sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Fragmenti veneris diei

«As minhas viagens foram isso mesmo: poeira, o coração sempre no fim da tarde, insectos, colibris nos trópicos, o sabor da cerveja, não ter endereço certo, desobedecer aos guias e aos mapas e às intempéries. Encontrar refúgios sob os beirais de edifícios em cidades desertas, no meio de trovoadas, onde procuro cabinas telefónicas em ruas movimentadas. O coração no fim da tarde é uma imagem que transporto todos os dias. A poeira também. E alguns nomes novos: sonambulismo, domingo fechado num quarto, nadar a meio da noite, livros, café, bilhetes de autocarro e de museu, contas de restaurantes e de hotel, caixas de fósforos, jornais em línguas desconhecidas, postais ilustrados, publicidade distribuída na rua, pequenos cadernos preenchidos com rabiscos, pacotes de açúcar dos cafés de Amesterdão, coisas sem importância aparente, os talões de embarque dos voos, o cheiro dos vulcões, revoluções, sobressaltos, tiroteios, poeira levantada do chão, cavaleiros que percorrem os desfiladeiros e viajantes que pernoitam em cidades quase abandonadas, as cordilheiras dos Andes, a neve dos subcontinentes, os muros abandonados de Dar El Beida (os mesmos que foram reerguidos cerca de 1770 por Mohamed Ben Abdullah), as sextas-feiras de Jerusalém, os bares de uma cidade na Catalunha, as ilhas de Donegal, a vegetação entre as colinas procurando o meu pai, imaginando como seria a minha mãe, tudo o que vi, tudo o que ouvi, as grandes árvores de Java, uma enseada na grande ilha de Flores. Eu pensava que era neblina, neblina sobre os vales quando se desce para a grande foz do Cunene. As mulheres. Ah, a Welwitschia mirabilis, a flor do deserto. As nuvens entre os arranha-céus, os caminhos pulverizados por essa poeira de geada no Inverno, os castelos, as estradas que não levam a nenhum lado e se perdem num aeroporto. E os crepúsculos do Sul, os casarões de branco ocre, os mariachis acompanhando as primeiras cervejas, a alegria de não ter pátria. E, não conseguindo explicar essa beleza intensa, é essa beleza que gostava de recordar. As colinas escuras do Cañon del Sumidero. Os bailes, os jantares prolongados. desço no mapa enquanto não chegam os tufões às ilhas, enquanto as tempestades não interrompem as estradas. É nessas estradas que se ergue a mais bela luz, a de El Jadida, recordada pelos sobreviventes da guerra, e que se refugiaram nos confins da Amazónia. É essa poeira que anima o meu coração.»
Francisco José Viegas, O Mar em Casablanca, pp. 196-197.