quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A propósito de "A domesticação da sociedade"

Um colega (e sobretudo um dos grandes amigos que a vida me permitiu) telefonou-me ontem para um dos nossos habituais almoços, onde as conversas sobre o nosso quotidiano profissional se inscrevem agora numa realidade incontornável: temos os dois 33 anos de serviço, ele vai pedir a reforma antecipada com cerca de 30% de penalização ... e eu não! (porque sou um pouco mais novo, a penalização andaria próxima dos 46%).

À mesa, entregou-me uma fotocópia do texto de José Gil "A domesticação da sociedade", publicado na "Visão" (que eu não tinha lido), dizendo-me desde logo: «está aqui uma opinião absolutamente concordante com a tua». Disse-lhe que, a ser assim, seria particularmente gratificante ver ideias (ainda que amargas) que partilho superiormente fundamentadas, porque concordo plenamente com os que consideram José Gil um dos poucos grandes pensadores deste tempo, em tudo o que a palavra pensador tem de expressão do uso singular da razão e da inteligência. Li o texto e, para além da excelência da reflexão e do destapar da "nudez crua da verdade", li algo que não está expresso mas é para mim evidente: um professor universitário que já nada tem a ver com o sistema, que não é directamente atingido pela sinistra política educativa (?) do ME, assume o imperativo ético de denunciar «... técnicas terríveis de dominação, de castração e de esmagamento, e de fabricação de subjectividades obedientes».

Pelo seu significado, pela sua importância - e porque, como escreveu A. Jacinto «não transporei a linha divisória entre o meu e o outro caminho» e porque sei que de parto ou de medo nunca morrerei, transcrevo a maior parte do texto de José Gil:

(...) "Acontece, antes de mais, que o português voltou à inércia e à passividade face às transformações inelutáveis que abalaram a sua existência como um destino. A esse estado de espírito acrescentou-se recentemente um processo de interiorização do novo modo de vida a que a modernização o vai condenando. Um grupo social tornou-se emblemático desta conjuntura: o dos professores.
A sua situação não mudou. Justificaria ainda a saída à rua de 100 mil pessoas. Mas, precisamente, uma tal manifestação seria hoje impensável. O Governo e o ME ganharam. Os espíritos estão parcialmente domados. Quebrou-se-lhes a espinha, juntando ao desespero anterior um desespero maior. O ambiente das escolas é agora de ansiedade, com a corrida ao cumprimento das centenas de regulamentações que desabam todos os dias do Ministério para os docentes lerem, interpretarem e aplicarem. Uma burocracia inimaginável, que devora as horas dos professores, em aflição constante para a conciliar com uma vida privada cada vez mais residual e mesmo com a preparação das lições, em desnorte com as novas normas (tal professor de filosofia a dar aulas de «baby sitting» em cursos profissionalizantes) - tudo isto sob a ameaça da despromoção e do resultado da avaliação que pode terminar no desemprego.
COMO FOI ISTO POSSÍVEL? Como foi possível passar da contestação à obediência, da revolta à «servidão voluntária» como lhe chamava La Boétie? Indiquemos um só mecanismo que o Governo utiliza: a ausência total de resposta a todo o tipo de protesto. Cem mil pessoas na rua? Que se manifestem, têm todo o direito - quanto a nós, continuaremos a enviar-lhes directivas, portarias, regulamentos a cumprir sob pena de ... (existe a lei). Ausentando-se da contenda, tornando-se ausente, o poder torna a realidade ausente e pendura o adversário num limbo irreal.

Deixando intactos os meios da contestação mas fazendo desaparecer o seu alvo, desinscreve-os do real. (...) Resultado: o professor volta à escola, encontra a mesma realidade, mas sofre um embate muito maior. É essa a força da realidade. É essa a realidade única. E é preciso ser realista. Assim começa a interiorização da obediência (e, um dia, do amor à servidão).

NO PROCESSO de domesticação da sociedade, a teimosia do primeiro-ministro e da sua ministra da Educação representam muito mais do que simples traços psicológicos. São técnicas terríveis de dominação, de castração e de esmagamento, e de fabricação de subjectividades obedientes. Conviria chamar a este mecanismo tão eficaz, «a desactivação da acção». É a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica política, à maneira de certos processos psicóticos."

Apesar de concordar em absoluto com tudo o que J. Gil escreveu, porque faço parte dos alvos da política do ME e porque vivo por dentro a realidade superiormente analisada no texto, permito-me algumas notas à margem, acrescentos que julgo esclarecedores desta realidade vivida, sentida ... e não só:

- "O Governo e o ME ganharam. Os espíritos estão parcialmente domados". Desgraçadamente, o contributo decisivo para essa vitória do poder foi dado por aqueles que deveriam constituir o trunfo maior da contestação: os sindicatos, na mais vergonhosa traição de toda a história do sindicalismo docente;

- Como foi possível passar da contestação à obediência, da revolta à «servidão voluntária» ...

Foi, de facto e sobretudo, como diz J. Gil, pelo mecanismo usado pelo Governo. Mas não só: adeptos da servidão voluntária já se perfilavam (alguns até estavam entre os cem mil), já assumiam o estatuto de titulares e de avaliadores, de novos capatazes que amam servir o poder ... sobretudo porque esse amor lhes permite sujeitar outros (os avaliados ...) à servidão perante eles. Nas escolas, muitos são já os capatazes com excesso de zelo, "os mais papistas que o papa". E, também, atrevo-me a dizê-lo, porque o amor à servidão é, neste povo, um traço marcante da nacionalidade. 34 anos depois ... a opinião pública mais parece uma pena a ornamentar o chapéu da «democracia». Que solidariedades se exprimem hoje?;

Da leitura do último parágrafo do texto ocorre-me a seguinte interrogação: haverá diferenças significativas entre os processos psicóticos usados pelo actual poder e os comummente utilizados pelos Estados Totalitários?