terça-feira, 13 de setembro de 2011

Nacos

«De longe em longe aparecia pelo bairro um vendedor das chamadas leituras à meia luz, numa furgoneta a todo o vapor. Chegava num vendaval de pó e de música e dizia-se que vinha da praia, desiludido dos veraneantes. Se calhar era por isso que entrava com aquele espavento invasor: para abafar o desgosto e possivelmente afugentar os credores.
Muito bem. A furgoneta parava, o nosso marchante punha o pé em terra e, livro nesta mão, revista na outra, armava a tenda em duas penadas. Dos dedos ilustrados de anéis e das pulseira a tilintar voavam-lhe postais secretos e histórias aos quadradinhos, e era tudo música, alta luxúria, confusão. Juntava-se gente, espreitavam-se os livros pelo olho da alcova, mas o homem punha-se de parte, senhor da mercadoria e dos mistérios que ela guardava. Era como se tanto lhe desse. Só se preocupava em mudar discos e em polir os anéis no peito da camisa. Esfregava-os mesmo por baixo do bolsinho onde estava bordada a palavra
Johnny
e onde trazia uma cartucheira de canetas e lapiseiras a cintilar.
Logo às primeiras não era fácil de calcular a idade deste cavalheiro errante. Metade da cara estava tapada com uns óculos (de aviador antigo) e a outra metade com uma barba de meio pêlo que não era negra nem cinza, antes pelo contrário. Usava sapatos de lona e fita prateada no chapéu com duas notas de quinhentos a enfeitar. Todo ele, idade e figura, se perdia no barulho das cores e dos brilhos que o envolviam: ouro nos dentes, anéis e cromados, unhas de verniz. A própria camisa era tão azul-eléctrica que enlouquecia os mosquitos.»
José Cardoso Pires, O Burro-Em-Pé, pp. 169-170, Leya.