segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Comentário de segunda

Conhecemos Cavaco Silva desde 1980, altura em que foi ministro das Finanças de Sá Carneiro. Desde essa época até hoje, não me recordo de ter ouvido da sua boca uma única afirmação que tenha ultrapassado o horizonte da vulgaridade. E não me refiro aos seus comentários de circunstância, enquanto mastiga uma fatia de bolo-rei ou enquanto observa o pastoreio das vacas. Nesses contextos, aliás, não é a vulgaridade das suas observações que nos constrange, o que nos arrepia é a sua incapacidade para se comportar com naturalidade e a sua inabilidade para dizer uma graça ou para manter uma conversa que não pareça uma mensagem metálica de atendedor de chamadas. Não é a isto que me refiro, refiro-me ao seu discurso político, refiro-me às suas ideias, refiro-me ao seu pensamento. É impressionante: um homem que, em trinta anos, nada disse de especial ou de importante, um homem que é um vazio absoluto de cultura histórico-filosófica consegue ser o político português, desde o 25 Abril, que mais eleições venceu e que mais tempo tem de exercício do poder. É claro que o mérito está em quem sucessivamente o elegeu assim como o demérito está em muitos dos seus adversários políticos. Seja como for, ele é o verdadeiro símbolo daquilo em que, já há vários anos, se transformou o Portugal saído da revolução de 1974: culturalmente subdesenvolvido, moralmente mesquinho, economicamente atrofiado, sem ideias, sem rasgos, sem esperanças, condenado a copiar (mal) o estrangeiro e destinado a acatar ordens do exterior. Somos um país velho e seco, à imagem do presidente que o preside.
Vem isto a propósito de quê? Vem a propósito do discurso desse mesmo Presidente, no passado 5 de Outubro. Nesse discurso, que disse Cavaco Silva que já não tivesse sido dito por toda a gente? Nada. Se não contarmos com os ornamentos formais e materiais, Cavaco disse o que tem sido insistentemente repetido: para além da austeridade é preciso haver crescimento. Isto é original? É, pelo menos, uma ideia recente? É algo que tem sido pouco afirmado? A resposta é não, não e não. Todavia, os órgãos de comunicação social ficaram deliciados com a alegada boa nova presidencial e não se cansaram de a repetir. 
Compreende-se isto? Não, não se compreende. Compreender-se-ia se a comunicação social se dirigisse a Cavaco Silva e o interrogasse: só agora, senhor Presidente? Por que razão só agora chegou a essa conclusão? Onde tem estado nos últimos tempos?

No mesmo discurso, Cavaco Silva afirmou que «nós temos vivido acima das nossas possibilidades». Neste ponto, tenho também alguma dificuldade em entender por que razão a comunicação social não o inquiriu: nós quem, senhor Presidente? Nós, aqueles que trabalhamos e vivemos do nosso vencimento? Nós, aqueles que pedimos empréstimo ao banco para comprar casa e que todos os meses o pagamos religiosamente? Nós, aqueles que fomos despedidos e que vivemos de subsídio de desemprego? Ou nós, aqueles que fomos despedidos e já não temos subsídio de desemprego? Somos nós que vivemos acima das nossa possibilidades, senhor presidente?
Mas em matéria de dificuldade de compreensão, há uma outra dúvida que me apoquenta, e, por isso, tenho de a formular directamente: diz V. Ex.ª, senhor Presidente, que temos vivido acima das nossa possibilidades e diz que temos de nos consciencializar que é preciso fazer sacrifícios. Sendo assim, importa-se de nos explicar como é que, até ao início deste ano, V. Ex.ª se sentia confortável a receber cumulativamente duas pensões e um salário? Durante os vários anos em que assim aconteceu, não considerou para si próprio que o país lhe podia estar a pagar acima das possibilidades? Ou o problema das «possibilidades» é apenas dirigido aos outros?
Outra pergunta: a partir de 1 de Janeiro último, V. Ex.ª foi obrigado, por lei, a prescindir da acumulação remuneratória de salário e pensões. V. Ex.ª teve de optar: ou salário ou pensões. V. Ex.ª rejeitou o salário, que era de €6. 523,93 ilíquidos, e escolheu receber duas pensões, uma proveniente da Caixa Geral de Aposentações e outra do Fundo de Pensões do Banco de Portugal, no valor total de €10. 042. 
Pergunto-lhe: V. Ex.ª considera-se isento de seguir os conselhos que dirige aos outros? É que V. Ex.ª só prescindiu da acumulação de salário e pensões, quando a isso foi obrigado. V. Ex.ª. não tem moral própria? Nunca congeminou poder ser imoral essa acumulação, em particular, quando o país passava e passa por dificuldades tremendas e quando eram e são pedidos sacrifícios a todos os portugueses? Não competia a V. Ex.ª dar o exemplo? Porque não o fez, senhor Presidente?
Última pergunta: por que razão não optou V. Ex.ª pelo vencimento de Presidente da República, em lugar de optar pela acumulação de duas reformas, com maior dispêndio para o Estado? O espírito de sacrifício que reclama para os outros não o ilumina a si próprio? Ou já não estamos a viver acima das nossas possibilidades?