sexta-feira, 21 de maio de 2010

Fragmenti veneris diei

«No século XIX, em meados ou nos finais do século XIX, disse o tipo grisalho, a sociedade costumava coar a morte pelo filtro das palavras. Se uma pessoa ler as crónicas dessa época dir-se-ia que quase não havia delitos ou que um assassínio era capaz de comover todo um país. Não queríamos ter a morte em casa, nos nossos sonhos e fantasias, no entanto, é um facto que se cometiam crimes terríveis, esquartejamentos, violações de todo o tipo e até assassínios em série. Claro que a maioria dos assassinos em série nunca eram capturados, senão repare no caso mais famoso da época. Ninguém soube quem era Jack, o Estripador. Tudo passava pelo filtro das palavras, convenientemente adequado ao nosso medo. O que é que faz um menino quando tem medo? Fecha os olhos. O que é que faz um menino que vai ser violado e depois morto? Fecha os olhos. E também grita, mas primeiro fecha os olhos. As palavras serviam para esse fim. E é curioso, pois todos os arquétipos da loucura e da crueldade humanas não foram inventados pelos homens desta época, mas sim pelos nossos antepassados. Os gregos inventaram, por assim dizer, o mal, viram o mal que todos tínhamos dentro de nós, mas os testemunhos ou as provas desse mal já não nos comovem, parecem-nos fúteis, inintelegíveis. O mesmo se pode dizer da loucura. Foram os gregos que abriram esse leque e no entanto agora esse leque já nada nos diz. Você dirá: tudo muda. Claro, tudo muda, mas os arquétipos do crime não mudam, da mesma maneira que a nossa natureza também não muda. Uma explicação plausível é que a sociedade, naquela época, era pequena. Estou a falar do século XIX, do século XVIII, do XVII. Claro, era pequena. A maior parte dos seres humanos estava no exterior da sociedade. No século XVII, por exemplo, em cada viagem de um barco negreiro morria pelo menos uns vinte por cento da mercadoria, isto é, das pessoas de cor que eram transportadas para ser vendidas, por exemplo, na Virgínia. E isso não comovia ninguém nem saía em grandes títulos no jornal da Virgínia nem ninguém pedia que fosse enforcado o capitão do barco que os tinha transportado. Se, pelo contrário, um fazendeiro sofresse de uma crise de loucura e matasse o seu vizinho e depois voltasse a galopar para a sua casa onde assim que se apeava matava a sua mulher, no total duas mortes, a sociedade virginiana vivia atemorizada pelo menos durante seis meses, e a lenda do assassino a cavalo podia perdurar durante gerações inteiras. Os franceses, por exemplo. Durante a Comuna de 1871 morreram assassinadas milhares de pessoas e ninguém derramou uma lágrima por elas. Por volta dessa mesma data um amolador matou uma mulher e a sua mãe velhinha (não a mãe da mulher, mas sim a sua própria mãe, querido amigo) e depois foi abatido pela polícia. A notícia não só percorreu os jornais de França como também foi comentada noutros jornais da Europa e até apareceu uma nota no Examiner de Nova Iorque. Resposta: os mortos da Comuna não pertenciam à sociedade, as pessoas de cor mortas no barco não pertenciam à sociedade, enquanto que a mulher morta numa capital de província francesa e o assassino a cavalo da Virgínia sim, pertenciam, isto é, o que lhes acontecera a eles era escrevível, era legível. Mesmo assim, as palavras costumavam exercitar-se mais na arte de esconder do que na arte de desvendar. Ou talvez desvendassem alguma coisa. O quê? Confesso-lhe que não sei.»
Roberto Bolaño, 2666, pp. 310-311.