por tu, sobre o conceito de colaborador, etc. Mas, chegados ao domínio que diz respeito à posse do poder, este pensamento, aparentemente democrático, aparentemente inter em tudo, torna-se repentinamente hierárquico, fechado, restritivo, impositivo. 

É pois este amontoado de ideias contraditórias, em que tudo se mistura sem nexo, sem ligação, que produz inevitavelmente dislates atrás de dislates. Quer a nível da conceptualização quer, depois, a nível da operacionalização.

Vejamos um exemplo, a nível da operacionalização, de como as confusões conceptuais têm consequências excêntricas.
Os candidatos ao cargo de director, quando apresentam as suas candidaturas individuais, têm de elaborar, para além do curriculum vitae, um projecto de intervenção na escola. Neste projecto de intervenção, os candidatos a directores têm de identificar os problemas da escola, de definir objectivos, de apresentar estratégias e de estabelecer a programação das actividades que se propõem realizar durante o tempo do seu mandato (4 anos). Trata-se de um projecto individual de cada candidato, que, após a escolha do conselho geral, se transforma em programa de governação. Por isso, o candidato eleito fica, obviamente, vinculado ao projecto que apresentou. 
Após a tomada de posse do director e depois de constituído o conselho pedagógico, este órgão deve elaborar o projecto educativo da escola. Pela sua natureza, o projecto educativo é um documento que deve resultar de uma ampla participação de toda a comunidade educativa. Professores, funcionários, alunos e pais (e, em alguns níveis de ensino, as próprias autarquias) devem envolver-se na elaboração do projecto educativo. Deste movimento de debate e de reflexão deve resultar o documento que vai definir, para um determinado período, as metas fundamentais que a escola assume como suas e nas quais se vai empenhar. O projecto educativo é, legal e substantivamente, o documento mais importante de uma escola e é o documento que consagra uma vontade colectiva
Ora, chegados aqui, levantam-se alguns problemas acerca da natureza, relação e poder legal dos dois projectos acima referidos: o projecto do director, apresentado aquando da sua candidatura e ao qual ele está vinculado, e o projecto educativo.

Quanto à natureza: um tem uma natureza individual, o outro tem uma natureza colectiva. O projecto do director é o projecto do órgão unipessoal director (nem sequer é o projecto de uma equipa directiva), o projecto educativo é o projecto da comunidade educativa.

Quanto à relação: entre o projecto do director e o projecto educativo pode não haver sintonia. Podem ser projectos consonantes, mas também podem ser dissonantes, podem ser complementares como podem ser conflituantes. Argumentar-se-á, como já ouvi algures: o director é quem preside ao conselho pedagógico e, desse modo, não permitirá que o conselho pedagógico elabore uma proposta contraditória com o seu projecto pessoal. Mas este argumento não resolve o problema, complica-o ainda mais:
i) o conselho pedagógico (ainda) é um órgão colegial. Se a vontade do director se impõe apenas porque é director e anula a vontade do conselho pedagógico, este órgão deixa de ter uma natureza colegial, perdendo autoridade e dignidade;
ii) por outro lado, o projecto do director foi sufragado por um núcleo muito restrito de pessoas (no máximo, vinte e uma, algumas delas total ou parcialmente alheias ao que é uma escola), o projecto educativo pode ser o resultado da participação de dezenas ou de centenas de pessoas. 

Quanto ao poder legal dos documentos: o projecto educativo está consagrado na lei como o documento que define a política educativa interna de cada estabelecimento de ensino, ao qual muitas dimensões da vida escolar estão vinculadas (como é o caso, por exemplo, da própria avaliação do desempenho docente); o projecto do director não tem, especificado na lei, nenhum poder formal.

Neste imbróglio acrescem ainda dois elementos:
— a composição do conselho conselho geral que acompanha a acção do director e que aprova o projecto educativo pode não ter nenhum membro em comum com a composição do conselho geral que escolheu o director;
— o projecto educativo saído da vontade colectiva da comunidade pode até ser mais consonante com um projecto apresentado por algum dos outros candidatos derrotados ao cargo de director.

É legislação desta, feita em cima do joelho e com uma impressionante confusão de ideias, que gere a vida das nossas escolas.

Continua na próxima semana