sábado, 3 de dezembro de 2011

Ao sábado: momento quase filosófico

Que responder?

Uma história sufi.
Um dervixe [monge] seguia pensativo ao longo de um rio quando ouviu uma voz humana a cantar um hino sagrado. Mas em vez de pronunciar correctamente as sílabas YA HU, a voz pronunciava U YA HU.
O dervixe achou ser seu dever corrigir esta imperfeição. Alugou um barco e remou até uma ilhota no meio do rio, de onde provinha a voz do cantor. Numa cabana de junco encontrou um homem pobremente vestido que salmodiava as suas orações e se enganava.
O dervixe corrigiu-o com amabilidade. O outro agradeceu-lhe humildemente.
Separaram-se. O dervixe voltou para o seu barco e remou para a margem. Tinha a alma satisfeita, consciente de ter realizado uma boa acção. Com efeito, diz-se que o homem que canta correctamente os textos sagrados pode caminhar sobre as águas. Toda a vida o dervixe ansiou poder realizar tal façanha. Mas em vão.
Quando se encontrava no meio do rio, a voz do cantor, por momentos interrompida, elevou-se de novo na pequena ilha. Mas o homem persistia na pronúncia incorrecta e cantava U YA HU.
Na barca, o dervixe deixou cair os remos, sentindo-se desencorajado, e pôs-se a reflectir sobre a perversidade da natureza humana. Ouviu então uma voz que o chamava. Voltou-se. Viu o cantor solitário que gritava:
— Espera por mim! Espera por mim! Tenho uma pergunta a fazer-te!
O homem saiu da ilhota e lançou-se à água do rio. Para perplexidade do dervixe, o homem caminhava verdadeiramente sobre as águas. Chegou até junto do barco e disse ao outro:
— Meu irmão, perdoa-me. A minha memória está fraca. Já esqueci a pronúncia correcta. Rogo-te, podes tu ensinar-ma outra vez?
In Jean-Claude Carrière, Tertúlia de Mentirosos, Teorema (adaptado).